XII- REFLETINO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *
)
"SERIA O FILHO MAIS
VELHO, O PERVERSO? VERSO, REVERSO, E O LADO CONTROVERSO DA PARÁBOLA DO FILHO
PRÓDIGO"
"Se é verdade que o
corpo é revelador de nossa idade, não
é menos verdade que a
mente seja reveladora de nossa mentalidade" [L.S.M.]
Se nossa "hipótese
diagnóstica" faz sentido, mesmo admitindo outras igualmente válidas, os
três principais personagens da Parábola do Filho Pródigo - o Pai, o Filho mais
Novo e o filho mais Velho - são representativos de três diferentes
"mentalidades", e não, como geralmente se pensa e se crê, de três
diferentes pessoas ou de três diferentes faixas etárias. Tampouco ignoramos as
eventuais razões pelas quais a Parábola não fala e sequer menciona a presença
de uma mãe e de uma possível irmã, na estória. Apenas estamos optando por
trabalhar com os fatos e os personagens citados, ainda que em forma de
"hipótese diagnóstica", como já mencionado, deixando a tarefa de interpretar
as possíveis razões dessa lacuna ou "ausência" para quem
eventualmente tenha interesse sobre o assunto e se disponha a abordá-lo. Nossa
pergunta final, portanto, pode ser assim equacionada: que diferentes
mentalidades tanto o autor quanto o redator da Parábola do Filho Pródigo -
Jesus e Lucas, respectivamente - parecem pretender retratar com essa
paradigmática "estória"? As três "mentalidades" com as
quais você estará interagindo a seguir, não representam necessariamente minha
interpretação preferida para a Parábola. Antes, representam minha intenção e
minha tentativa de identificar a intenção primeira e primordial tanto de seu
criador como de seu redator. Apenas e tão somente uma tentativa; nada mais que
isso. Feita essa ressalva, podemos prosseguir com nosso objetivo principal já
mencionado. Um primeiro ponto parágrafo, com sua permissão, claro, talvez possa
ser considerado bem-vindo.
A MENTALIDADE DA AUTONOMIA
IMPULSIVA, REPRESENTADA PELO FILHO E IRMÃO MAIS JOVEM, O PRÓDIGO.
Essa mentalidade pode ser
caracterizada, antes e acima de tudo, pelo desejo intenso de liberdade,
independência e autonomia, ancoradas na percepção e na crença de que a
felicidade se encontra fora dos limites da casa paterno-materna e para além dos
limites das regras e normas estabelecidas. Revela-se com mais nitidez na
intenção, na escolha e na atitude de quem pretende "descobrir o mundo e a
vida" sem se preocupar minimamente com as consequências de sua decisão
resoluta e de sua atitude por vezes um tanto precipitada. Orientada pela impulsividade
a pessoa acaba tomando decisões baseadas no sentimento e na emoção do momento,
sem considerar, como deveria, as prováveis repercussões e consequências futuras
de médio e longo prazo. É bastante comum que pais, cuidadores e educadores,
interpretem tal mentalidade como sintoma e expressão de indisciplina,
insubordinação e rebeldia, visto que nela está impregnada certa visão das
regras e normas como estruturas limitantes e até incapacitantes, e não como
recursos resguardadores de cuidado e
ampliadores de proteção. Paralela e complementariamente, tal mentalidade
quase sempre se faz acompanhar de certa percepção megalomaníaca e de uma
acentuada ilusão de autossuficiência, fazendo com que a pessoa - quase sempre
jovens e adolescentes - esteja
convencida de que pode viver sem depender de ninguém para absolutamente nada,
confiando apenas em seus próprios recursos e em sua auto suficiência. A
herança, no caso específico da Parábola em foco, era vista como nada mais que
um direito, e como tal foi reivindicada: "dá-me a parte da herança que me
cabe"; nem uma palavra a mais. Na maioria das vezes caberá à experiência,
quase sempre pela via da da provação, da
dor e do sofrimento, ser a grande interpeladora e mestra dessa mentalidade,
visto que o princípio de realidade mais cedo ou mais tarde acaba se impondo e
decretando árduas e inesperadas consequências, decorrentes da decisão
precipitada e das escolhas imprudentemente malfeitas.
Do ponto de vista
psicológico, a mentalidade da "autonomia impulsiva" é comum em pessoas
que acreditam que a felicidade está antes de tudo, e sobretudo, em algo externo
e distante, uma espécie de "utopia" idealizada, que na juventude e na
adolescência é percebida não exatamente como algo irrealizável, e sim como algo
inesgotável, de caráter aventureiro e desafiador. Para completar o quadro, a
falta de experiência e a imaturidade emocional terminam dificultando e por
vezes impedindo uma avaliação mais equilibrada e realista das próprias
deficiências, fragilidades e limitações. A dor, o sofrimento e a decepção,
assim como o impacto que as inúmeras e inesperadas surpresas acabam portando
consigo, acabam funcionando como um "ponto de virada", de tomada de
consciência e de "caída em si", visando a reconstrução interna em
favor de uma visão menos utópica, menos excessivamente otimista e mais
realista, ainda que permeada de esperança, como quer e ensina Ariano Suassuna.
