sábado, 27 de julho de 2024

VI- REFLEXÃO DOMINICAL I Os Pães e os Peixes (Mc 6,30-44)

 

 

VI- REFLEXÃO DOMINICAL I

Os Pães e os Peixes (Mc 6,30-44)

Situando...



Os discípulos retornam da missão, à qual Jesus os enviara. Junto ao relato da morte de João Batista (Mc 6,19-29), esse retorno completa a imagem do caminho do discípulo: entre as perseguições inerentes ao anúncio do Reino, o Mestre sempre de novo os convida para “estar com ele, no deserto, a sós” (v. 30-32; cf. Estudo 18). Pois, embora façamos tudo quanto está ao nosso alcance, o Reino não depende estritamente de nossos esforços; é dom de Deus. É uma consciência que nos desperta, um convite que aceitamos e convidamos outros a também aceitar. E, entre os cuidados pastorais ou os esforços missionários, exige sempre de novo voltar ao Mestre, caminhar atrás dele, manter a intimidade com ele.



 Os pães e os peixes



Jesus parte com os seus para “o lugar deserto”, mas sua intenção é percebida pela multidão, que acorre “de todas as cidades”, no dizer de Mc, e “chega lá antes deles” (v. 33). Descendo do barco, Jesus tem compaixão. Ao lado da “indignação”, a “compaixão” é um sentimento recorrente em Jesus, segundo Mc. Desde o encontro com o leproso, no dia de Cafarnaum (Mc 1,41), Jesus muitas vezes ficará compadecido ou outros implorarão pela sua compaixão (Mc 8,2; 9,22; 10,47). Aqui, a compaixão de Jesus se dirige ao desamparo da multidão, que acorre “como ovelhas sem pastor” (v. 34). Onde estão os pastores, senão com as ovelhas confiadas a seus cuidados? Certamente, pastoreiam seus próprios interesses, como frequentemente ocorre, ontem e hoje. São mercenários, conforme a descrição de João: “o mercenário, que não é pastor e a quem as ovelhas não pertencem, vê o lobo chegar e foge; e o lobo as ataca e as dispersa. Por ser apenas um mercenário, ele não se importa com as ovelhas” (Jo 10,12-13). Importa-lhes apenas o quanto as ovelhas podem render a seus interesses. Jesus sente compaixão e oferece pastoreio às ovelhas desamparadas. Como? Com aquilo de que precisam: o ensino, o anúncio de sua boa notícia do Reino (v. 34).



Essa é, pois, a moldura do texto que vem a seguir, apelidado descuidadamente de “o milagre da multiplicação dos pães”. Uma leitura atenta demonstra que não há, no texto, nem a palavra “milagre”, nem “multiplicação”. Há, no máximo, uma “divisão dos pães”, já que Jesus repartirá os pães e os peixes, depois de ter dado graças (v. 41). De todo modo, perceba-se: a moldura do texto é o ensino de Jesus e é a isso que o texto se refere. Não só ao ensino de Jesus de Nazaré a seus discípulos que o seguiam, mas também ao ensino que Jesus Ressuscitado continua a oferecer às comunidades, a partir da experiência pascal. Afinal, se, para Mc, Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, que tipo de Palavra ele dirige aos seus, de ontem e de hoje? É o que o texto nos relata.



Como ficasse tarde, os discípulos constatam o óbvio (a hora avançada, o ermo do lugar) e tentam ensinar a Jesus o que fazer (v. 35-36). Por um instante, parecem ter se esquecido de quem é verdadeiramente o Mestre e qual o seu lugar de discípulos, pois “passam à frente” do Mestre. A resposta de Jesus é inusitada: “Vós mesmos, dai-lhes de comer” (v. 37). Como tão poucos poderiam suprir alimento para tanta gente? Não é essa a pergunta que, até hoje, por vezes, nos fazemos? Como saciar a fome de ensino daqueles tantos que vêm a nós, se somos tão pequenos e limitados? Será que nós, necessitados como somos, seríamos capazes de acudir a necessidade dos outros? Esquecemo-nos de que as pessoas vêm a nós, mas não com sede de nós mesmos e de nossas palavras, mas com sede de Jesus, das palavras de Jesus. E que, portanto, ele é o alimento que podemos oferecer a elas.

