"TO BE OR NOT TO BE? 'SER' OU NÃO
'SER DECLARADO' INOCENTE?: A FILOSOFIA PODE
AJUDAR A ESCLARECER A QUESTÃO"
"O maior castigo para aqueles
que não se interessampor política
é que eles serão
governados por aqueles que se interessam" (Arnold Toynbee).
Durante aproximadamente um mês
estivemos "às voltas", mais entretidos que esclarecidos, com o assim
chamado "horário político gratuito". Esse tempo, que a princípio
deveria ter como escopo principal esclarecer melhor o eleitorado sobre os
candidatos em relação ao cargo pretendido, tem por tradição, notada ainda que
não exclusivamente no Brasil, proporcionar momentos hilários e por vezes até
patéticos, em virtude das falas e dos comportamentos dos envolvidos em debates
"ao vivo" promovidos pelos veículos de comunicação. Outras vezes,
entretanto, o ar sisudo e eloquente de alguns faz parecer que estejamos
revivendo tempos arbitrários e ditatoriais. E isso, convenhamos, são lembranças
nada agradáveis. Entremeando ambos os estilos de discursos, verdades e mentiras
costumam vir à tona, de forma tão descarada, que parecem desconsiderar tanto a
inteligência quanto o bom senso dos eleitores e expectadores. Saber
"jogar" com o humor e até mesmo com a ironia - na hora certa, da
forma certa, na intensidade certa, com a pessoa certa e no lugar certo, como
adverte Francis Seeburger em "Como
educar suas Emoções" - é sem dúvida "a alma do negócio", mas
abusar de tais recursos ou infringir quaisquer dos quesitos mencionados, pode
acabar sendo altamente perigoso, para não dizer desastroso.
Falar "sobre", e se envolver
com política, é "conditio sine qua non" para não ser envolvido e
tragado pelas águas do mar da vida da "politicagem", isto é, da má
política, dos maus políticos, dos politiqueiros e outros zumbis e mortos-vivos
mais. Entretanto a linha limítrofe e fronteiriça entre a política e a
politicagem pode não ser tão clara assim, e quando isso acontece é preciso
fazer entrar em cena muita sabedoria e não pouco discernimento. Como estamos as
vésperas de um novo pleito, esta pode ser uma boa razão para exercitá-los. O
fato é que, em virtude das exigências da chamada "ficha limpa" para a
postulação de cargos, uma questão específica vem já há bom tempo dominando os
debates, repercutindo em acusações por um lado e defesa considerada "legítima"
por outro, fazendo com que personagens do mundo jurídico - incluindo alguns
membros da mais Alta Corte - entrassem em cena com a pretensa finalidade de
dirimir a questão. Como de resto, porém, tem acontecido em vários outros casos
com Magistrados dessa "patente mais alta" ou envergadura, o que já
era dúvida acabou se transformando em um torvelinho de águas ainda mais turvas.
E se discernimento e sabedoria são importantes nessa hora, como mencionado,
nada melhor que recorrer à Filosofia e à sua reconhecida disposição para a
reflexão, esperando que ela nos traga um pouco mais de luz e orientação.
"Ser inocente" é o mesmo que
"ser declarado como tal" por via de prolatação de sentença ou outro
instrumento jurídico que a este se equipare? Ser declarado inocente "por princípio
geral de uma Ciência", é o mesmo que "ser inocentado" em razão
de ato ou sentença proferidos por personagens desse mesmo campo científico? O
status de inocência que se reconquista pela impugnação e consequente declaração
de nulidade do ato que condena, é da mesma natureza que aquele que brota de um
novo julgamento realizado após a suspensão temporária e provisória do juízo?
Não sou especialista na Ciência
Jurídica - sendo mais claro, sequer sou formado em Direito; e ainda que o
fosse, poderia fazer parte daquele grupo que nosso jurisfilósofo Miguel Reale
(pai) chama de "rábulas do Direito". Como apesar disso venho
trabalhando com Filosofia e Psicologia aplicadas à área jurídica por mais de
uma década, arrisco-me, em razão dessas humildes credenciais a marcar
"NÃO" no gabarito para cada uma das perguntas feitas anteriormente.
Se isso faz sentido para quem nos acompanha na presente reflexão, poderíamos
perguntar: por que a dúvida deixada no
ar como resultante de intervenções distintas de diferentes Magistrados da mais
Alta Corte, gerando ainda mais dúvida e maior confusão?
A afirmação de que "o Direito não
vem em socorro dos que dormem" é bastante conhecida seja entre estudantes
como também pelos operadores já formados do Direito. Uma exceção a essa regra poderia
ser, claro, quando a política - e pior ainda, a "politicagem" -
invadem a esfera jurídica. Seria esse o caso? O certo é que, contrariando essa
máxima, um Magistrado da Suprema Corte veio de última hora a público para
declarar que o Candidato "A" não só pode como deve ser considerado e
declarado "inocente", em virtude do fato de que, após a impugnação de
todos os processos nos quais o mesmo havia sido declarado "culpado",
nenhum julgamento "posterior" o havia considerado como tal. Como se
sabe, certo número de processos sequer foram ainda retomados, nem parece haver confirmação de
que todos o serão. Alguns, claro, já "caducaram" e foram devidamente
direcionados para o porão da história, uma prática bastante comum das
"defesas", amparadas e beneficiadas pela notória morosidade da
"Justiça" em nosso país. "Data venia", como gostam de
iniciar suas preleções os amantes não só do Direito mas também de sua
"Língua Mátria", o Latim, o afirmado pelo Magistrado da mais Alta
Corte não faz mais que trazer à baila um dos assim chamados "princípios
gerais do Direito" - "ninguém será considerado culpado até provas em
contrário" - que, como diz o próprio nome, sendo "geral" em
absolutamente nada acrescenta, de per si, a um determinado caso em particular.
