sábado, 3 de dezembro de 2022

"VÍRUS OU DROGA? DESCOBERTO 'DOOMSCROLLING': O MONSTRO DO LAGO NESS" ( Parte II)

 

"VÍRUS OU DROGA? DESCOBERTO 'DOOMSCROLLING':

 O MONSTRO DO LAGO NESS" ( Parte II)

 

 Por Lindolivo Soares Moura(*)

 

   "A raiva é um veneno que você toma desejando  que  o outro morra"

           (Shakespeare)

 

"Por onde vão as ideologias vão os argumentos", afirma certa máxima que tanto pode ser aplicada à política, como à ciência e à religião. Quando a polarização ultrapassa os limites do bom senso e da razão, e alcança patamares de  extremismo e radicalismo, deixa de ser orientada por crenças e ideologias que Gramsci chama de "historicamente orgânicas" -  ideologias estas que como o cimento na massa dão a um grupo ou sociedade força e sustentação - e passam a ser configuradas e orientadas a partir de crenças e ideologias que Marx denomina "arbitrárias ou autoritárias", cujas características foram já anteriormente apontadas. Ao contrário porém das ideologias e crenças historicamente orgânicas, que são flexíveis e receptíveis, abertas a novas ideias e eventuais mudanças, as ideologias e crenças arbitrárias são dogmáticas, inflexíveis e  impermeáveis ao novo e a qualquer tipo de contestação. Frank Zappa, um dos maiores músicos e compositores do século XX, afirmava que a mente é como um paraquedas: só funciona bem se não estiver aberta. Essa é sem dúvida uma boa comparação, e mais que isso uma excelente recomendação.

O fato é que nossa sociedade não se encontra apenas dividida e polarizada: vivemos e experimentamos, ainda, o extremismo de dois grupos intensa e assustadoramente radicalizados. Quando isso acontece as pessoas têm notória dificuldade em dialogar e se entender nas mínimas coisas, com o nível de stress e ansiedade indo às alturas, e ao mesmo patamar o teor de ferocidade e agressividade. Concomitantemente, como seria de se esperar, os termômetros do respeito e da tolerância tendem a zero. Ao mesmo tempo, e para piorar ainda mais as coisas, cada grupo se "empanturra" de todo e qualquer tipo de conteúdo que corrobore suas crenças e convicções - o assim chamado "viés de confirmação" - alimentando a mente própria e compartilhando notícias falsas, maldosas, entorpecentes e tendenciosas, beirando as raias do maquiavelismo e sem um mínimo de apreço para com os princípios da ética, do bom senso e da moralidade. Virtude então, nem se fale: fica totalmente fora de cogitação! É como se a razão saísse de cena e cedesse seu lugar à paixão. Tomados e  arrebatados por esse estado de espírito profundamente alterado as pessoas passam horas e horas, do dia e da noite, à caça de mais conteúdos, notícias e compartilhamentos, que logo em seguida vão por sua vez repassar à frente sem uma checagem consciente e minimamente responsável pela originalidade e veracidade das fontes. E assim a vida vai seguindo em frente, enquanto uma espécie de "corrente do mal, da maldade e da maledicência" vai se formando, ainda que na maioria das vezes, há que reconhecê-lo, sem que haja má fé ou perversa intenção. Essa espécie de "corrente do pessimismo e do negativismo" acaba literalmente adoecendo as pessoas, mental, física e emocionalmente, sem que elas se apercebam desse processo de  aniquilamento e exaurimento de suas energias saudáveis, positivas, otimistas e motivadoras, tudo isso independente do grupo a que pertençam ou do lado em que estão.

Para entender melhor esse tipo de perda e comprometimento é preciso ter presente o que sobre a mente e o cérebro apontamos no início de nossa reflexão. Tudo que "alimenta" nossa mente inconsciente, dizíamos, mente esta incapaz de distinguir o falso do verdadeiro e o real do imaginário, vai aos poucos "programando-a",  num claro desafio à nossa vontade livre e à nossa capacidade consciente de controle e tomada de decisão. Essa espécie de "conteúdo programático" vai posteriormente não só orientar nossa vontade, nossas escolhas e decisões, como também "condicionar" nossos afetos, sentimentos e emoções, e por fim nossas ações, atitudes e comportamento. Esta é por sinal a base sobre a qual se assenta a chamada Teoria Cognitivo Comportamental,  "uma das", senão a principal abordagem terapêutica da atualidade. Na prática nossas atitudes e comportamentos refletem nosso estado afetivo-emocional, isto é, nossos sentimentos e emoções, que por sua vez são reflexo de nossas crenças, ideias e representações. "Semeia-se um pensamento colhe-se um ato - afirma Marlon Laurence - semeia-se um ato colhe-se um hábito, semeia-se um habito colhe-se um caráter, semeia-se um caráter colhe-se um destino". Tudo começa, como se vê,  com um simples pensamento, uma crença, uma ideia ou uma representação de mundo, representação esta a que damos o nome de "cosmovisão".

