sábado, 13 de julho de 2024

XIII- SER CATÓLICOS HOJE Por Thomas Halik

 XIII-   SER CATÓLICOS HOJE

Por Thomas Halik

Luisa Rabolini(Tradutora) 

 

O que significa "católico" hoje? Para responder, devemos primeiro nos perguntar: o que queremos dizer com "hoje"? “Hoje”, isto é, o tempo do cristianismo dividido. A divisão não diz respeito principalmente à separação entre as Igrejas, mas dentro delas. Hoje, ou seja, um tempo em que a credibilidade da Igreja está passando por uma das maiores crises.

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Os escândalos de abuso sexual, psicológico e eclesiástico recentemente descobertos desempenham em nosso tempo um papel semelhante ao das indulgências que provocaram a Reforma - Tomáš Halík 

Os escândalos de abuso sexual, psicológico e eclesiástico recentemente descobertos desempenham em nosso tempo um papel semelhante ao das indulgências que provocaram a Reforma. O que inicialmente parecia um fenômeno marginal mostra hoje - como então - problemas muito mais profundos, ou seja, as disfunções do sistema: as relações entre Igreja e poder, clero e leigos e muitos outros. A situação da Igreja Católica hoje é muito semelhante àquela de pouco antes da Reforma.

 

“Hoje”, isto é, num momento em que a Igreja se depara com uma grande tarefa: a passagem da forma atual à futura, rumo ao caminho sinodal. O caminho sinodal não é apenas um caminho rumo à reforma, mas um caminho de reforma. Aqui também o caminho coincide com o destino. Os cristãos de hoje, como no início da sua história, devem ser "pessoas em caminho".

Jesus disse de si mesmo: eu sou o caminho. A existência cristã é um seguimento, isto é, um movimento. Pelos tortuosos caminhos do mundo de hoje procuramos os passos de Jesus, na polifonia do nosso tempo a voz de Jesus. Precisamos da arte do discernimento espiritual.

 

Contra uma ideologização do cristianismo

 

Todos nós cristãos acreditamos em uma Igreja unasantaapostólica e universal. O que significa "católico"? É uma das notas características da Igreja. Uma comunidade de crentes que deixasse de tender para a catolicidade, para a abertura universal, perderia sua identidade e autenticidade cristãs.

Uma comunidade de crentes que deixasse de tender para a catolicidade, para a abertura universal, perderia sua identidade e autenticidade cristãs - Tomáš Halík

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Entre unidadesantidadeapostolicidade e catolicidade há uma conexão interna e uma interpenetração, uma pericorese. O enfraquecimento de um desses quatro pilares da identidade da Igreja significa o enfraquecimento dos demais.

 

Unidade: unidade orgânica na diversidade. Santidade: consagração a Deus e pertença a Deus Apostolicidade: fidelidade à missão e à Tradição apostólica. E Catolicidadeuniversalidadevisão de conjuntoabertura: essas são as principais características da Igreja.

São carismas que a Igreja recebeu do Senhor da história e da Igreja como dom e tarefa para o seu caminho na história. São carismas, sementes de graça que, para crescer, precisam de um solo favorável. São - juntamente com outros carismas importantes - sementes da vida de Deus; neles e por meio deles atua e cresce a dynamis de Deus, o movimento do Espírito vivificante de Deus, que molda, une, guia, cura e transforma a comunidade dos crentes.

Esse movimento de crescimento e amadurecimento ocorre na história e visa a culminação escatológica do processo histórico. Somente nesse ponto ômega, no eschaton, aparecerão em toda a sua plenitude a unidade, a santidade, a apostolicidade e catolicidade da Igreja

No cerne da história, a Igreja é communio viatorum, um povo em caminho, que ainda não chegou ao seu destino. O desenvolvimento da Igreja não é uma via de mão única, a teologia cristã da história difere das escatologias intramundanas.

Compreender e descrever plenamente o "futuro absoluto", a meta escatológica da história está além de nossas capacidades - Tomáš Halík

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Nossa experiência em relação àqueles que prometeram o paraíso na terra e fizeram da terra um inferno nos obriga a manter uma distância crítica em relação às ideologias e às utopias políticas. É tarefa profética da Igreja relativizar toda forma de idolatria, de relativizar a absolutização do que é relativo.

Para tomar as distâncias da escatologia intramundana das ideologias seculares e das promessas do paraíso na terra, precisamos de uma certa "escatologia negativa", análoga à "teologia negativa". Compreender e descrever plenamente o "futuro absoluto", a meta escatológica da história está além de nossas capacidades.

