sábado, 30 de julho de 2022

SANTO AGOSTINHO E O PENSAMENTO SOCIAL: A CARIDADE E O RETO USO DOS BENS

 


A caridade e o reto uso dos bens

Francisco Venceslau de Oliveira Jales1

João Paulo Araújo Pimentel Lima2

 

É importante salientar que o desejo que Agostinho demonstra pela igualdade no seu Comentário a primeira carta de São João, não se refere à abolição das classes ou funções sociais, mas à igualdade de dignidade. Pois os bens mínimos destinados à vida humana foram dados por Deus a todos para serem usados ordenadamente:

Deus, pois, sapientíssimo criador e justíssimo ordenador de todas as naturezas, que na terra estabeleceu o gênero humano para ser-lhe o mais belo ornamento, deu aos homens certos bens convenientes a esta vida, quer dizer, a paz temporal, pelo menos a de que nosso destino mortal é capaz, a paz na conservação, integridade e união da espécie, tudo o que é necessário à manutenção ou à recuperação dessa paz, como, por exemplo, os elementos na convivência e no domínio de nossos sentidos, a luz visível, o ar respirável, a água potável e tudo quanto serve para alimentar, cobrir, curar e adornar o corpo, sob condição, muito justa, por certo, de que todo mortal que fizer uso legítimo desses bens apropriados à paz dos mortais os receberá maiores e melhores, a saber, a paz da imortalidade, acompanhada de glória e de honra próprias da vida eterna, para gozar de Deus e do próximo em Deus.36

E para que esses bens sejam usados ordenadamente, a fim de obtenhamos tanto a paz terrena como a celeste, Deus deixou dois preceitos:

... o amor a Deus e o amor ao próximo, nos quais o homem descobre três seres como objeto de amor, isto é, Deus, ele mesmo e o próximo, e não pecar , amando-se a si mesmo, quem ama a Deus, é lógico leve cada qual a amar a Deus o próximo a quem o mandam amar como a si mesmo. Assim deve fazer com a esposa, com os filhos, com os domésticos e com os demais homens com quem puder, como quer olhe o próximo por ele, caso venha a necessitar. Assim terá paz com todos em tudo que dele dependa, essa paz dos homens que é a ordenada concórdia. Eis a ordem que se há de seguir: primeiro, não fazer mal a ninguém; segundo, fazer bem a quem a gente possa.37

Tal ordem precisa ser rigorosamente respeitada para que os homens mantenham, entre si, uma relação de colaboração mútua e não de dominação, pois Deus: “Quis que o homem racional, feito à sua imagem, dominasse unicamente os irracionais, não o homem ao homem”38. Portanto, para garantir o ideal de igualdade, mesmo entre aqueles que mandam e os que obedecem (seja em relação aos deveres domésticos ou políticos), é preciso que exista um vínculo baseado não no domínio, mas no amor mútuo. Pois, o homem justo até quando exerce autoridade, o faz servindo, e a “... razão é que não manda por desejo de domínio, mas por dever de caridade, não por orgulho de reinar, mas por misericórdia de auxiliar” 39 . Não podemos esquecer que a busca pela igualdade atinge também um sentido político quando é estimulada a participação na vida pública a fim de tornar a sociedade mais justa e pacífica40. No entanto, se não é possível criar as condições objetivas de igualdade, cada um deve fazer a sua obrigação, que começa pelo atendimento aos mais pobres. Portanto, temos a dever de dividir e quem não compartilha o seu supérfluo não age com caridade e não está com Deus. Para Agostinho, numa sociedade desigual, a atitude ideal é que ocorra a doação do excedente, pois aquilo que o homem tem de supérfluo já não lhe pertence mais, porque os bens são de quem deles precisa; de modo que “... possuem bens alheios os que possuem bens supérfluos” 41 . O apego aos bens materiais é contrário ao preceito da caridade e se torna um obstáculo para a vida feliz. Quando, ao invés de compartilhar o excedente, o homem acumula riquezas, atrai para si dois grandes problemas. O primeiro é a negação da ordem do amor e, por conseguinte, o afastamento de Deus. Pois, se Deus está onde existe a caridade, aquele que não a pratica também não vivencia a presença de Deus. E o segundo são os próprios males oriundos do acumulo de bens e riquezas, que o afastam da vida feliz:

 