Por outro lado, a mentalidade da "autonomia impulsiva" pode refletir
também um comportamento de esquiva e de fuga, ora em razão das exigências e
responsabilidades inerentes a cada fase específica da vida, ora motivado pelo
desconforto inevitável de uma rotina que
cerceia a liberdade e a autonomia dos espíritos mais aventureiros e desbravadores,
ou simplesmente porque se vive em um lar ou em um ambiente percebidos como limitantes e "castradores" para
quem se percebe como sendo águia e se vê tratado e constrangido a viver como
galinha. Quando finalmente a realidade se impõe com toda sua nudez e sua força,
costuma provocar um choque impactante,
decorrente do flagrante contraste entre um mundo utopicamente idealizado e o
mundo concreto e real, percebido como insano e brutal. Impõe-se assim a
necessidade de um novo "recomeço", alicerçado em percepções e crenças
mais verossímeis e mais realistas. O Filho Pródigo não foi com certeza poupado
desse confronto, o que pode ter sido determinante tanto para sua tomada de
consciência como para sua decisão corajosa em empreender o caminho de volta
para casa, com todas as consequências adversas que tal decisão poderia
eventualmente acarretar.
Do ponto de vista espiritual
o personagem retratado pelo filho mais novo da Parábola, o Pródigo, parece
representar aqueles que buscam sentido e significado antes de tudo em
experiências externas, prazerosas porém passageiras, mas que por fim terminam
se dando conta de que a realização maior e mais plena do ser humano não se
encontra naquilo que ele conquista, possui ou está em condições de possuir,
material e economicamente falando, e sim naquilo que se é e na pessoa na
qual cada um vai se tornando ao longo da
vida. Essa nova e mais rica percepção - que os orientais chamariam de
"iluminação" - culminando com a decisão coranosa e determinada do
Filho Pródigo em retornar à casa paterno-materna, sugere a experiência de um
autêntico "despertar espiritual", representado pelo aprendizado da
mais importante das lições: a de que o amor e a misericórdia são muitíssimo
mais poderosos que qualquer erro ou tomada impulsiva de decisão por parte do
ser humano. Dessa forma, a epopéia do Filho Pródigo retrata inequivocamente uma
trajetória paradigmática, proposta como advertência e orientação, por um lado,
e como referência de amor e misericórdia incondicionais, por outro. Com certeza
o filho que decide partir e deixar a
casa paterno-materna não era mais o mesmo que a ela retornava tempos depois. O
pai-personagem com certeza sabia disso; já o filho mais velho-personagem, com
certeza não. Sua mentalidade era bem outra, como veremos a seguir.
A MENTALIDADE DA JUSTIÇA
MERITOCRÁTICA REPRESENTADA PELO FILHO E IRMÃO MAIS VELHO.
Tal mentalidade está
alicerçada, antes e acima de tudo, na percepção e na crença de que esforço e
obediência inevitavelmente atraem e devem resultar em privilégios específicos e
reconhecimento diferenciado. Quem a adota vê e percebe a vida e o viver de
forma rígida, austera, rigorosa e implacável, esperando que as regras e as
normas sejam rigorosamente cumpridas por todos, e que consequências e
recompensas sejam distribuídas
proporcionalmente, de acordo com o mérito, o esforço e a abdicação de cada um.
Observe como tal mentalidade porta consigo um senso de justiça próprio,
reputado como ideal e percebido como inquestionável, segundo o qual tudo deve
ser distribuído rigorosa e proporcionalmente de acordo com o espírito de
sacrifício e o mérito de cada qual. Quem pensa e age dessa forma acabará obviamente tendo grande dificuldade em lidar
com afetos e sentimentos de gratuidade, compaixão, generosidade, e, claro,
perdão. Não consegue entender por quais razões alguém que "errou", "traiu",
"escolheu mal", "fez mal uso da liberdade", "malversou
bens e riquezas", deva ser recebido, acolhido e reincluído, celebrado e
festejado, como se fosse uma espécie de ovelha perdida ou um
"morto-recém-ressuscitado". Paradoxalmente, como não poderia deixar
de ser, o sentimento primeiro e mais forte que se apodera de tais pessoas é o
de "injustiça". Compara-se de pronto e sem rodeios com o beneficiário
da remissão da dívida e do perdão do pecado, concluindo que sua fidelidade permanente
e seu árduo trabalho não estão sendo reconhecidos e valorizados como seria
justo e esperado que assim acontecesse. Tomada de ressentimento, frustração e
decepção, a pessoa que se vê assim injustiçada começa interna e silenciosamente
a desenvolver um sentimento de amargura, mágoa, desgosto e ressentimento, que
finalmente descambam para uma raiva e um ódio sem limites, tanto para com quem
perdoa, acolhe e reintegra, como para com quem é perdoado, acolhido e
reintegrado. Ao perceber que o mundo não funciona da forma como ela julga e
espera ser tratada, tal pessoa termina desencandeando um processo doentio de
autocomiseração, por se sentir injustiçada, insuficientemente reconhecida, e
pouco valorizada, sobretudo quando confrontada com aqueles que ela considera
não serem merecedores de absolutamente nada.
