sexta-feira, 24 de maio de 2024

2.11- SANTO AGOSTINHO E A SANTÍSSIMA TRINDADE ASPECTOS DA DOUTRINA TRINITÁRIA DE SANTO AGOSTINHO.[1]

 

2.11- SANTO AGOSTINHO E A SANTÍSSIMA TRINDADE

ASPECTOS DA DOUTRINA TRINITÁRIA DE SANTO AGOSTINHO.[1]

             No domingo após a Solenidade de Pentecostes, a Igreja nos convida a celebrar a Solenidade da Santíssima Trindade. Na ocasião muitos fazem referência a Santo Agostinho, seja pelo seu Tratado sobre a Trindade, seja pela conhecida estória do diálogo com a criança na praia. Neste texto propomos, a partir da Introdução Geral às obras de Santo Agostinho escrita pelo Padre Agostino Trapè, uma exposição clara e simples sobre aspectos fundamentais da doutrina trinitária de Santo Agostinho. Esperamos, com isso, ampliar o acesso à profundidade de seu pensamento e favorecer, cada vez mais, uma reta compreensão da fé cristã. Eis o texto:

             Agostinho empenhou-se no estudo do mistério trinitário por três motivos: filosófico, teológico-pastoral e místico. Estudou a Trindade em si (Trindade imanente) e a Trindade na história da salvação (Trindade econômica), estabelecendo entre uma e outra consideração uma profunda causalidade circular: da Trindade econômica à Trindade imanente, e desta àquela.

            Para entender o estudo bíblico que Santo Agostinho empreende nos primeiros quatro livros do Tratado sobre a Trindade (De Trinitate), precisamos recordar seu ponto de partida que é aquele da profissão de fé inicial. Esta profissão de fé não é composta sob o esquema tripartido do símbolo batismal, que Santo Agostinho comentou diversas vezes, como por exemplo na obra De fide et symbolo, mas sob o esquema do símbolo Quicumque[2]do qual recorda ou antecipa algumas expressões.

            Antes de tudo, Agostinho enuncia a unidade e a igualdade da Trindade; afirma, depois, a distinção das Pessoas divinas; recorda que não a Trindade, mas somente o Filho se encarnou, como somente o Pai fez ouvir sua voz no Tabor e somente o Espírito Santo desceu sobre os discípulos no dia de Pentecostes; e confessa, por fim, que as operações da Trindade são inseparáveis como também é são inseparáveis as Pessoas divinas. Evidentemente, nessa profissão de fé, são dois os pontos de partida: a unidade e igualdade de natureza da Trindade, e a inseparabilidade das ações ad extra.

  1.                    Unidade e Igualdade do Deus Trindade.

            Ao expor e defender a unidade e igualdade da Trindade, Agostinho se opõe ao subordinacionismo e, da mesma forma, evita a absurda imaginação que supõe uma quarternidade em Deus (heresias comuns em sua época). Ao contrário, ele afirma a consubstancialidade, a coeternidade, e a perfeita igualdade entre as três Pessoas divinas. Mas esta unidade e igualdade, que está sempre em primeiro plano na perspectiva agostiniana, parece ser contradita em alguns textos da Escritura, os quais dizem que o Filho é inferior ao Pai, ou atribuem ao Pai prerrogativas superiores ao Filho e ao Espírito Santo. Para responder a esta dificuldade o Bispo de Hipona estuda os textos da Escritura e formula algumas regras para entendê-los no contexto da Escritura em si.

 1)      A primeira regra pode-se formular assim: em si, o texto bíblico se refere ao único e verdadeiro Deus, que é Trindade, mesmo que ela não seja mencionada; portanto, eles devem ser entendidos não como falando de uma só Pessoa, mas de todas. Como por exemplo em 1Tm 6, 16 (“Aquele que tem, ele só, a imortalidade, e habita na luz inacessível; a quem nenhum dos homens viu nem pode ver, ao qual seja honra e poder sempiterno. Amém”); e em Rm 11, 33-36 (“Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos! Por que quem compreendeu a mente do Senhor? ou quem foi seu conselheiro? Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado? Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém”).

 2)      A segunda, resguarda a “economia” divina na manifestação da Trindade. A Escritura diz algumas coisas da singularidade de uma das Pessoas divinas separadamente das outras para indicar e para recordar que Deus é Trindade. Como por exemplo em Jo 14, 15-24 (“Se me amais, guardai os meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre; o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós. Não vos deixarei órfãos; voltarei para vós. Ainda um pouco, e o mundo não me verá mais, mas vós me vereis; porque eu vivo, e vós vivereis. Naquele dia conhecereis que estou em meu Pai, e vós em mim, e eu em vós...”).

 3)      A terceira regra é a mais importante, porque tem frequente aplicação. Diz respeito à Pessoa de Cristo. É chamada “canônica” porque é proposta comumente pelos intérpretes da Escritura. Ei-la: o testemunho bíblico que diz respeito a Cristo se deve entender alguns sobre o Cristo homem e outros sobre o Cristo Deus, ou, para usar a expressão paulina, alguns sobre Cristo segundo a forma e servo e outros sobre Cristo segundo a forma de Deus.