As riquezas, o brilho das honras e as demais vaidades com as quais os mortais se julgam felizes — por não conhecerem a verdadeira felicidade — nada trazem de seguro. Pois, que consolo podem trazer, quando para essas pessoas é mais importante a ostentação do que o necessário? Quando os bens adquiridos atormentam mais pelo temor de os perder, do que pelo prazer de os possuir? Com tais bens os homens não se tornam bons. Os que chegam a se tornar bons, na verdade, é pelo bom uso que deles fazem. E isso é o que torna esses bens algo de bom.42

Portanto, se não são usados retamente, os bens constituem um obstáculo para a vida feliz, e seu acúmulo é nocivo para a vida dos homens. Para Agostinho, quem amontoa riquezas, preenche-se de perturbações e afasta-se da beatitude. Logo, é preferível ter uma vida moderada; e o supérfluo deve ser obrigatoriamente divido, pois o ato de acumular constitui grave transgressão da ordem do amor. Poder-se-ia, então, perguntar: já que o acúmulo de bens constitui um obstáculo para a vida feliz e, de acordo com a ordem do amor, é imperativo doar o excedente, existe, no pensamento de Agostinho, uma predileção para a comunhão de bens e, por conseguinte, certo desprezo pela propriedade privada? A resposta seria positiva, pois, como demonstram seus escritos, ele tem uma clara preferência pelo que é comum em detrimento do que é privado43 .

Contudo, não há uma explícita condenação da propriedade privada. O que existe, na verdade, é uma tolerância à propriedade privada se considerada o uso correto da mesma. Segundo Ramos, o que Agostinho afirma é que a posse dos bens deve ser orientada pela ordem do amor44. E, conforme já apresentamos, esta ordem nos impele à assistência aos mais pobres e ao compartilhamento dos bens supérfluos. E no caso específico do Estado, é preciso que ele funcione para diminuir as injustiças, tornando menos nociva a opressão sobre os mais frágeis. Não existe, portanto, uma acomodação às regras civis. A lei terrena deve ser guiada pela lei eterna e, assim, garantir o mínimo de injustiças, enquanto a verdadeira amizade, baseada no amor gratuito, não é efetivada. Por esse motivo, torna-se claro que há, no pensamento social de Agostinho, uma preferência do comum sobre o privado. Tanto os homens como Estado devem agir priorizando o bem comum. Pois “... para a caridade importa mais o que é comum do que o que é privado”45 uma vez que “... é no privado que se deleita toda a soberba”46 . Em outros momentos, entretanto, o Bispo de Hipona chega a tecer críticas contundentes aos bens particulares, inclinando seu pensamento para uma apologia à comunhão dos bens. Diz ele: “... necessariamente se torna soberbo quem possui bens particulares”47 . Neste sentido, poderíamos então considerar a posse de qualquer bem um passo para a soberba? Agostinho desenvolve uma resposta a essa pergunta em uma longa e importante passagem do seu Comentário aos Salmos:

Quem, contudo, quer arranjar um lugar para o Senhor, contente fica não com seus bens particulares, mas com os comuns. Foi isso que os fiéis então fizeram com seus próprios bens; puseram-nos em comum. Então perderam o que tinham de seu? Se os possuíssem sozinhos, cada qual teria o que era seu; teria apenas isso; ao tornarem comuns seus bens particulares, também os bens dos outros se fizeram seus. A caridade esteja atenta. Por causa dos bens que cada um de nós possui, existem contendas, inimizades, discórdias, lutas entre os homens, tumultos, dissensões, escândalos, pecados, iniquidades, homicídios. Por que razão? Por causa do que possuímos em particular. Acaso brigamos por causa do que possuímos em comum? Em comum respiramos o mesmo ar, vemos em comum o mesmo sol. Felizes, portanto, os que de tal modo dispõem um lugar para o Senhor, que não gostam de ter bens particulares.48

Não se pode negar que há em Agostinho uma veemente defesa da comunhão dos bens. Pois, o compartilhamento destes é um caminho para o fim das pelejas entre os homens, ao passo que o seu acúmulo inclina a humanidade à soberba. Por fim, vejamos como bispo de Hipona antepõe o comum ao privado na sua obra Regra para os servos de Deus:

Igualmente, que ninguém trabalhe para si próprio, mas cada um de vós trabalhe em favor de todos. E nisso ponha mais aplicação, constância e zelo do que se trabalhasse em benefício pessoal [...]. Isso significa que o bem comum deve se antepor ao bem particular e não o bem particular ao comum. E, assim, podereis medir vosso crescimento, pelo modo com que vos preocupais com o interesse comum, colocando-o acima de vosso interesse particular.49

