sábado, 26 de novembro de 2022

A PASTORAL DA PALAVRA (V) 6 – A Homilia

 

A PASTORAL DA PALAVRA (V)

 

6 – A Homilia


1. Que é uma homilia

A homília é um tipo especial de pregação com carac­terísticas próprias.  Há muitos tipos de pregação.  Assina­lemos alguns deles: O panegírico, que tende a ressaltar as virtudes de um santo e inculcar nos fiéis a sua imitação.

A homilia é aquele tipo de oratória sagrada que convém mais à celebração litúrgica da euca­ristia e dos sacramentos.  Ou melhor, as celebrações litúr­gicas foram criando, a partir da mais remota antiguidade, um gênero especial dentro da oratória – a homilia -, espécie de comentário dos textos da celebração aplicado aos fiéis, como participantes da celebração e como cris­tãos que devem viver o que celebram.

Etimologicamente falando, homilia vem da palavra grega “homilia” (reunião, conversa familiar) e esta por sua vez do verbo “homilein” (reunir-se, conversar).  As­sim, pois, o termo grego homilia significa trato ou conversa familiar.

Retoricamente com a palavra homilia se designa aquele gênero de oratória mais simples e familiar em oposição ao ‘discurso”.  Fócio nos diz que uma homilia se distingue de um sermão pelo fato de que a primeira se expunha familiarmente pelos pastores e era uma espécie de conversa entre eles e a assistência; o sermão, ao con­trário, era feito a partir do púlpito em forma mais solene.  O sermão era composto segundo as regras da retórica e da arte oratória, ao passo que a homilia é a interpretação familiar da Sagrada Escritura, feita com um fim prático e moral.  A homilia, mais do que mover e excitar os ânimos, destina-se a instruir e edificar os fiéis a propó­sito dos mistérios da fé.

Liturgicamente, a homilia é uma parte integrante da liturgia da Palavra (cf.  SC n. 52).  Note-se que até antes da reforma litúrgica conciliar dizia-se que, depois do Evangelho, a liturgia era interrompida para que os fiéis ouvissem a homilia. O fato de que atualmente a homilia seja parte integrante da liturgia nos obriga a precisar muito mais seu sentido e função.

Tecnicamente, na homilia distinguem-se duas funções litúrgicas importantes:

a) a de ser aplicação da mensagem ao hoje e aqui de nossas vidas;

b) a de ser ponte entre a liturgia da palavra e a liturgia eucarística ou sacramental.

Quanto à primeira função (a) antecipamos que a mensagem da Escritura tem uma atualidade (e não simplesmente uma aplicação moral) que foi sublinhada pela Constituição Sacrosanctum Concilium (cf. n. 33 e 7).

Quanto à segunda função (b) pode-se dizer que a homilia é o elo entre a “liturgia verbi” e a “liturgia sacra­menti”. É o que liturgicamente se denomina “passagem para o rito”.  A homilia (que nunca é um sermão isolado, mas que está dentro de uma celebração) deve concatenar a palavra ouvida com a celebração e mostrar sua atuali­dade precisamente na ação sacramental, como logo comen­taremos mais extensamente.  Isso segundo a melhor tra­dição patrística e segundo a Constituição Sacrosanctum Concilium (n. 35,2).

Ambas as funções coincidem, pois, no fato de conec­tar a Palavra de Deus com o hoje e o aqui de nossa cele­bração ou de nossa vida.

A homilia se distingue, pois, claramente de outros gêneros de oratória sagrada, como o panegírico, o comentário bíblico-exegético, o clássico sermão piedoso, a oração fúnebre.  E com mais razão se distingue de uma classe de catequese ou de teologia (embora a homilia possa e até deva aplicar certos princípios empregados na catequese).

