sábado, 1 de outubro de 2022

"TO BE OR NOT TO BE? 'SER' OU NÃO 'SER DECLARADO' INOCENTE?: A FILOSOFIA PODE AJUDAR A ESCLARECER A QUESTÃO"

 

"TO BE OR NOT TO BE?   'SER'  OU  NÃO 'SER DECLARADO'  INOCENTE?: A FILOSOFIA PODE AJUDAR A ESCLARECER A QUESTÃO"

 

 "O maior castigo para  aqueles  que não  se interessampor  política  é  que eles  serão  governados por aqueles que se interessam" (Arnold Toynbee).

Durante aproximadamente um mês estivemos "às voltas", mais entretidos que esclarecidos, com o assim chamado "horário político gratuito". Esse tempo, que a princípio deveria ter como escopo principal esclarecer melhor o eleitorado sobre os candidatos em relação ao cargo pretendido, tem por tradição, notada ainda que não exclusivamente no Brasil, proporcionar momentos hilários e por vezes até patéticos, em virtude das falas e dos comportamentos dos envolvidos em debates "ao vivo" promovidos pelos veículos de comunicação. Outras vezes, entretanto, o ar sisudo e eloquente de alguns faz parecer que estejamos revivendo tempos arbitrários e ditatoriais. E isso, convenhamos, são lembranças nada agradáveis. Entremeando ambos os estilos de discursos, verdades e mentiras costumam vir à tona, de forma tão descarada, que parecem desconsiderar tanto a inteligência quanto o bom senso dos eleitores e expectadores. Saber "jogar" com o humor e até mesmo com a ironia - na hora certa, da forma certa, na intensidade certa, com a pessoa certa e no lugar certo, como adverte Francis  Seeburger em "Como educar suas Emoções" - é sem dúvida "a alma do negócio", mas abusar de tais recursos ou infringir quaisquer dos quesitos mencionados, pode acabar sendo altamente perigoso, para não dizer desastroso.

Falar "sobre", e se envolver com política, é "conditio sine qua non" para não ser envolvido e tragado pelas águas do mar da vida da "politicagem", isto é, da má política, dos maus políticos, dos politiqueiros e outros zumbis e mortos-vivos mais. Entretanto a linha limítrofe e fronteiriça entre a política e a politicagem pode não ser tão clara assim, e quando isso acontece é preciso fazer entrar em cena muita sabedoria e não pouco discernimento. Como estamos as vésperas de um novo pleito, esta pode ser uma boa razão para exercitá-los. O fato é que, em virtude das exigências da chamada "ficha limpa" para a postulação de cargos, uma questão específica vem já há bom tempo dominando os debates, repercutindo em acusações por um lado e defesa considerada "legítima" por outro, fazendo com que personagens do mundo jurídico - incluindo alguns membros da mais Alta Corte - entrassem em cena com a pretensa finalidade de dirimir a questão. Como de resto, porém, tem acontecido em vários outros casos com Magistrados dessa "patente mais alta" ou envergadura, o que já era dúvida acabou se transformando em um torvelinho de águas ainda mais turvas. E se discernimento e sabedoria são importantes nessa hora, como mencionado, nada melhor que recorrer à Filosofia e à sua reconhecida disposição para a reflexão, esperando que ela nos traga um pouco mais de luz e orientação.

"Ser inocente" é o mesmo que "ser declarado como tal" por via de prolatação de sentença ou outro instrumento jurídico que a este se equipare? Ser declarado inocente "por princípio geral de uma Ciência", é o mesmo que "ser inocentado" em razão de ato ou sentença proferidos por personagens desse mesmo campo científico? O status de inocência que se reconquista pela impugnação e consequente declaração de nulidade do ato que condena, é da mesma natureza que aquele que brota de um novo julgamento realizado após a suspensão temporária e provisória do juízo?

Não sou especialista na Ciência Jurídica - sendo mais claro, sequer sou formado em Direito; e ainda que o fosse, poderia fazer parte daquele grupo que nosso jurisfilósofo Miguel Reale (pai) chama de "rábulas do Direito". Como apesar disso venho trabalhando com Filosofia e Psicologia aplicadas à área jurídica por mais de uma década, arrisco-me, em razão dessas humildes credenciais a marcar "NÃO" no gabarito para cada uma das perguntas feitas anteriormente. Se isso faz sentido para quem nos acompanha na presente reflexão, poderíamos perguntar:  por que a dúvida deixada no ar como resultante de intervenções distintas de diferentes Magistrados da mais Alta Corte, gerando ainda mais dúvida e maior confusão?

