sábado, 20 de agosto de 2022

"CÉUS, INFERNOS E PURGATÓRIOS: REPENSANDO NOSSO FIM" (Parte I)

 

"CÉUS, INFERNOS E  PURGATÓRIOS:  REPENSANDO NOSSO FIM"

(Parte I)

 

Lindolivo Soares Moura(*)

        "Então  Deus  contemplou  tudo que fizera;  e  eis  que  tudo  era  muito bom"(Gn.1,34)

Se todo discurso é uma tentativa de falar sobre, e atribuir sentido à realidade, toda teologia, como se depreende da própria etimologia, pode ser considerada um "ensaio" na incontida ânsia do ser humano em interagir e se comunicar com Deus. "Gaiola feita de palavras", advertia Rubem Alves, da qual segundo ele esse mesmo Deus precisa ser libertado. A advertência kantiana - Immanuel Kant, filósofo prussiano - de que sobre o "noumenoun" não se fala, e muito menos se conhece - só o "fe-noumenoun" ou as características fenomênicas são conhecíveis - nunca foi suficiente para demover o ser humano dessa persistência em manter contato e dialogar com o divino. "O coração tem razões que a própria razão desconhece", nos lembra Pascal, e se os objetos e seres metafísicos  são de fato inacessíveis aos olhos da razão, como quer kant, não o são com certeza para os anseios e as inquietudes do coração. Pelo sim e pelo não, "se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo", como afirmava Voltaire. O próprio Pascal afirmava que Ele - Deus - é uma espécie de "aposta", enquanto para Unamuno, filósofo árabe, "acreditar em Deus não é senão desejar que ele exista".

A rigor só existe uma única linguagem através da qual podemos "falar sobre", e nos "comunicar" com Deus: o discurso ou linguajar antropomórfico. "Antropo" = homem, humano,  "morfo" = forma, formato ou aparência; ou seja, só podemos falar de Deus e nos comunicar com Ele à maneira como fazemos uns para com os outros, entre nós seres humanos. Qualquer outro caminho ou tentativa de fazê-lo resultará em mero exercício da imaginação e puro devaneio da paixão. "Nenhuma fé é racional - afirma lou marinoff - toda fé é apaixonada", tanto para o bem como para o mal, acrescentaríamos nós.

Nada contra, naturalmente, o recurso à imaginação. Um dos grandes estudiosos e teólogos do cristianismo, Leonardo Boff, chega a afirmar que é a fantástica capacidade de simbolização, antes mesmo que o admirável exercício da razão, o grande diferencial do ser humano quando comparado aos demais seres vivos, também estes sencientes e responsivos, como nos lembra Peter Singer, filósofo australiano radicado nos Estados unidos e professor de Ética Prática.

Simbolizar, no sentido primeiro e primário de "transcender" - os fatos, os acontecimentos, enfim a vida e o viver - é sem dúvida um exercício tanto da razão como possivelmente mais ainda da imaginação. Insere-se na ordem dos arquétipos e do arquetípico tão caros a Jung, provavelmente o psicanalista mais místico que se conhece. O problema relacionado à imaginação, entretanto, é que enquanto a razão ao exercitar-se impõe uma espécie de "controle" sobre si mesma, a paixão e com ela a imaginação ao fazê-lo nem sempre se deixam orientar pela razão. Ocorre que a curto prazo a paixão, assim como a fantasia e a imaginação, vencem a razão, e o que não é nada bom, quase sempre para o mal. Somente a médio e longo prazo é que a razão tende a superar a paixão e os eventuais "fantasmas" da fantasia e da imaginação, e o que é melhor, quase sempre para o bem. Pelo menos é isso o que ensina o já citado Orientador Filosófico norte-americano Lou Marinoff.

Nossa hipótese, aqui relacionada aos mais variados discursos sobre Deus - e por extensão aos mais diversos eventos apocalípticos e escatológicos a Ele relacionados - é a de que muitos desses discursos, senão a maioria deles, "pecam" por excesso de imaginação e escassez de racionalidade. No presente caso, optamos por abordar apenas uma dessas "criações": o inferno. Conceitos e concepções do tipo estão dentre aqueles que Depak Chopra - "a estrela da nova espiritualidade", segundo o periódico britânico "The Guardian" - chama de "assassinos da mente". A expressão pode parecer forte, para alguns até inaceitável, mas talvez seja a mais adequada para expressar o tipo de dano e de sequelas que conceitos e "pre-conceitos" como "culpa", "pecado", "condenação", "inferno", "perfeição" e outros do gênero costumam deixar na mente, no consciente, e sobretudo no inconsciente pessoal e coletivo das pessoas. Confessionários e consultórios de psicologia estão aí para atestar o fato.

Não sem razão outro grande mestre da espiritualidade contemporânea, o líder zem budista tibetano Dalai Lama, ensina que o inferno está na mente, no psiquismo de cada pessoa, assim como de resto o próprio céu. Como se céu e inferno ocupassem o mesmo espaço, apenas em momentos e situações diferentes.Tudo depende, em última instância, do tipo de "nutrientes" - ideias, crenças, conceitos, pensamentos,  "verdades" e convicções - com que a mente é alimentada. Fantasia e imaginação têm papel importante na elaboração dessa espécie de cardápio ou "culinária mental", mas é preciso reconhecer que elas podem por vezes produzir receitas e ingredientes altamente tóxicos, capazes de comprometer seriamente nossa saúde psíquica. O conceito de inferno é apenas um desses ingredientes a fazer parte da receita. Sempre me chamou a atenção o fato de que o Budismo de Gautama, o Buda, ainda que não negue, tampouco afirme e menos ainda pressuponha a existência de céus, infernos e purgatórios. Sua "teologia" é notoriamente mais moderada e razoável que as de outras denominações.