Apesar de ter sido escrita para o uso monástico, a Regra traz ensinamentos universais importantes que corroboram as citações das outras obras. Portanto, não restam dúvidas de que, entre o comum e o privado, Agostinho demonstra uma clara preferência pela vida em comum, ou seja, pela comunhão dos bens

Conclusão

Embora o Bispo de Hipona não aborde os temas de forma sistemática, é possível traçar, através do corpus agostiniano, os caminhos do seu rigoroso pensamento. Acerca da caridade, buscamos realizar uma análise, à luz do seu pensamento social, levantando passagens de seus tratados, comentários e cartas, que fossem suficientes para comprovar a tese final deste texto: o amor a Deus implica necessariamente no amor fraterno, e este se concretiza na prioridade do comum frente ao particular, no que diz respeito o uso dos bens. Desse modo, entendemos que o compromisso com o bem comum, exposto por Agostinho, deve nortear a lei terrena. E mesmo que a opção pela comunhão dos bens e a igualdade social jamais seja alcançada, ela funciona como um ideal, ou seja, como modelo de uma sociedade onde imperam a caridade e a justiça. Pois uma vida orientada pela caridade fraterna é, sem dúvida, uma vida a serviço do outro.

 

NOTAS

1 Professor do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará – UECE.

2 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará – UFC

36 De civ. Dei, XIX, 13. 

37 De civ. Dei, XIX, 14.

38 De civ. Dei, XIX, 15

39 De civ. Dei, XIX, 14

40 Cf. Ep., 138, III, 17.

41 En., Ps., 147, 12.

 42 Ep. 130, 1, 3.

43 Cf. Ep. 140, 24-25.

44 Cf. RAMOS, Manfredo. A ideia de estado na doutrina ético-política de Santo Agostinho: um estudo do Epistolário comparado com o “De Civitate Dei”. Porto Alegre: Letra&Vida, 2015. p. 262.

45 Ep. 140, 25, 62. “Y pues la caridad mira más por lo común que por lo privado”

46 Ep. 140, 24, 61. “en lo privado en lo que se deleita toda soberbia”.

47 En. Ps., 131, 7.

48 En. Ps., 131, 5.

49 Reg., V, 31

 

Referências

AURELIUS AUGUSTINUS. A Cidade de Deus: contra os pagãos (livros I-X). Tradução de Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes/ São Paulo: Federação Agostiniana Brasileira, 1991, vol. I, 3ª ed. ______. A Cidade de Deus: contra os pagãos (livros XI-XXII). Tradução de Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes/ São Paulo: Federação Agostiniana Brasileira, 1990, vol. II, 2ª Ed

. ______. A doutrina cristã: manual de exegese e formação cristã. Tradução, adaptação e notas de Nair de Assis Oliveira. 2 ª ed. São Paulo: Paulus, 2007.

______. A disciplina cristã. Tradução de Fabricio Gerardi; introdução e notas de Heres Drian de O. Freitas. São Paulo: Paulus, 2013. [col. “Patrística”, vol. 32].

 ______. A Trindade. Tradução e introdução de Agustinho Belmonte; revisão e notas de Nair de Assis Oliveira. 4ª ed. São Paulo: Paulus: 2008.

 ______. Cartas. Biblioteca de Autores Cristianos [Obras completas - versión española]. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2015.

 ______. Comentário Literal ao Gênesis. In: AGOSTINHO, Santo. Comentário ao Gênesis. Tradução de Agostinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2005.

______. Comentário aos Salmos: Salmos 1-50. Tradução das monjas beneditinas do Mosteiros de Maria Mãe de Cristo. São Paulo: Paulus, 1997.

______. Comentário aos Salmos: Salmos 51-100. Tradução das monjas beneditinas do Mosteiros de Maria Mãe de Cristo. São Paulo: Paulus, 1997.

______. Comentário aos Salmos: Salmos 101-150. Tradução das monjas beneditinas do Mosteiros de Maria Mãe de Cristo. São Paulo: Paulus, 1997.

______. Comentário da primeira epístola de São João. Tradução e notas de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1986.

 ______. Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. 21 ª ed. São Paulo: Paulus, 2009.

 ______. Regra para os servos de Deus. In: BOFF, Clodovis. A regra de Santo Agostinho. Apresentação e comentários de Clodovis Boff. Petrópolis: Vozes, 2009.

NERI, Demetrio. Filosofia moral: manual introdutório. Tradução de Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2004.

RAMOS, Manfredo. A ideia de estado na doutrina ético-política de Santo Agostinho: um estudo do Epistolário comparado com o “De Civitate Dei”. Porto Alegre: Letra&Vida, 2015.

 

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