Portanto, nenhuma situação da sociedade e do Estado, nenhuma forma de Igreja, nenhuma forma de nosso conhecimento teológico pode ser considerada perfeita e definitiva, como o fim da história; em nenhum momento da nossa jornada podemos dizer: Pare, você é tão lindo! A Igreja tem a obrigação de exercer esse serviço profético de "dessacralização" não apenas em relação às ideologias seculares como o comunismo ou o nacionalismo, mas também contra as tentativas de ideologizar o cristianismo e assim desfigurar a sua vida.

Precisamos de uma "distinção escatológica": uma distinção constante entre a ecclesia militans, a Igreja aqui na terra, e a ecclesia triunfal, a Igreja glorificada no céu. Se a ecclesia militans terrestre começa a se considerar como ecclesia triunfal, como a forma perfeita da Igreja, comete o pecado do triunfalismo.

Uma das manifestações do triunfalismo é o clericalismo: aqueles que estavam destinados ao humilde serviço da comunidade tornam-se uma "classe dominante" - Tomáš Halík

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Se a ecclesia militans, a Igreja militante, deixa de lutar contra a tentação do triunfalismo, torna-se um instrumento da religião militante; luta contra os outros e os não-conformistas presentes em suas fileiras. Algo semelhante aconteceu no Islã com o conceito de jihad. Uma das manifestações do triunfalismo é o clericalismo: aqueles que estavam destinados ao humilde serviço da comunidade tornam-se uma "classe dominante", um governo sagrado (hierarquia) que reivindica o monopólio da verdade.

Especialmente nos nossos dias nos encontramos diante das consequências do abuso de poder e de autoridade na Igreja. O Papa Francisco corretamente diagnosticou o clericalismo como uma das principais causas dos crimes de abuso, um clima de relações doentias em que coisas desse tipo eram possíveis. Nossa eclesiologia, a autocompreensão da Igreja, precisa do princípio da "kenosis", do dom de si; o caminho sinodal deve ser um caminho de humildade curadora.

Como já foi dito, o caminho da Igreja através da história não é uma via de mão única, mas um drama de luta contínua entre graça e pecado. O drama da Páscoa continua na história da Igreja. Compartilhamos não apenas a luz da manhã de Páscoa, mas também as trevas do Getsêmani e do Calvário. Na vida da Igreja, nas suas crises e sofrimentos, nas suas feridas, continua também o sofrimento de Cristo, é uma passio contínua. Não só no caminho espiritual de cada crente, mas também na história da Igreja há sempre "noites escuras de fé".

Nossa eclesiologia, a autocompreensão da Igreja, precisa do princípio da "kenosis", do dom de si; o caminho sinodal deve ser um caminho de humildade curadora - Tomáš Halík

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Nas noites escuras coletivas da história do mundo e da Igreja, precisamos da paciência da esperança para vencer a tentação do desespero, esta "doença que conduz à morte". Muitas coisas - incluindo muitas formas de Igreja e formas imaturas de fé - devem morrer. A ressurreição não é um retorno ao que era antes, mas uma mudança radical. O Cristo ressuscitado se aproxima de seus amigos como um peregrino desconhecido.

Não só os sacramentos e os sermões da Igreja, mas também e sobretudo as expressões quotidianas da fé, esperança e caridade dos fiéis constituem o espaço da ressurreição em que se realiza a resurrectio contínua. Do mesmo modo são lugares de teofania: Deus está presente no mundo na fé, na esperança e no amor dos crentes. Eles também exprimem o caráter sacramental da Igreja, também eles fazem parte da liturgia em sentido mais amplo, também eles são o lugar onde Cristo ressuscitado vive e atua.

O que significa a catolicidade da Igreja? É a sua abertura à vinda do Cristo ressuscitado, desconhecido, surpreendente. O Cristo ressuscitado é semper maior, sempre maior do que imaginamos até agora. Entre pelas portas fechadas dos nossos medos, das nossas ideias estreitas, das definições dogmáticas, dos conceitos e das categorias.

Catolicismo hoje significa universalidade e ecumenismo em um sentido mais amplo e profundo - Tomáš Halík

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Catolicismo hoje significa universalidade e ecumenismo em um sentido mais amplo e profundo. O convite do Concílio Vaticano II ao diálogo ecumênico com as outras Igrejas cristãs, com os crentes de outras religiões e com os defensores do humanismo ateu foi o primeiro passo neste caminho. Contribuiu para libertar a catolicidade da Igreja do beco sem saída do "catolicismo", do particularismo confessional, da redução a uma das "visões de mundo".