 

Mas, ainda inconformados com a resposta de Jesus, os discípulos retrucam (como nós também): “nem duzentos denários seriam suficientes” (v. 37). Um denário é o salário de um dia para um trabalhador empreiteiro, um diarista. Duzentos denários são o salário de um ano de jornada (dos 336 dias do calendário lunar, descontavam-se os sábados e os dias de festa, nos quais não se trabalha). Ou seja, nem um ano de salário seria suficiente... realismo exagerado dos discípulos, que ainda creem que dependa deles o alimento para a multidão.

 

“O que tendes?” – pergunta Jesus; “cinco pães e dois peixes” – respondem (v. 38). O pão é um dos símbolos da Torah, da Escritura judaica. Pois é dela que o Povo de Deus se alimenta, é da Palavra que o Povo se nutre e sustenta sua travessia. Assim como fez Ezequiel, que “tomou o livro e comeu”, com toda a sua literalidade profética (Ez 3,1-3; Jr 15,16; Ap 10,9). E é exatamente isto que os discípulos têm: a Escritura. Os cinco pães do Pentateuco, os cinco livros da Lei mosaica; e os dois peixes que completam a Escritura, os Escritos (Sapienciais) e os Profetas (Livros Proféticos). Juntos, esses “cinco pães e dois peixes” formam a totalidade da Palavra de Deus escrita, disponível até então: a “Lei”, os “Escritos” e os “Profetas”. É desse pão que a multidão está faminta e é pela falta dele que vagam como ovelhas perdidas sem pastor. Os que deveriam ensinar não o fazem; os que deveriam abrir a Escritura como alimento abundante a transformam numa bolha vazia e incompreensível, alimento insosso e incapaz de oferecer sustento... e por isso o povo se perde numa errância de fome (cf. Os 4,6s).

 

Jesus pede que todos se assentem, em grupos, para a refeição (v. 39-40). Toda a cena remete ao relato da Páscoa e do Êxodo: o deserto, a hora adiantada, o povo faminto, a Torah... E os verbos deste texto de Mc são os mesmos que, na última noite, Jesus repetirá na Eucaristia: “tomou”, “abençoou”, “partiu”, “distribuiu” (cf. Mc 14,22). Daí, finalmente, compreendemos: Jesus mesmo é o alimento que se dá ao povo faminto, que se distribui com generosidade, que nutre com fartura até a saciedade. Ele é Moisés, que novamente dá ao povo a Palavra do Pai, o Caminho (Torah) da Aliança; ele é o Salmista, que canta da própria vida o louvor verdadeiro que se deve a Deus – a justiça aos menores de seus filhos; ele é o Profeta que apela à fidelidade da Aliança e denuncia seu descumprimento. Jesus é a Palavra viva da Escritura, agora feita gente da gente, cuja voz que fala a partir de dentro alcança a todos, sem distinção. Pois não há coração humano que não encontre, em seus mais sinceros anseios, um eco dessa divina Palavra.

 

Na comunidade cristã, Jesus continua a falar, distribuindo entre seus discípulos “os pães e os peixes”. Como? Pelas mãos dos próprios discípulos. “Jesus parte o pão e o entrega aos discípulos, que por sua vez os distribuem à multidão” (v. 41). O Ressuscitado continua a falar, pela boca daqueles que o anunciam; e continua a agir, pelas mãos daqueles que, em nome dele, agem com generosidade e fazem da própria vida alimento aos demais. O mesmo alimento distribuído por Jesus é agora partilhado pelos discípulos; Ele se deixa dividir pelos seus. Tanto que todos comem com fartura (v. 42) e se recolhem doze cestos cheios com os pedaços restantes (v. 43) – sinal da tradição apostólica, pela qual a Palavra de Jesus continua viva e atuante.

 

Ora, os que comeram eram cinco mil (v. 44). Ou seja, não importa que os comensais ultrapassem a quantidade de pães em mil vezes (5 x 10 x 10 x 10). No que depender da qualidade do Pão, sempre haverá alimento com fartura.

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