Equivoca-se quem pensa que o mal e a maldade em forma de conteúdos e de notícias tóxicas e intoxicantes povoam apenas notícias, noticiários e os diversos meios de comunicação. Muitas e muitas vezes tais conteúdos nos chegam discreta e subliminarmente por intermédio de pessoas bem intencionadas porém descompensadas, de "amigos" que querem o nosso bem mas que sem querer e saber nos aproximam do mal, de partidários e correligionários do mesmo grupo, partido, seita ou religião. Atraídos e seduzidos pelo canto da sereia da polarização e do extremismo eles se tornaram servos e servidores fiéis do senhorio de "doom", e como um cego conduzindo outro tentam nos atrair agora para o abismo da ruína e da perdição. O célebre ditado "diga-me com quem andas que te direi quem és" não precisa ser senão levemente modificado: "diga-me com quem te manténs conectado e te direi se estás calmo ou estressado".

Num artigo recente, intitulado "Como psicólogos têm tratado o adoecimento político na clínica", a terapeuta Maria Pereira afirma que tratar os laços que foram desfeitos após brigas entre famílias e entre amigos por causa da polarização política virou um desafio até mesmo para psicanalistas. Isso porque, segundo ela, o racha político e ideológico entre amigos, familias, e até mesmo casais, tem provocado brigas, rompimento e adoecimento mental para uma grande parcela da população. No mesmo artigo o psicanalista Christian Dunker afirma que o problema alcança a todos, e atravessa tanta gente porque ele atinge os recursos naturais da saúde mental das pessoas, tais como suas mais diversas relações, suas famílias, vínculos comunitários e laços  afetivo-emocionais. A polarização e a radicalização, ele explica, fizeram muito mal - e continuam fazendo, grifo nosso - justamente porque fez com que muitos de nós perdêssemos boa parte desses recursos. Por fim Marcelo Bizzotto, também terapeuta, tece o seguinte comentário: "a dimensão política hoje está muito ligada à questão dos afetos. A política deixou de ser algo simplesmente argumentativo e ideológico e passou a ser algo muito da emoção e da paixão".

Haveria algo ainda mais perigoso e espinhoso que o quadro descrito por Bizzotto? Lamentavelmente a resposta é "sim", há um quadro que se revela ainda mais grave: quando a política, já tendo sido invadida pela paixão, é também tomada de assalto pela religião. Não há como não deixar de fazer aqui uma analogia com a célebre advertência  de Hans Kelsetn, criador da chamada "Teoria Pura do Direito". Dizia ele: "quando a política entra por uma porta, a justiça sai pela outra". Kelsen sabia muito bem dos "estragos" a que um conluio do tipo está destinado a produzir. Por isso disse o que disse. Da mesma forma, experimentamos e continuamos ainda a experimentar na pele o estragos e danos que o conluio entre política e religião podem causar. Se a paixão desenfreada é capaz de produzir males e perdas incalculáveis quando  invade como "penetra", sem ser convidada, os domínios da política, ao fazer o mesmo a religião, seja ela organizada e institucionalizada ou não como afirma Lou Marinoff, torna-se uma agravante. Das piores! E se o dogmatismo característico de tais religiões vem junto, os danos produzidos são, aí sim, verdadeiramente imprevisíveis. Não por acaso e menos ainda por motivo fútil o segundo Mandamento do Decálogo Cristão adverte para que não se lance mão do nome de Deus em vão. E isso foi feito "às pampas", de maneira obscena e ignominiosa nesse período de Eleições, provavelmente como  em nenhum outro de nossa história. Quando cruzamos polarização e radicalismo político com paixão obstinada e desembestada, e acrescentamos como ingrediente extra fundamentalismo e radicalismo  religioso, temos a receita certa do desastre nãos mãos.  Difícil mesmo é imaginar para que lado da contenda se decide o divino em meio a tanta confusão. "A César o que é de César, a Deus o que é de Deus!". Pelo visto ainda teremos que aprender melhor a lição.