2. Origens e história da homilia

A homilia mergulha suas raízes no povo bíblico de Israel.  Sabemos que muito antes de Jesus e no tempo de Jesus, terminada a leitura do texto bíblico na sina­goga, fazia-se a homilia que se encerrava com o qaddis, oração aramaica da qual Jesus tomou, ao que parece, as duas primeiras petições do Pai,-nosso.  “Moisés – diz Tiago em Atos 15,21 – tem em cada cidade os seus pregadores, que o lêem nas sinagogas todos os sábados”.  A mesma coisa é confirmada pelo historiador judeu Flá­vio Josefo.

O próprio Evangelho nos oferece um exemplo elo­qüente por parte de Jesus deste comentário homilético das Escrituras, na passagem da sinagoga de Nazaré (Lc 4,16-30).  Na verdade, trata-se da primeira homilia cristã que se conserva num resumo escrito e na qual o próprio Jesus é o pregador e protagonista.  É um claro comentário ao texto de Isaías e uma clara aplicação do texto ao mo­mento presente, assim como à situação concreta dos que estão reunidos na sinagoga, incluindo o próprio Jesus (cf. v. 23s).  Mais ainda: o texto de Lucas deixa entre­ver que Jesus tinha o costume de ir à sinagoga no sábado e fazer a leitura (v. 16) e também de ensinar nas sina­gogas com louvor dos assistentes (v. 15).

Sabemos também por João 6,59 que Jesus pronun­ciou o discurso do pão de vida na sinagoga de Cafar­naum, provavelmente na festa de Páscoa (cf. Jo 6,4),festa que naquele ano Jesus passou na Galiléia já que não podia ir à Judéia (cf. 7,1).  Também em tal passa­gem há um longo comentário de diversos textos do Antigo Testamento sobre a páscoa e sua aplicação ao momento presente dos ouvintes (a presença de Jesus entre eles e a fé em sua palavra) e a situação conjuntural (a celebração da páscoa judaica que antecipa a páscoa cristã).

Temos outro exemplo eloqüente de outra homilia de Jesus, desta vez com os dois discípulos, na caminhada de Emaús (Lc 24,13-35).  Trata-se de uma homilia no sentido mais genuíno da palavra: “conversa familiar”.  Jesus, ao longo da rota que leva de Jerusalém a Emaús, vai interpretando o momento presente à luz dos textos escriturísticos.  Trata-se de uma verdadeira “liturgia verbi” que prepara os corações dos discípulos para a “liturgia sacramenti”, para o calor da celebração, para a profun­didade do encontro eucarístico com Jesus na casinha de Emaús.  Na verdade, as palavras de Jesus atualizam os textos bíblicos (cf. v. 27) e preparam os corações para a celebração eucarística (cf. v. 29 e 32).

A recitação, ou melhor, a proclamação da Bíblia e sua interpretação nas sinagogas, não pôde deixar de ter profundos vestígios entre os judeus-cristãos presentes às reuniões sinagogais. É preciso levar em consideração que os primeiros cristãos, antes de sua conversão e mesmo depois dela, estiveram em contato com o templo, e aos sábados com a sinagoga.

Recordemos também que alguns textos neotestamen­tários parecem ser textos homiléticos (p. ex. alguns frag­mentos da primeira carta de São Pedro).  Sabemos tam­bém que os apóstolos praticaram o comentário homilé­tico (p. ex. a famosa “conversa” de Paulo em Trôade dentro de uma reunião de caráter claramente litúrgico (At 20,7-12).

Entre os escritos cristãos pós-bíblicos, o primeiro testemunho que faz referência clara à homilia como parte da liturgia da Eucaristia encontra-se em Justino.  Assim diz em sua primeira Apologia (escrita pelo ano de 153) ao explicar a Missa:

«… E no dia chamado do sol, faz-se uma reunião num mesmo lugar de todos os que habitam nas cidades ou nos campos, e lêem-se os comentários dos apóstolos ou as escrituras dos profetas, na medida em que o tempo o permite.  Depois, quando o leitor acabou, quem preside exorta e incita pela palavra à imitação dessas coisas excelsas.  Depois nos levantamos todos ao mesmo tempo e recitamos orações” (n. 67)

Trata-se de uma homilia dominical (Justino fala do ‘dia chamado do sol’ e não do ‘dia do Senhor’ para ser compreendido pelos leitores gentios, a quem dirigia sua Apologia).  A homilia dessa reunião dominical situa­-se depois das leituras e antes da oração universal que precede a apresentação das oferendas para a Eucaristia.  Trata-se, pois, de uma homilia eucarística tal como se pratica em nossas igrejas hoje em dia.