Do ponto de vista
psicológico pessoas com mentalidade meritocrática costumam ter um forte senso
de responsabilidade e uma grande necessidade de reconhecimento e de validação
externa. Tendem a medir e Aquilatar seu valor pelo que fazem e se esforçam por
fazer, e não pelo que são e se esforçam por ser, o que quase sempre acaba
resultando em desequilíbrio afetivo e
insegurança emocional. Não raro a dificuldade em lidar com a compaixão alheia
tem sua origem no medo intenso e irracional de que seu próprio esforço possa
ser inútil, e portanto não valer a pena. Isso pode acabar gerando graves
conflitos interpessoais, pois quem pensa e se comporta dessa forma espera que
os outros vivam de acordo com os mesmos critérios rígidos, austeros e
implacáveis adotados por sua pessoa. Quando tais expectativas não se confirmam,
a desconfiança e o ressentimento acabam tomando lugar e fazendo com que a
pessoa vá se afastando cada vez mais do convívio e da interação saudável com os
demais, sejam pessoas do seu círculo de trabalho, de escola, de amizade, e de
outros mais.
Do ponto de vista da
espiritualidade a Parábola parece sugerir que o filho mais velho representa
aqueles que seguem rigorosamente as regras e normas e esperam um reconhecimento
adequado e uma retribuição proporcional por isso, mas se esquecem que Deus não
pauta sua conduta e seu comportamento tomando como base o mérito e a justiça
estritamente humana, e sim impulsionado pela força de seu amor infinito e
incondicional. A rigor a doutrina ou ideologia do mérito não encontra respaldo
nem no ensino e menos ainda na prática pastoral de Jesus. Pelo contrário,
inúmeras outras parábolas não deixam dúvidas a esse respeito, e tampouco deixam
margem para interpretações diferentes e forçadas. Ele declara abertamente que
veio para que todos - sem exceção a essa regra - tenham vida, mas não uma vida
qualquer, e sim uma vida plena e
abundante. Isso, a começar pelos mais pobres e miseráveis, os doentes e
enfermos, os segregados e excluídos, os pequenos e esquecidos, os que estão
nus, famintos, sedentos e aprisionados. É com esses que Ele se identifica e
manifesta seu desejo de ser identificado. Dessa forma, o grande desafio para os
ideólogos, os defensores e os doutrinadores da assim chamada "justiça
meritocrática", passa a ser a imperiosa necessidade de compreender que a
graça transcende o mérito, que o amor supera a justiça, e que nosso vínculo e
nossa relação - seja para com Deus, seja
entre nós humanos - não se baseia em promessas, trocas e escambos de qualquer
tipo. E se o mérito, com certeza, tem seu lugar e seu valor numa eventual
"história da salvação", ainda assim não podemos nos esquecer, como
faz questão de nos lembrar Santo Agostinho, que "quando Deus coroa nossos
méritos, nada mais faz que coroar seus próprios dons". Se o Filho mais
Velho continuou do lado de fora recusando-se a entrar, apesar dos insistentes
apelos do Pai para que ele entrasse, se alegrasse e se juntasse ao coro dos que
se regozijavam e agradeciam pelo retorno do filho e do irmão, com certeza não
terá sido por falta de amor, de reconhecimento, e muito menos por um ato de
injustiça do Pai para com ele, e sim, única e exclusivamente em razão de sua
convicção doentia e de sua ideologia meritocrática vétero-testamentária caduca
e ultrapassada. Ainda assim sua atitude está longe de poder ser classificada
como torpe, cruel, e muito menos perversa. O que ela de fato denota é uma
intenção sincera e reta, porém ainda arraigada numa ideologia religiosa chamada
"justiça meritocrática", que até mesmo escritos e livros religiosos
vétero-testamentários - como é o caso do Livro de Jó - já haviam questionado,
colocado sob suspeita, e trazido à discussão. Com o Novo [Testamento], e em
especial com o ensinamento e a prática de Jesus, essa discussão definitivamente
se encerra. De uma vez por todas, para ser bem claro. "In
perpetuum!".
(* ) Reflexão enviada de
Vitória –ES pelo autor, via whatsApp
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