À guisa de conclusão: o monstro do Lago Ness não existe, nunca existiu. Mas nós podemos criá-lo, dar-lhe vida, trazê-lo à existência. À semelhança das pedras de um quebra-cabeça que vai sendo montado passo a passo, cada vez que acessamos a tela de nosso celular ou computador à caça de notícias, postagens e compartilhamentos cujo conteúdo é negativo, pessimista e ideologicamente contaminado, "doom" - permeando nossa mente inconsciente - vai ganhando vida e sendo plasmado. Não à imagem e semelhança de um "daimon" divino, benígno e criador, mas de um espírito demoníaco, maligno e destruidor. Fruto de nossa criação ele nos arrasta e nos faz submergir para as profundezas do lago de nosso inconsciente, e tenta nos afogar nas águas contaminadas da ansiedade, da malinconia e da depressão. Mas ele sabe que precisa de nós, e por isso nos quer e nos mantém vivos, ciente de que somente nós podemos ser os instrumentos e as armas de seu potencial destruidor. E assim ele nos arrasta para as águas agitadas da superfície do nosso eu consciente e nos faz destilar ódio, fúria e ressentimento pela boca, calúnia, injúria e difamação pelas narinas, violência, agressividade e brutalidade pela mãos.

Enquanto nossos filhos e netos, os jovens e os adolescentes, travam uma luta de vida e morte contra os personagens e as forças do mal do mundo distópico, infernal e sul-real de "doom", nós adultos travamos uma batalha mais que sul-real contra personagens reais do mundo da justiça, da política e da religião. Personagens estes que com nossas mentes entoxicadas e adoecidas são por nós diabolizados, monstrificados e endemonizados, e que como espectros e fantasmas povoam  dia e noite nossa imaginação. Forças do mal que não estão fora mas dentro de nossas mentes, que louca e tresloucadamente nos levam a travar uma guerra perdida de antemão, pois nos tornamos literalmente entorpecidos e incapazes de perceber que estamos combatendo o inimigo errado no campo de batalha equivocado. Damos vida a um monstro, um "frankstein" - " um demônio", se se preferir - que depois nos torna cegos para a percepção de sua existência, escravizados a serviço de suas pretensões maquiavélicas, e nos mantém cativos numa prisão chamada "mente". "Mente inconsciente", mais precisamente!

Não é preciso ser religioso, espiritualista ou sequer espirituoso para saber que com o mal não se brinca. Nenhum pai ou mãe minimamente consciente e responsável coloca nas mãos do filho fogo, droga ou veneno, e muito menos uma arma que sangra e mata. Pelo contrário, mantém bem longe tudo que ameaça e é capaz de ceifar a vida, tanto dos seus como de outrem. Ocorre que os influenciadores digitais e os criadores de "diversões infernais" estão à solta, assim como os  propagadores de conteúdos tóxicos, destrutivos e letais. Não faz sentido advertir, proibir ou até mesmo punir os pequenos, quando também nós adultos -  "imagos" e referências paradigmáticas da estruturação de suas personalidades - fazemos o mesmo na vida real. Tampouco precisamos de demônios, espíritos malignos e forças do mal que venham do além, do sub-mundo ou do além-mundo, para perpetrarem e nos causarem mal. Os "daimons" e "dooms" malignos e malévolos que  perambulam entre nós e povoam nossas mentes bastam, são potencialmente danosos e destrutivos o suficiente para intoxicar e fazer adoecer nossa vida mental. E sabemos bem do quê uma única mente maníaca e "possuída" é capaz de produzir em termos de morte e destruição. A humanidade certamente jamais se esquecerá de um nome, Adolph Hitler, com sua mente pervertida e seu plano infernal. Sabemos também que por razões óbvias os criadores de "Doom", a série,  não estão "nem aí", não dão a mínima para a intoxicação mental e a contaminação emocional de nossos jovens. Oxalá nós pais e adultos não continuemos, também nós, nos deixando seduzir e cair em semelhante tentação no mundo real. Afinal, "somos o que pensamos - afirmava Buda - tudo que somos surge com nossos pensamentos. Com nossos pensamentos construímos o nosso mundo".

 

(*) Reflexão enviada de Vitória(ES) por whatsapp.

 

 

 

 

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