São famosas as homilias dos Santos Padres (séc. II-VIII) que em grande parte nos foram transmitidas por escrito.  São o comentário vivo da Bíblia por parte da Igreja dos primeiros séculos.  São também um testemu­nho de que a liturgia nos conserva a melhor vivência da fé bíblica e a melhor “summa theologica” de todos os tempos.

Nos séculos posteriores, quando no Ocidente a ação litúrgica se torna arcana e clerical e deixa de ser uma ação inteligível para o povo, a homilia de feição patrís­tica ou escriturística desaparece, ao menos de modo geral, e já não figura nos livros litúrgicos. Entramos assim numa era de ausência de comentários homiléticos que serão de alguma forma subs­tituídos (mas não convenientemente supridos) pela pre­gação extralitúrgica .

As Rubricas gerais do Missal de São Pio V (1570) não falam da homilia: da proclamação do Evangelho passa-se ao Credo.  Contudo, o Rito que se deve observar na celebração da Missa supõe a possibilidade de que haja uma pregação depois do Evangelho (cf.  VI, 6).

Recordemos também que na administração da maio­ria dos sacramentos, dos séculos que nos precedem, não está prescrita nem prevista a leitura da Palavra de Deus nem, conseqüentemente, seu comentário homilético.  Po­demos ver um resto da homilia na catequese do Pontifi­cal Romano que o bispo dirige aos ordenandos.  Quando os sacramentos, sobretudo o matrimônio, são celebrados dentro da Missa, coisa freqüente nas últimas décadas que nos precedem, costumam comportar um comentário homilético.

Em alguns países, até não muito antes do Concílio Vaticano II, dar-se-á a estranha superposição de uma pregação ao longo da missa dominical, que se celebra em voz baixa e em latim.  Embora chocante para nós, não o era tanto no ambiente da época, se levarmos em conta que na missa se praticava todo gênero de devoções.  Na melhor das hipóteses, esta pregação desenvolvia o tema do evangelho.  Aqui está o que a este propósito prescre­veram as Rubricas de 1960, promulgadas por João XXIII:

“Depois do evangelho, sobretudo aos domingos e dias de festa de preceito, dirigir-se-á ao povo, segundo as circunstâncias, uma breve homilia.  Mas esta homilia, no caso de ser feita por um sacerdote que não o celebrante, não deve sobrepor-se à celebração da missa, impedindo a participação dos fiéis; também então a celebração deve ser interrompida e não deve voltar a continuar enquanto a homilia não tiver terminado”.

O Concílio Vaticano II encontra o terreno preparado para uma reabilitação da homilia, graças à renovação litúrgica das últimas décadas e, concretamente, graças ao documento que acabo de citar.  Insiste no fato de que a homilia deve partir do texto sagrado proclamado e esta­belece que a homilia é parte da própria liturgia.  Depois de assinalar a importância da Palavra de Deus (cf.  SC n.  24 e 51), diz no n. 52 da Sacrosanctum Concilium:

«Recomenda-se vivamente, como parte da própria Li­turgia, a homilia sobre o texto sagrado, em que, no de­curso do ano litúrgico, se expõem os mistérios da fé e as normas da vida cristã; não deve ser omitida sem grave causa nas missas dominicais e nas festas de pre­ceito, concorridas,pelo povo».

 

https://presbiteros.org.br/manual-de-homiletica/

 

 

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