Difícil mesmo é saber se a versão cristã do inferno, assim como a de seu vizinho mais próximo, o purgatório, tenha ocorrido por falta ou excesso de imaginação. Na dúvida, parece mais lógico admitir que apenas uma mente com elevado grau na capacidade de  fantasiar seria capaz de tal feito. E se como querem alguns, apenas uma mente diabólica poderia estar por trás de uma criação do tipo, parece forçoso admitir que além de maquiavélico o demônio seria também altamente criativo. Criativo e inteligente, diga-se de passagem, porque teria sabido explorar como ninguém as fraquezas e debilidades dos humanos. Primeiro, ao se camuflar tão bem de serpente que conseguiu impedir seu reconhecimento por parte de nossos primeiros pais; segundo, fazendo uso de uma lábia tão convincente e persuasiva a ponto de convencer um e outro, homem e mulher, a cair nessa lábia sem perceber que na verdade estavam caindo na mais mortífera das tentações; e por fim, ao convencer o próprio Criador de que sua criação teria sido um verdadeiro e terrível fracasso, e que para com os definitivamente fracassados não havia mesmo solução.

Assim, ficava de comum acordo decidido e estabelecido que os melhorzinhos, punidos levemente e expulsos do éden que seriam, retornariam num futuro próximo àquela espécie de paraíso, enquanto os severamente castigados e inapelavelmente condenados seriam transferidos para um lugar que ele mesmo, o diabo, já havia premeditadamente concebido e criado: o inferno. Sim, o local da mais absoluta e eterna danação. De tudo isso resulta claro que aquilo que passara a ser chamado de "inferno" não estava inicialmente nos planos do Criador. Não diz a Escritura considerada sagrada que ao contemplar sua obra vira Deus que "era tudo muito bom"? Como poderia portanto o inferno estar no meio, dela fazendo parte, como que por um descuido do Criador? Ainda que Deus pudesse ter aprovado e até gostado da ideia, como alternativa de solução, é pouco provável que com ela tenha se envolvido, e menos ainda participado de sua execução.

Esta não pretende ser de nenhuma forma uma versão alternativa para o relato da criação, menos ainda para as eventuais versões que se aventuram em descrever a origem do inferno, tal como a de Dante Alighieri na Divina Comédia, por exemplo (difícil acreditar que num tempo em que perseguição, fogueira e inquisição, estivessem tão em alta, alguém se arriscasse e ousasse chamar de "comédia" uma tal criação). Tampouco é nossa intenção brincar e menos ainda zombar de ensinamentos e crenças que povoam o imaginário de pessoas de fé e reta intenção. Mas assim como o parabólico, o metafórico e o alegórico, também o lúdico acompanhado da boa-fé pode ser com certeza uma forma adequada de ilustração e instrução.

Descrito como um dentre os mil maiores realizadores do século XX, e uma das dez personalidades que mais contribuíram para mudar a história da Índia, o sábio oriental de cognome OSHO afirma: "um homem sábio, um grande mestre, está sempre sorrindo e rindo, não é um homem sério, como se pensa". Mas é também dele a seguinte admoestação: "ninguém pode evitar ser mal interpretado; não há o que fazer a respeito disso. Uma vez que se tenha dito algo, o que a outra pessoa vai fazer com isso depende apenas dela". Não obstante tal risco, o desejo e a disposição em compartilhar continuarão sendo sempre, ao nosso ver, uma dentre as grandes virtudes que enobrecem o coração. Culpa e medo sempre espreitaram e agitaram  a mente e o imaginário do ser humano. Céus, infernos e purgatórios, são apenas uma dentre as tantas ofertas de aquietamento e solução. A mais absurda e trágica tu delas, é bem verdade, sobretudo aquela relacionada à absoluta e eterna danação, e exatamente por isso inaceitável e dificilmente sustentável aos olhos do bom senso e da lucidez da razão.

 

Observação:  esta primeira parte conclui-se e termina com a segunda, de mesmo título, a ser oportunamente publicada.                

                          L.S.M.

(*)Possui graduação em teologia pelo Instituto teológico pio XI (1983), graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (1997), graduação em Filosofia pela Faculdade Salesiana de Filosofia, ciências e letras (1986) e mestrado em Filosofia pela Pontificia Universidade Gregoriana ,Roma - Itália(1988) . Foi por 11 anos consecutivos professor de filosofia jurídica e psicologia Jurídica do Centro Universitário de Vila Velha, ES.Durante esses 11 anos foi Coordenador Pedagógico por 05 anos e de Ensino por 1 ano e meio do mesmo Curso de Direito. Atualmente é terapeuta de grupo, individual, vocacional, Consultório Clínico Psicológico particular. Formou-se recentemente em Psicodrama (02 anos) pelo Instituto Pegasus de Vitória, ES. Atualmente, cursa a pós graduação TCC - Terapia Cognitivo Comportamental.

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário