VII- REFLEXÃO
DOMINICAL II
INVESTIR NO REINO DE
DEUS
Por Pe. Johan Konings, SJ
I.
INTRODUÇÃO GERAL
A liturgia de hoje tem acento duplo:
sapiencial e escatológico. A segunda parte do evangelho é claramente
escatológica (parábola da rede), e com isso sintonizam as orações. Mas o tema
principal é o do “investimento” da pessoa naquilo que é seu valor supremo. Este
tema, mais sapiencial, retém nossa atenção. Aparece na primeira parte do
evangelho (o tesouro, a pérola) e na primeira leitura (o rei Salomão não pediu
a Deus riqueza, e sim sabedoria, isto é, o dom de distinguir entre o bem e o
mal).
II.
COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1.
I leitura (1Rs 3,5.7-12)
O tema principal da liturgia de hoje é
ilustrado pela primeira leitura: o rei Salomão não pede a Deus riqueza, e sim
sabedoria, isto é, o dom de julgar e decidir acertadamente, “distinguindo entre
o bem e o mal” ( v. 9). Esta leitura nos convida a ler o episódio seguinte do
livro dos Reis, a aplicação prática dessa sabedoria (1Rs 3,16-28: o “julgamento
salomônico”). O próprio fato de não pedir outra coisa já mostra a sabedoria.
Ainda assim, além da sabedoria, Deus lhe deu, como que “de brinde”, algumas
coisas menos importantes (riqueza, fama, longa vida; cf. 1Rs 3,13-14). 2.
Evangelho (Mt 13,44-52) O evangelho contém as últimas parábolas e a conclusão
do “sermão das parábolas” de Mt 13: as parábolas do tesouro e da pérola, que
ensinam o pleno investimento no Reino (v. 44-46), e a parábola da rede, que ilustra
a situação “mista” da Igreja (mistura de fiéis convencidos e de batizados
mornos) até o tempo final (v. 47-50). Nos últimos versículos coloca-se a
pergunta “compreendeis?” (v. 51), dirigida aos discípulos do tempo de Jesus e
aos de hoje também. Esse “compreender” consiste em receber em si todas as
palavras do Senhor, tiradas do tesouro que contém “coisas novas e velhas” (v.
52). As “coisas novas” são o novo ensinamento de Cristo; as “velhas”, a
releitura cristã das antigas Escrituras e tradições judaicas. Essa releitura
está sendo feita desde os primeiros tempos da Igreja (a igreja judeu-cristã do
evangelista Mateus) até hoje (por exemplo, na primeira leitura na liturgia
dominical, no uso dos salmos etc.). Por esta razão, o mestre cristão é chamado
de “escriba instruído no Reino dos Céus” (v. 52). Olhemos primeiro as parábolas
da pérola e do tesouro. O negociante que aparece na parábola da pérola é um
homem de bem, perspicaz (como Salomão, na 1ª leitura). Ele arrisca tudo o que
tem num investimento que lhe parece valer a pena (Mt 13,44). Para que o ouvinte
compreenda melhor, esta parábola vem acompanhada de outra, que até parece
elogiar a “especulação imobiliária”: um homem vende tudo para comprar um campo
no qual está escondido um tesouro (v. 45-46). A lição destes textos é: investir
tudo naquilo que é o mais importante. Isso parece sabedoria humana, mas
aplica-se muito bem à realidade divina, ao Reino de Deus. Mas em que consiste,
concretamente, o tesouro desta parábola? Para discernir isso, precisamos da
sabedoria que Salomão pediu (cf. 1Rs 3,9) e que lhe propiciou pronunciar juízos
sábios (cf. 1Rs 3,16-28). Ora, sabendo que Deus tem predileção pelos que mais
precisam, os pobres e desprotegidos, podemos pensar que neles está o melhor
investimento. É isso que fez o diácono e mártir Lourenço quando o imperador lhe
pediu que mostrasse os tesouros da Igreja: mostrou-lhe os pobres de Roma. Essas
parábolas sugerem duas atitudes básicas. Há um momento negativo, o
desprender-se das posses que não vale a pena segurar. Pensando bem, Salomão
relegou a riqueza material para o segundo plano (pelo menos, em sua oração).
Mas fez isso em função do momento positivo, que é o investir naquilo que é
realmente o mais importante, aquilo em que Deus mesmo investe: justiça e bondade,
iluminadas pela sabedoria. A atitude negativa (o desprendimento) e a positiva
(o investimento) são “dialéticas”: uma não funciona sem a outra. Não somos
capazes de nos desprender daquilo que é secundário se não temos claro o
principal. Por falta do que é principal – a saber, o investimento do amor –, o
esforço do desprendimento pode virar masoquismo, prazer em diminuir-se a si
mesmo. Por outro lado, nunca conseguiremos investir o nosso coração para
adquirir a pérola do Reino de Deus se não soubermos nos desprender das joias
falsas que enfeitam nossa vida. Por isso, há tanto idealismo que não consegue
ir além de um suspiro piedoso... A leitura mais longa do evangelho apresenta
ainda a parábola escatológica da rede, que encerra a coleção reunida no “sermão
das parábolas” de Mateus (Mt 13,47-50). Esta parábola, muito semelhante à do
joio e do trigo, lida no domingo passado, lembra que no tempo atual bons e
ruins ficam misturados, mas no fim será feita a triagem. Na leitura evangélica
abreviada, esta parábola fica fora, e o pregador que assim preferir pode deixar
esse assunto para o fim do ano litúrgico (32º-34º domingos do tempo comum).
Contudo, esse pensamento escatológico dá um peso especial ao tema sapiencial do
investimento, acima abordado. Ensina-nos que se trata de um investimento para
sempre. Responde, assim, à pergunta dos antigos mestres espirituais: “Que é
isso em vista da eternidade?” E serve também como antídoto contra o desânimo
que pode tomar conta de nós ao constatarmos, ao nosso redor, tanta coisa que
não presta. No fim será feita a triagem.
2.
II leitura (Rm 8,28-30)
Na segunda leitura, encontramos um dos textos
maiores da carta aos Romanos: o planejamento de Deus e sua execução. Deus, como
bom empreiteiro, faz todo o necessário para o bem daqueles que o amam, levando
a termo a execução de seu desenho (“desígnio”) (v. 28). O texto é construído em
redor da corrente conhecer-destinar-chamar-justificar-glorificar: as fases do
acabamento, por Deus, do ser humano; uma obra de arquiteto. Deus de antemão
conheceu os que queria edificar, como um arquiteto tem o edifício na mente; ele
os projetou (“predestinou”; o termo grego proorizein significa “planejar,
projetar”) conforme o protótipo que é Jesus mesmo, seu Filho querido, ao qual
ele gostaria que todos se assemelhassem. E aos que assim planejou, também os
escolheu (“chamou”); os “justificou” (qual empreiteiro que verifica sua obra
durante a execução, decidindo se serve ou não) e, arrematando a obra, os
“glorificou” (como em certas regiões os construtores celebram o arremate
coroando de flores a cumeeira da casa nova). O protótipo é Jesus Cristo mesmo:
o primogênito dos mortos. O Espírito já nos tornou filhos (Rm 8,16). Agora é só
levar a termo a obra de arte já iniciada (v. 30). E o distintivo do cristão é
que ele tem consciência de ser essa obra (“sabemos”, v. 28). Esse texto nos faz
entender o que os teólogos chamaram de “predestinação”: não significa que Deus
criou uns para serem salvos e os outros (a “massa condenada”) para serem
perdidos. Significa que, como bom empreiteiro, Deus faz tudo o que for preciso
para completar perfeitamente a salvação naqueles que a ela se dispõem; e como
conhece o coração de todos, ele também conhece os que se abrem à salvação e os
que não se deixam atingir. O pregador que optar por acentuar a linha
escatológica na liturgia de hoje (cf. Mt 13,47-52) encontrará nesta leitura um
tema digno de reflexão.
III.
PISTAS PARA REFLEXÃO: escolher é renunciar
Renunciar não está na moda, é contrário à
economia de mercado, ao consumo irrestrito... O evangelho, porém, mostra a
atualidade eterna da renúncia. E para entender isso melhor, a liturgia nos
lembra primeiro o exemplo de Salomão. Quando Deus o convidou para pedir o que
quisesse, ele não escolheu poder e riqueza, mas sim sabedoria, para julgar com
justiça (1ª leitura). Jesus ensina o povo a escolher o que vale mais: o Reino
de Deus. Para participar do Reino, vale pôr tudo em jogo, como faz um
negociante para comprar um campo que esconde um tesouro ou para adquirir uma
pérola cujo valor resiste a qualquer crise. O que se contrapõe, nestas
leituras, são, por um lado, as riquezas imediatas (materiais), por outro, o dom
que Deus nos dá (para Salomão, a sabedoria no julgar; para nós, o Reino). Na
hora de escolher, deve prevalecer o dom de Deus, e o resto tem de ser
sacrificado se for preciso. Qual seria o dom de Deus hoje? Aquilo que queremos
ter em nosso poder, aquilo que com tanta insistência agarramos e procuramos
segurar? Nossas posses, privilégios de classe, status etc.? Ou, antes, participar
da comunhão fraterna, superar o crescente abismo entre ricos e pobres e
transformar as estruturas de nossa sociedade, para que todos possam tomar parte
na construção do mundo e da história que Deus nos confia? “Os pobres, nosso
tesouro”, como apontou o diácono Lourenço ao imperador que desejava os tesouros
da Igreja. Queremos investir tudo, os nossos bens materiais, culturais etc.,
para edificar uma sociedade que encarne melhor a justiça de Deus? Às vezes, a
gente preferiria não fazer escolha nenhuma e ficar com tudo: a riqueza, o poder
e, além disso, Deus. Como os que durante a semana exploram seus funcionários,
seus clientes e a sociedade toda, mas no domingo querem bela missa para Deus...
Isso não vale. Quem não escolhe não se realiza. Para se realizar, é preciso
decidir, e “de-cidir” é fazer uma cisão, cortar. Optar e renunciar é que nos
torna gente. O grande escultor Michelangelo disse que realizava suas obras de
arte cortando fora o que havia demais. Podemos meditar neste sentido sobre a
segunda leitura de hoje: Deus, artesão perfeito, quer fazer de nós uma obra de
arte: conhece o material, projeta, escolhe, endireita... até coroar sua obra
que somos nós, feitos imagem de seu Filho. O cristão deve, de maneira absoluta,
renunciar ao pecado; é essa uma das promessas de nosso batismo. Mas, se for
preciso para servir melhor o Reino de Deus, ele deve renunciar também a muitas
coisas que não são más em si (riqueza, prestígio etc.). Pois o Reino vale mais
do que tudo.
Pe.
Johan Konings, sj
Nascido na Bélgica, reside há muitos
anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em
Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina.
Atualmente, é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo Horizonte.
Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo
Testamento (tradução), Evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica
bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia;
A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos
fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A
Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e
Lucas e da “Fonte Q”.
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/27-de-julho-17o-domingo-do-tempo-comum/
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