A afirmação de que "o Direito não vem em socorro dos que dormem" é bastante conhecida seja entre estudantes como também pelos operadores já formados do Direito. Uma exceção a essa regra poderia ser, claro, quando a política - e pior ainda, a "politicagem" - invadem a esfera jurídica. Seria esse o caso? O certo é que, contrariando essa máxima, um Magistrado da Suprema Corte veio de última hora a público para declarar que o Candidato "A" não só pode como deve ser considerado e declarado "inocente", em virtude do fato de que, após a impugnação de todos os processos nos quais o mesmo havia sido declarado "culpado", nenhum julgamento "posterior" o havia considerado como tal. Como se sabe, certo número de processos sequer foram ainda  retomados, nem parece haver confirmação de que todos o serão. Alguns, claro, já "caducaram" e foram devidamente direcionados para o porão da história, uma prática bastante comum das "defesas", amparadas e beneficiadas pela notória morosidade da "Justiça" em nosso país. "Data venia", como gostam de iniciar suas preleções os amantes não só do Direito mas também de sua "Língua Mátria", o Latim, o afirmado pelo Magistrado da mais Alta Corte não faz mais que trazer à baila um dos assim chamados "princípios gerais do Direito" - "ninguém será considerado culpado até provas em contrário" - que, como diz o próprio nome, sendo "geral" em absolutamente nada acrescenta, de per si, a um determinado caso em particular. Assim, o mesmo que do candidato "A" foi declarado, poderia e deveria sê-lo igualmente de "B", "C", "D", até à consumação do alfabeto. Não só isso: poderia e deveria ser afirmado de todos e de cada um dos cidadãos brasileiros. Resumindo: a declaração em questão nada mais é do que um simples "lembrete" relacionado a um pressuposto básico tanto da Ciência quanto da prática jurídica.

O fato é que a mencionada "declaração"  acabou servindo de "bandeira" e de álibi para o candidato "A", como se sua inocência tivesse sido resultado de diversos processos de julgamento que teriam percorrido todas as instâncias e tivessem dirimido em definitivo todas as questões e colocado fim a todas as acusações que sobre ele pairavam, o que evidentemente é em parte verdade mas não "toda a verdade", pelo simples fato de não ser bem assim.

Note-se que o que acabou retirando o candidato "A" da condição de "ficha suja", devolvendo-lhe o status de "ficha limpa" e consequentemente recolocando-o em condições de postular candidatura, foi tão somente um juízo- definitório, é bem verdade - quanto "à forma" do processo condenatório - no caso, incompetência jurisdicional - que a princípio absolutamente nada diz sobre o chamado mérito de "conteúdo", ocorrendo tão somente a suspensão "provisória" do juízo quanto à sua inocência ou culpabilidade "de Direito", mas nada dizendo ou acrescentando sobre ambas no campo "dos fatos". Isso, claro, recoloca o acusado na condição prévia e inicial de "inocente", por ser esta, como já vimos, pressuposição de um dos princípios gerais do Direito.

Conteúdo elaborado em defesa do candidato "A" por um de seus eleitores, e postado recentemente na Internet, trazia a seguinte conclusão: "Assim, se (nome do candidato "A") não foi culpado por ter sido investigado e condenado em um processo corrompido pela parcialidade, então ele e qualquer outro cidadão que enfrente situação semelhante é inocente". Inocente de fato, note-se bem, somente quando declarado como tal pelos eventuais processos levados a cabo em sequência à impugnação do(s) processo(s) primários que concluíram pela condenação, e que o consideraram neste segundo caso como inocente. Em relação aos demais processos, entretanto, "inocente" apenas e tão somente em função de um princípio geral do Direito que a todos, indistintamente, considera como inocentes até prova em contrário, e que em virtude de tal princípio recoloca o candidato "A" nas mesmíssimas condições não só de qualquer outro, como também de todo e qualquer cidadão. Mas e as inúmeras acusações que pesaram para que o mesmo fosse, ainda que num processo considerado "vicioso" ou "viciado", considerado "culpado"? Bem, disso a justiça se encarregará "no seu devido tempo" de avaliar, retomar se for o caso, analisar e concluir. O que até a presente data, ao menos para com certo número de processos, não foi feito.

Dir-se-á que até lá o candidato "A" pode e deve ser considerado totalmente "inocente"? Em razão dos princípios gerais que governam o Direito sim, sem dúvida, mas tão somente em razão disso. Dir-se-á que ao Direito isso basta? Mais uma vez pode-se responder que sim, e qualquer bom jurista provavelmente não ousaria negá-lo. Dir-se-à enfim que o que basta ao Direito basta à Ética e à Moralidade, e por conseguinte ao cidadão eleitor? Bem, aí a resposta já não é tão simples assim. Uns talvez dirão que sim, outros certamente que não, outros enfim talvez preferirão fazer uso do já mencionado "benefício da dúvida". Mas observe que no presente caso tal beneficio não deveria reverter em benefício do réu - "in dúbio pro reo", como reza o Direito - mas sim em benefício do bem do próprio eleitor, e mais especificamente, de um bem ainda maior, o chamado "bem comum", um "dos", senão o principal escopo, reconhecido por uma gama de filósofos, a ser perseguido tanto pela Ciência Jurídica quanto por sua prática. Ou seja, na dúvida sobre a idoneidade de fato e não apenas de Direito, do acusado ou do "candidato", melhor "não ultrapassar", ou seja, "melhor não investir" numa candidatura sobre a qual paira maior probabilidade de risco. Ao menos é o que sugerem tanto a sabedoria quanto o bom senso. Afinal, como adverte Arnold Toynbee, juntamente com outros "escolhidos", serão eles que nos governarão por boa parte de tempo.