Para esta deformação da Igreja contribuiu a sua estratégia defensiva e apologética após os dois grandes cismas, a estratégia de defesa contra o protestantismo e depois a defesa contra a cultura moderna na sequência da cisão entre a teologia neoescolástica e o pensamento científico, filosófico e político do XIX século.

A Igreja deve distanciar-se de um catolicismo de guerras culturais

No caminho sinodal rumo a uma catolicidade credível, devemos libertar-nos de "um catolicismo" entendido como uma contracultura convulsiva e um instrumento de guerras culturais. Além disso, a Igreja deve resistir constantemente à tentação do narcisismo coletivo, do egoísmo e da autorreferencialidade.

Deveríamos estender o princípio da sinodalidade, o caminho da busca empreendido junto às nossas relações com as pessoas de outras religiões e com quem é sem credo religioso. Para o cristianismo, essa autotranscendência não é uma perda de identidade, mas o cumprimento do mistério central do cristianismo, da mudança pascal.

Em vez de fazer proselitismo, deveríamos cultivar uma cultura de acompanhamento e diálogo, na qual poder compreender não apenas a fé dos outros, mas também a nossa de uma maneira nova. A religião de amanhã deveria ser uma re-legere, uma releitura, uma nova leitura, um novo repensamento, uma nova hermenêutica.

Catolicismo ecumênico hoje significa a coragem da autotranscendência da Igreja, a autotranscendência do cristianismo - Tomáš Halík

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Catolicismo ecumênico hoje significa a coragem da autotranscendência da Igreja, a autotranscendência do cristianismo. Esta autotranscendência - superação das próprias fronteiras institucionais e mentais em relação aos outros - não é uma perda da identidade do cristianismo, mas sim uma implementação do mistério central do cristianismo, a mudança pascal.

Na véspera de sua eleição como pontífice, o cardeal Jorge Mario Bergoglio citou as palavras de Jesus: "Estou à porta e bato"; mas acrescentou que hoje Jesus bate de dentro da Igreja e quer sair, em especial em direção a todos os pobres, os marginalizados e os feridos do nosso mundo, e nós devemos segui-lo. Mas devemos também nos aproximar de todos aqueles que estão em uma busca espiritual, não como possuidores de toda a verdade, mas como aqueles que desejam caminhar junto com eles no respeito mútuo.

Um passo importante no caminho da catolicidade ecumênica foi a decisão do Concílio Vaticano II de utilizar o conceito de “subsistit in” para indicar a relação entre a Igreja de Cristo em sua plenitude escatológica e a Igreja Católica em seu caminho na história. Segundo o Cardeal Walter Kasper, isso implica duas garantias importantes.

Primeiro: nesta Igreja Católica experimentável, existente aqui e agora, subsiste a Igreja de Cristo, aquela misteriosa Esposa de Cristo, cuja glória plena e beleza só se revelarão no horizonte escatológico da eternidade.

Segundo: que esta Igreja Católica Romana não "ocupa todo o espaço" da Igreja de Cristo, de forma que há um lugar legítimo para as outras Igrejas cristãs e para os carismas que Deus gratuitamente doa para além dos confins visíveis da Igreja.

Ainda há espaço para a livre efusão do Espírito que gradualmente guia os discípulos de Cristo à plenitude da verdade até o fim da história - Tomáš Halík

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Da mesma forma, talvez se poderia dizer que a verdade, que é o próprio Deus, existe na doutrina do Magistério, sem contudo esgotar em nenhum momento da história a plenitude do mistério de Deus. A afirmação de que a doutrina oficial da Igreja apresenta a revelação de Deus de modo autêntico e em medida suficiente para a salvação e que nenhuma outra revelação é para ser esperada, certamente não significa que a Igreja pronuncie uma proibição de uma ação ulterior do Espírito Santo.

Ainda há espaço para a livre efusão do Espírito que gradualmente guia os discípulos de Cristo à plenitude da verdade até o fim da história. A questão, porém, é que a abertura a novos dons do Espírito não significa perder de maneira desagradável e frívola o respeito pela importância e irrevogabilidade do tesouro dos dons anteriores do mesmo EspíritoJesus elogiou a sabedoria do dono de casa que tira coisas novas e velhas do seu tesouro.

Também na fé de um único cristão ou naquela de um de um determinado grupo de cristãos (por exemplo, uma escola teológica) vive a fé toda a Igreja, a plenitude do ensinamento cristão; mas a fé e o conhecimento de um único cristão ou de um determinado grupo de cristãos têm sempre os seus limites humanos (históricos, culturais, linguísticos e psicológicos) que o tornam incapaz de compreender toda a fé da Igreja na sua plenitude. Por essa razão, também os crentes individualmente e as escolas de fé e espiritualidade individuais precisam da Igreja em seu conjunto e, naturalmente, de seu Magistério, para se completar e eventualmente se corrigir.

O crente individual participa da fé da Igreja na medida em que suas limitadas capacidades pessoais lhe permitem encarnar o tesouro da fé em sua compreensão, em seu pensamento e em sua ação. Já São Tomás de Aquino ensinava a respeito da fé implícita que nenhum crente pode compreender tudo o que a Igreja crê, mas que apenas uma parte dela é "explicitamente" compreendida e acolhida.

Aquele que acredita possui uma “participação implícita” no que está além de sua compreensão e conhecimento através do ato de confiança em Deus e em sua revelação e, naturalmente, também na Igreja que apresenta tal revelação. Esta consciência deveria levar à humildade e ao reconhecimento da necessidade da comunicação e do diálogo na Igreja.

Além disso, a fé cristã nunca preenche completamente (provavelmente nem mesmo nos santos e místicos) todo o espaço da alma humana, a parte consciente e inconsciente da psique. Nesse sentido, entendo a afirmação do Cardeal Jean Daniélou de que "um cristão é sempre parcialmente um pagão batizado".

Certamente, o batismo tem o caráter de sinal indelével (signum indelible) e de participação real no corpo místico de Cristo, mas a graça do batismo opera dinamicamente no homem e lhe confere um crescimento e um amadurecimento na fé, na medida em que o homem abre a ela o espaço de sua liberdade em todos os níveis de sua existência. Se a fé da Igreja subsiste (subsistit in) na vida espiritual do crente, a ciência religiosa recebida não preenche, no entanto, todo o espaço de sua vida espiritual e assim permanece em seu espírito e em seu coração um lugar legítimo de investigação sobre questionamentos críticos e de dúvidas sinceras.

É saudável que ele se pergunte humildemente se o seu caminho de fé é autêntico, se é fiel à tradição, mas também como Deus o guia em sua consciência. Portanto, o destinatário final de seus questionamentos não pode ser apenas a autoridade eclesiástica, mas o próprio Deus, presente no santuário de sua consciência, Deus que lhe fala não só nos ensinamentos da Igreja, mas também nos sinais dos tempos e na os eventos de sua própria vida.

O dom da fé, quer lhe seja transmitido pela educação ou pela influência do ambiente, ou obtido como resultado de uma busca pessoal, é sempre um dom incomensuravelmente precioso da graça de Deus, mas igualmente preciosa é aquela "inquietude do coração humano” de que fala Santo Agostinho. Essa inquietude não permite se acomodar em uma determinada forma de fé aceita ou alcançada, mas é sempre busca e desejo de ir além. Também os questionamos críticos, as dúvidas e as crises de fé podem propiciar impulsos valiosos nesse caminho. 

O diálogo da fé da Igreja com esta "fé intuitiva" de pessoas distantes da Igreja pode ser útil para ambas as partes - Tomáš Halík

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Também eles podem ser considerados como um dom de Deus, como uma "graça adjuvante". O Espírito de Deus não só ilumina a razão do homem, mas também atua como uma "intuição" nas profundezas de seu inconsciente e essa consciência é preciosa para refletir sobre a "fé dos não crentes"; mesmo as pessoas que não foram alcançadas pela anunciação da Igreja, ou não a receberam de forma tal a poder aceitá-la honestamente podem ter uma certa intuição da fé. O diálogo da fé da Igreja com esta "fé intuitiva" de pessoas distantes da Igreja pode ser útil para ambas as partes.

Não se deter nas formas habituais

"Deus é maior do que os nossos corações", afirma São Paulo. Mas "nosso coração" é maior do que nossa razão, nossas "convicções religiosas", nossos atos de fé conscientes e refletidos, nossas "profissões de fé" sabem de Deus. Na tradição agostiniana, Blaise Pascal conhecia em especial aquela "razão do coração" (raison), da qual a razão ("razão pura") nada sabe. Mas devemos ter cuidado para não limitar o conceito bíblico, agostiniano e pascaliano do coração apenas à "emotividade".

C.GJung afirmava que o componente consciente e racional de nossa psique é como uma minúscula parte de um iceberg que emerge do mar; a parte maior e mais importante está no inconsciente, não apenas pessoal, mas também no "inconsciente coletivo". É aí que nascem as ideias, as inspirações, as razões ocultas de nossas ações.

Quando Deus, que é "maior do que o nosso coração", entra na nossa vida, estende ao infinito a profundidade e a abertura do nosso ser, que chamamos simbolicamente de coração - Tomáš Halík

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