  1.                 A Trindade age inseparavelmente.

             O segundo princípio que determina a perspectiva segundo a qual Santo Agostinho considera o mistério trinitário, é constituído pela inseparável ação ad extra da Trindade. A unidade do ser deve comportar a unidade de ação.  Mas como o primeiro princípio, anteriormente mencionado, também este parece ser contradito por alguns textos da Escritura. Não obstante isto, Santo Agostinho o defende, o explica e o aplica. Segundo ele, a Trindade operou inseparavelmente: na criação, nas teofanias do Antigo Testamento e nas teofanias do Novo Testamento.

            Na criação “o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um só princípio, como são um só criador e um só Senhor” (De Trinitate 5, 14,15). Isso é tão verdadeiro que à formula do símbolo batismal que diz: Cremos em Deus Pai onipotente criador do céu e da terra, Santo Agostinho propõe esta outra: Cremos no Pai, e no Filho e no Espírito Santo um só Deus... Pai e Filho e Espírito Santo unidos na mesma substância, Deus criador, Trindade onipotente (cf. De Trinitate 9, 1,1. 4, 21, 30).

            Desta mesma forma, Santo Agostinho explicita as teofanias do Novo Testamento, especialmente aquela manifesta no batismo no Jordão (cf. Mc 1, 9-11). “Toda Trindade operou: a voz do Pai, o corpo do Filho e a pomba do Espírito Santo, apesar dessas três coisas referirem-se a cada uma das Pessoas distintas” (De Trinitate 4, 21, 30).

            Esta afirmação, a ação inseparável da Trindade, suscita uma séria dificuldade. Por exemplo: como podemos dizer que só o Filho se encarnou se a Encarnação é obra da toda Trindade? Agostinho responde: a natureza humana de Cristo é obra da Trindade, mas pertence só à Pessoa do Filho. Portanto, só o Filho se encarnou. O mesmo vale para a voz do Pai e para a pomba ou as línguas de fogo do Espírito Santo, com a diferença que a natureza humana do Filho ascendeu ao céu e está, para sempre, na unidade da Pessoa do Verbo, enquanto que a voz e a pomba e as línguas de fogo não formam unidade com a Pessoa do Pai e do Espírito Santo. Não estão unidas, mas são usadas, provisoriamente, por um particular serviço: a ação do Pai e do Espírito Santo na história da salvação.

            Não termina aqui a reflexão de Santo Agostinho sobre este princípio fundamental da teologia Trinitária. Ele trata de estudá-lo e ilustrá-lo comparando o modo como opera em nós a memória, a inteligência e a vontade (cf. De Trinitate 4, 21, 30; Sermo 52; Epístola 169, 5-6). São três faculdades que nomeamos separadamente, mas que operam inseparavelmente. As referências apresentadas neste texto, contudo, são perfeitamente adequadas para ilustrar e instigar o aprofundamento da teologia trinitária de Santo Agostinho.

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[1] Tradução de parte (p. 161-162; 166-167) da Introdução Geral às Obras de Santo Agostinho, escrita por Agostino Trapè, publicada pela Città Nuova Editrice em 2006. Tradutor: Fr. Jeferson Felipe da Cruz, OSA.

[2] Denziger-Hünermann, em Compêndio dos Símbolos, Definições e Declarações de Fé e Moral, Paulinas, Edições Loyola, São Paulo 2007, na página 40, chama este símbolo de “pseudo-atanasiano“, e esclarece que “entre os estudiosos predomina a convicção de que o autor deste Símbolo não é Atanásio de Alexandria, mas deve ser procurado entre os teólogos do Ocidente. A maioria dos manuscritos mais antigos alega como autor Atanásio, outros, o Papa Atanásio I. Entre os possíveis compositores deste Símbolo são mencionados particularmente: Hilário de Poitiers, 367; Ambrósio de Milão, 397; Nicetas de Remesiana, 414; Honorato de Arles., 429; Vicente de Lérins, antes de 450; Fulgêncio Ruspe, 532; Cesário de Arles, 543; Venâncio Fortunato, 601. Prevalece a opinião de que este Símbolo tenha surgido, entre 430 e 500, no sul da Gália, possivelmente na região de Arles, por obra de autor desconhecido. No decorrer do tempo este Símbolo adquiriu tal autoridade, no Ocidente como no Oriente, que na Idade Média chegou a ser equiparado aos Símbolos apostólico e niceno a ser usado na liturgia”. Apesar da polêmica sobre a autoria, as verdades expostas no símbolo era conhecidas e aceitas pela Igreja por se tratar de “um majestoso e único monumento da fé imutável de toda a igreja quanto aos grandes mistérios da divindade, da Trindade de pessoas em um só Deus e da dualidade de naturezas de um único Cristo.”

https://agostinianos.org.br/artigo/a-acao-inseparavel-do-deus-uno-e-trino/

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