É preciso lembrar ainda que, mesmo considerando-se a hipótese de que o candidato "A" pudesse ter sido julgado e declarado inocente em todos os processos necessários para avaliar cada uma das acusações que sobre ele pairasse, ainda assim isso não seria suficiente para equiparar seu status de "inocência" no campo jurídico ao de "eticidade e moralidade" nos seus respectivos campos. Para muitos estudiosos, de fato, o Direito quando praticado opera - isto, "se" e "quando" o faz - com um "éthica minimum", ou seja, com um mínimo ético, o que torna suas proposições e conclusões impossíveis, "a priori", de serem "transplantadas" de forma simples e automática para o campo da ética e da moralidade. Por outro lado, parece evidente que os critérios jurídicos de decisão na decretação de inocência ou culpabilidade, não apenas não são os mesmos como podem também não ser os únicos exigidos em outros campos, como os já mencionados,sobretudo quando o que está em jogo é a escolha, através do voto, deste ou daquele candidato para aquele ou este cargo. Em outras palavras, a chamada "ficha limpa" é, e como tal deve ser considerada, apenas um "pré-requisito" necessário mas sem dúvida insuficiente para garantir um mínimo de confiabilidade, por parte do candidato, àquele que está em vias de se decidir por sua pessoa como "objeto" de escolha e eleição.

À guisa de conclusão: uma declaração de inocência que esteja respaldada única e exclusivamente em razão de um princípio geral que governa o Direito - "Ninguém será declarado culpado até que se prove o contrário", ou seja, "até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" - absolutamente nada diz, afirma ou nega, do status final e real de um réu ou acusado, podendo esse status ao final ser considerado totalmente distinto daquele pressuposto numa situação inicial. Ao garantir o status prévio de "inocência" a todos os cidadãos, até prova em contrário, o sistema jurídico nada mais faz que aplicar o chamado "benefício da dúvida": "In dubio, pro reo", que tanto deve ser aplicado no ato final de prolatação da sentença - persistindo, claro, a dúvida - como por razões óbvias também no decorrer do processo e mais ainda pelo tempo que antecede sua colocação em marcha, quando então tal "benefício" se equipara ao princípio geral da "inocência ou não culpabilidade prévias".

Não estar suficientemente atento a tais nuances, ou em estando ignorá-las, pode levar a conflitos desnecessários e indesejáveis, tipo aquele que presenciamos quando da intervenção de diferentes Magistrados de nossa mais Alta Corte, ao proferirem declarações divergentes envolvendo o caso  do candidato "A". A divergência é sem dúvida fundamental para a dialética - Tese, Antítese, e Síntese - da prática jurídica. Mas também pode produzir tensão e confusão naqueles não tão familiarizados com  ela, além, claro, de poder ser expressão de interesses espúreos suficientes para colocar em xeque a dignidade e a credibilidade das Instituições.

Isso não só pode dificultar a elucidação da situação por parte do eleitor, notadamente daqueles que para isso  venham a ter menos recursos, como pode também levantar suspeitas sobre a idoneidade deste ou daquele Magistrado. Não sem razão afirmava o jusfilósofo Hans Kelsen que "quando a política entra por uma porta, a justiça sai pela outra". Sobretudo, acrescentaríamos nós, quando a política se transforma em "politicagem" ou política de interesses outros que não o bem maior, o "Bem Comum". Também ao eleitor dotado de bom senso cabe refletir e avaliar bem esse "jogo" de interesses em campo. Caso contrário acabaremos tendo que recorrer à ajuda do VAR para avaliar corretamente não só a atuação dos "jogadores" e das "jogadas", mas também - o que seria sem dúvida lamentável - a atuação dos árbitros e "juízes". Resta Lamentar que no campo do Direito a mera "forma" seja suficiente para impugnar todo um "conteúdo". A sabedoria e o bom senso veriam esse princípio no mínimo com desconfiança. Afinal, "é melhor escrever a coisa certa, de maneira errada, do que escrever a coisa errada de maneira certa" (Rubem Alves).

                            

  L.indolivo Soares Moura-Vitória(ES)

 

 

 


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