sábado, 30 de julho de 2022

FÉ E POLÍTICA SE ABRAÇARÃO (II)

 

FÉ E POLÍTICA SE ABRAÇARÃO (II)

 

Por Prof. Dr. Fernando Altemeyer Júnior

 

III. Fé e Política se abraçarão

 

Vários movimentos e instituições no Brasil assumem o abraço fecundo da fé e da política.

O Movimento de Defesa dos Direitos Humanos, e entre eles o Centro de Defesa de Campo Limpo na cidade de São Paulo, que chegou agora aos 25 anos de existência, geraram pessoas novas e novos relacionamentos. Ocorreram novidades e sofrimentos. Nos Centros de defesa, as pessoas, situações, lugares e momentos fortes valorizam momentos especiais do cotidiano. Este o momento da fé.

Para que isto aconteça harmoniosamente é preciso que cada um de nós saia desta roda infernal do ativismo. Que com frequência religiosa, cada servidor do povo, encontre as pessoas (através de visitas gratuitas e não para marcar novas reuniões!), repense as situações que viveu e vive, amplie horizontes dos lugares que ocupa e transita, e, viva com alegria e coragem os momentos fortes que lhe são reservados, e para os quais, às vezes, nem preparados estamos. E compreenda que nem todos viveram o que você viveu, que é fundamental partilhar com paciência e ternura. Não crescer sozinho, mas com os outros e como as árvores.

A palavra sobre a fé política, neste século XXI, não virá de soberanos e superiores argumentos de autoridade, mas da sapiencial e profunda experiência do próprio serviço em favor da vida. Deste diálogo fecundo entre a fé e a política.

Esta difícil aventura da busca da justiça e da verdade indicará alguns princípios concretos para a ação de nossos irmãos e sujeitos de transformação.

Este renovado esforço de libertação, efetuado no cotidiano da humanidade sofredora, redescobrira pela força da liberdade, novos segredos do viver. Graças a esta sua contribuição humilde e, propositalmente não arrogante, os movimentos sociais e pastorais podem, ao lado de outras mulheres e homens, felizes e renovados, na fidelidade ao povo, recriar solidariamente a história e seu sentido. Perder tempo e sono pelos outros.

Podemos recriar, enfim, gente nova, um Brasil fundado e vivido na ética e na verdade, e cada dia gerarmos vida nova, plena de direitos, e germinalmente cidadã, como nos dizia os antigos: “Incipit vita nova”.

Será, sobretudo, necessário termos em conta os novos fenômenos produzidos pelo neoliberalismo, como bem nos mostra a análise de Leonardo Boff:

No neoliberalismo, por causa da modernização e da competitividade, está presente uma lógica da exclusão. Os países do Sul, tecnologicamente atrasados, sem suficiente competitividade, com crises políticas internas devido à pobreza e à miséria, não são mais interessantes. Por isso, há neles pouquíssimos investimentos estrangeiros. Nós não valemos, porque estamos fora do mercado. Quem está fora, não existe” (Leonardo BOFF, “O Cristianismo e a nova ordem mundial”, in: Jornal O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15/8/1993, p. 3).

Entrementes, o próprio Boff, apresenta uma esperança concreta e palpável:

Acreditamos nas revoluções moleculares. Como as moléculas, a menor porção de matéria viva, garantem a sua vida pela relação e articulação com outras moléculas e com o meio ambiente, as revoluções devem começar nos grupos e comunidades interessadas em transformações. Nos grupos transformam-se as pessoas, suas praticas e suas relações com a sociedade circundante. E a partir daí, podemos começar a inundar espaços mais amplos da sociedade” (Leonardo Boff, “O Cristianismo e a nova ordem mundial”, in: Jornal O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15/8/1993, p. 4).

Mas, os desafios para realizar qualquer revolução molecular, são enormes, pois, como o afirma Michel Henry:

Quando, portanto, o trabalho se encontra progressivamente excluído de uma dada sociedade, como é o caso da nossa, não é somente a forma desta sociedade que é subvertida, mas a própria existência do homem. Como e por que se produz esta exclusão progressiva do trabalho? É o que aparece atualmente evidente: é a substituição da atividade humana por um dispositivo instrumental objetivo cada vez mais complexo, que reduz sem cessar a parte do trabalho vivo, no seio do processo de produção de bens úteis à vida” (Michel Henry, “Réinventer la culture”, in: Le Monde des Débats — nº 11, Paris, set., 1993, pp. 3-4).

O filósofo francês insiste:

Necessitamos hoje uma nova cultura para um mundo novo. Por que não? Mas, uma cultura não se fabrica, não se constrói como um computador. Ela vem de longe, ela esta lá desde sempre, incluída na vida como o logos que ela porta em si desde o princípio, como a vontade de viver, de se revelar e de realizar a si mesma – como esta atividade primordial de autotransformação e de autocrescimento, que não é senão um com ela e que se denomina “trabalho”. Mas, quando a essência da vida é excluída e seu poder é usurpado pelo reino cego do que nada sente, nem a si mesmo, é a cultura que desaparece. E a tarefa não é nada fácil atualmente se se trata da humanidade doar-se novamente uma cultura, num mundo onde o princípio consiste em sua eliminação” (Michel Henry, “Réinventer la culture”, in: Le Monde des Débats — nº 11, Paris, set., 1993, p. 4).

 

IV. OS PRINCÍPIOS NORTEADORES

 

Algumas marcas profundamente inovadoras, nesta nossa busca de concretizar as revoluções moleculares e estar atentos à reinvenção da cultura, na luta pela liberdade dos excluídos, no serviço à vida, inspiram-se no cumprimento de alguns princípios de base:

“1. estímulo à organização do povo;

2. lutar para garantir a plena vigência dos direitos humanos;

3. incentivar e garantir a autonomia dos movimentos sociais;

4. ter claro o seu papel, suas limitações e potencialidades, e enfim;

5. combater toda forma de discriminação.”

Alguns sinais históricos comprovam o cumprimento destes princípios:

a) Multiplicação de ONGs na base popular espalhadas pelos quatro cantos do país e de grupos de reflexão, particularmente no mundo rural e nas periferias urbanas.

b) Releitura da vida e da sociedade brasileira com novos óculos, vendo em cada pessoa humana, de maneira popular e comprometida, um companheiro e irmão de vida e de utopias, tomando em nossas mãos, lutas fundamentais, como os Projetos Populares, a democracia direta, a batalha pela Reforma Agrária, a defesa das Crianças e Adolescentes, da imprescindível vida dos indígenas.

A ação política dos cristãos foi oferecendo aos jovens e ao povo, o saboroso caldo de uma nova e velha cultura, forjada fora dos padrões e controle da mídia televisiva, e muitíssimo mais suculenta, pois fruto da própria beleza e desta esperança persistente, deste nosso povo que é negro, índio e migrante.

c)  O engajamento diante dos clamores populares, sobretudo nas graves e permanentes questões da moradia, da saúde e do desemprego, através de gestos concretos de misericórdia e compaixão com as dores reais das pessoas, foram sendo assumidos pelos companheiros e, articuladamente pelo movimento social, através da criação de tantos Programas de Formação (metodologia da práxis), de comunicação, e, do programa de enfrentamento da violência em prol da cidadania ativa.

A ação como disciplina da compaixão requer a disposição em responder às concretas necessidades do momento” (Donald McNeil, Compassion — A reflection on the Christian Life, Image Books-Doubleday, Nova York, 1982, p. 118).

Quero citar quatro vidas exemplares, que falam por si deste engajamento entre fé e política: uma religiosa chamada Ir. Dalva Ivete de Jesus, que trabalha há anos na pastoral do povo das ruas de São Paulo, na região central; um padre, que oferece seu carinho e amor aos jovens e crianças, conhecido como Vigário do Povo da rua, Padre Júlio Renato Lancellotti; e, em nível institucional mais amplo, os doutores Hélio Pereira Bicudo e Dalmo de Abreu Dallari, sempre presentes na defesa internacional dos direitos dos pobres. Exemplos que interpelam pela perseverança, transparência, e porque possuem a força de quem vive com honra a fé no Cristo Jesus.

d) A vivência e a proclamação de uma ética existencial, pessoal e comunitária, traduzida em atitudes de respeito ao pluralismo, e revestida das profundas convicções do valor da vida humana, pelo anúncio corajoso da vida humana e ecológica, apesar de toda a lavagem cerebral conduzida por tantas ideologias da elite e, difundidas por programas radiofônicos, que se espalharam pelo Brasil.

O movimento social dos cristãos comprometidos nas CEBs e nas pastorais sociais, felizmente, bebe de outras fontes. Ele se alimenta da força do pequeno que acredita “que o mundo será melhor quando o menor que padece acreditar no menor” e das pessoas de boa vontade dispostas a salvar a vida de quem a tem por um fio. Somos daqueles que acreditam que os pobres nos julgarão.

A existência de milhões de empobrecidos é a negação radical da ordem democrática. A situação em que vivem os pobres é critério para medir a bondade, a justiça e a moralidade, enfim, a efetivação da ordem democrática. Os pobres são os juízes da vida democrática de um país” (CNBB, Exigências Éticas da Ordem Democrática, Paulinas, São Paulo, nº 72).

Assim, a cada dia novos desafios estão nos sendo lançados. Recentemente com o crescimento da miséria e o aumento de Igrejas pentecostais da vertente da prosperidade individual houve uma revalorização de questões esquecidas e hiper-valorização de certos temas.

Precisamos com urgência conversar e trabalhar a questão do corpo e das práticas e discursos destas Igrejas e, confrontar com nossas próprias respostas.

Será preciso rever nosso vocabulário sem perder nossa utopia e ética comunitária.

Não está na pauta dos cultos dessas igrejas o papel de ‘salvar as almas’, mas de libertar o corpo. Entende que é necessário libertar o homem dos males que estão alojados no seu corpo. Não que o corpo seja ruim, mas algo que está nele. Com esta preocupação, leva-os para um outro ponto. O seu culto é um lugar onde o corpo está presente, com seu cansaço ou com sua alegria” (José Rubens L. Jardilino, Sindicato dos Mágicos, CEPE, São Paulo, 1993, p. 32).

Devemos a cada dia aprender a ser gente, mais gente, e profundamente humanos. Tarefa óbvia, à primeira vista, mas que custará toda a nossa existência para realizar-se. E qualquer pequeno passo é fundamental, pois cada descoberta pessoal e coletiva já é um passo na afirmação do humano renovado.

O capitalismo criou uma cultura do eu sem o nós. O socialismo criou uma cultura do nós sem o eu. Agora precisamos da síntese que permita a convivência do eu com o nós. Nem individualismo nem coletivismo, mas democracia social e participativa” (Leonardo Boff, “O Cristianismo e a nova ordem mundial”, in: Jornal O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15/8/1993, p. 3).

Esta nossa tarefa incessante, pessoal e estrutural, alimenta-se e enraíza-se nas outras pessoas que conosco caminham, particularmente naqueles que a sociedade mais despreza e calunia, muitas vezes, no desejo hipócrita, de torná-las bodes expiatórios. Entre nós, cidadãos conscientes e a humanidade empobrecida existem laços indestrutíveis e invioláveis, semelhante aos que unem as pessoas religiosas a Deus.

Não somos, nem queremos ser salvadores da pátria, mas nos sentimos tocados e feridos, quando qualquer pequenino é ferido ou tem seu direito vilipendiado. É como se fôssemos todos artérias fundamentais de um mesmo sistema sanguíneo. Interligados e complementares. Interdependentes.

V. O FUTURO DE UMA FÉ LIVRE E COMPASSIVA

 

A palavra de esperança culmina em festa e na ceia do Cristo, onde o próprio povo oferece como alimento sua vida e seus sonhos, e nesta sua louvação afirma a própria vida e sua luta de resistência. E descobre o sentido da vida na ressurreição de Jesus de Nazaré.

Cremos na festa da vida e do viver, fazendo com mãos, mentes e corações que o humano mergulhe na alegria infinita. Verdadeira explosão de potencialidades. Este mergulho na festa dos pobres é vivido nas Igrejas inseridas nas classes populares, ao defenderem a vida e experimentarem os segredos e mistérios desta fé mística. E é vivido também por todo aquele que sabe partilhar e amar. Pois quem ama, conhece o sabor da festa e da alegria.

Creio que nenhum companheiro ou companheira pode abdicar desta necessidade imperiosa de celebrar com os pobres suas festas e suas alegrias, do jeito do povo e com suas melodias. Entrando pela porta da cozinha, brindando aos companheiros e até para os santos! Crendo em horizontes escatológicos.

A dinâmica da existência histórica é de essência escatológica. Mas, se é assim, é porque pertence à essência do ser humano determinar-se teleologicamente” (Jean Ladriere, Vie sociale et destinée, J. Duculot, Gembloux, 1973, p. 135).

À guisa de conclusão, diremos que sem esta viva e necessária compaixão, inspirada na comunhão, os pobres retornariam à submissão. Mas a compaixão, sem esta pratica libertadora, tornaria o militante cristão uma pessoa estéril e burocratizada, como algumas associações e grupos já cooptados, e, completamente dependentes do poder ou do dinheiro de projetos estatais ou de agências do exterior.

Na defesa da vida dos pobres, busca superar rivalidades secundárias diante de outros atores históricos, forjando redes e, vibrando interiormente com a causa dos pequenos, especialmente das mulheres, dos negros, dos índios e das crianças. Redes de movimentos sociais articuladas organicamente. Assim cumpriremos a profecia de MEDELLÍN: “A justiça e, por conseguinte, a paz conquista-se por uma ação dinâmica de conscientização e organização dos setores populares, capaz de urgir os poderes públicos, muitas vezes impotentes em seus projetos sociais, sem o apoio popular” (CELAM, Conclusões de Medellín: A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio, capítulo 2, n. 18, Vozes, Petrópolis, 1985, p. 62).

E ficaremos surpresos diante do ser humano:

Que quimera, portanto, é o homem? Que novidade, que monstro, que caos, que sujeito de contradição, que prodígio! Juiz diante de todas as coisas, imbecil verme da terra; depositário do verdadeiro, cloaca de incertezas e de erros; glória e refugo do universo” (Blaise Pascal, Pensées, GF-Flamarion, Paris, 1976, p. 173).

Se o mistério do humano, sempre presente em nossa reflexão, exige uma atitude de escuta e de silêncio contemplativo, esta atitude deverá também nos permitir viver a dinâmica entre clareza e penumbra. Assim canta o poeta catalão: “O amor é como um mar alvoroçado de ventos e ondas, sem porto nem margem. Morre o amigo no mar; e no perigo morrem também seus tormentos e nasce sua realização” (Raimundo Lulio, Livro do Amigo e do Amado, Loyola, São Paulo, 1989, p. 103).

A modéstia será nossa mais importante qualidade. Necessitamos, no Brasil de agora, como nunca, de abundante vida, de contagiante beleza e emocionante compaixão.

Esta sede de infinito vivida pelas pessoas que têm fé no humano é nosso tesouro, como nos indica Dostoievsky:

Toda a lei da existência humana consiste em poder sempre se inclinar diante do infinitamente grande. Tire dos homens, a grandeza infinita e, eles cessarão de viver e morrerão no desespero. O imenso, o infinito é tão necessário ao homem, quanto o pequeno planeta sobre o qual ele habita” (Theodor Mihailovic Dostoievsky, Les possédés, T. II, trad. do russo por Victor Derély, Librairie Plon, Paris, 1886, p. 347).

 


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