Assim, o mesmo que do candidato "A" foi declarado, poderia e deveria
sê-lo igualmente de "B", "C", "D", até à
consumação do alfabeto. Não só isso: poderia e deveria ser afirmado de todos e
de cada um dos cidadãos brasileiros. Resumindo: a declaração em questão nada
mais é do que um simples "lembrete" relacionado a um pressuposto
básico tanto da Ciência quanto da prática jurídica.
O fato é que a mencionada
"declaração" acabou servindo
de "bandeira" e de álibi para o candidato "A", como se sua
inocência tivesse sido resultado de diversos processos de julgamento que teriam
percorrido todas as instâncias e tivessem dirimido em definitivo todas as
questões e colocado fim a todas as acusações que sobre ele pairavam, o que
evidentemente é em parte verdade mas não "toda a verdade", pelo simples
fato de não ser bem assim.
Note-se que o que acabou retirando o
candidato "A" da condição de "ficha suja", devolvendo-lhe o
status de "ficha limpa" e consequentemente recolocando-o em condições
de postular candidatura, foi tão somente um juízo- definitório, é bem verdade -
quanto "à forma" do processo condenatório - no caso, incompetência
jurisdicional - que a princípio absolutamente nada diz sobre o chamado mérito
de "conteúdo", ocorrendo tão somente a suspensão "provisória"
do juízo quanto à sua inocência ou culpabilidade "de Direito", mas
nada dizendo ou acrescentando sobre ambas no campo "dos fatos". Isso,
claro, recoloca o acusado na condição prévia e inicial de "inocente",
por ser esta, como já vimos, pressuposição de um dos princípios gerais do
Direito.
Conteúdo elaborado em defesa do
candidato "A" por um de seus eleitores, e postado recentemente na
Internet, trazia a seguinte conclusão: "Assim, se (nome do candidato
"A") não foi culpado por ter sido investigado e condenado em um
processo corrompido pela parcialidade, então ele e qualquer outro cidadão que
enfrente situação semelhante é inocente". Inocente de fato, note-se bem,
somente quando declarado como tal pelos eventuais processos levados a cabo em
sequência à impugnação do(s) processo(s) primários que concluíram pela
condenação, e que o consideraram neste segundo caso como inocente. Em relação
aos demais processos, entretanto, "inocente" apenas e tão somente em
função de um princípio geral do Direito que a todos, indistintamente, considera
como inocentes até prova em contrário, e que em virtude de tal princípio
recoloca o candidato "A" nas mesmíssimas condições não só de qualquer
outro, como também de todo e qualquer cidadão. Mas e as inúmeras acusações que
pesaram para que o mesmo fosse, ainda que num processo considerado
"vicioso" ou "viciado", considerado "culpado"?
Bem, disso a justiça se encarregará "no seu devido tempo" de avaliar,
retomar se for o caso, analisar e concluir. O que até a presente data, ao menos
para com certo número de processos, não foi feito.
Dir-se-á que até lá o candidato
"A" pode e deve ser considerado totalmente "inocente"? Em
razão dos princípios gerais que governam o Direito sim, sem dúvida, mas tão
somente em razão disso. Dir-se-á que ao Direito isso basta? Mais uma vez
pode-se responder que sim, e qualquer bom jurista provavelmente não ousaria
negá-lo. Dir-se-à enfim que o que basta ao Direito basta à Ética e à
Moralidade, e por conseguinte ao cidadão eleitor? Bem, aí a resposta já não é
tão simples assim. Uns talvez dirão que sim, outros certamente que não, outros
enfim talvez preferirão fazer uso do já mencionado "benefício da
dúvida". Mas observe que no presente caso tal beneficio não deveria
reverter em benefício do réu - "in dúbio pro reo", como reza o
Direito - mas sim em benefício do bem do próprio eleitor, e mais
especificamente, de um bem ainda maior, o chamado "bem comum", um
"dos", senão o principal escopo, reconhecido por uma gama de
filósofos, a ser perseguido tanto pela Ciência Jurídica quanto por sua prática.
Ou seja, na dúvida sobre a idoneidade de fato e não apenas de Direito, do
acusado ou do "candidato", melhor "não ultrapassar", ou
seja, "melhor não investir" numa candidatura sobre a qual paira maior
probabilidade de risco. Ao menos é o que sugerem tanto a sabedoria quanto o bom
senso. Afinal, como adverte Arnold Toynbee, juntamente com outros
"escolhidos", serão eles que nos governarão por boa parte de tempo.
É preciso lembrar ainda que, mesmo
considerando-se a hipótese de que o candidato "A" pudesse ter sido
julgado e declarado inocente em todos os processos necessários para avaliar
cada uma das acusações que sobre ele pairasse, ainda assim isso não seria
suficiente para equiparar seu status de "inocência" no campo jurídico
ao de "eticidade e moralidade" nos seus respectivos campos. Para
muitos estudiosos, de fato, o Direito quando praticado opera - isto,
"se" e "quando" o faz - com um "éthica minimum",
ou seja, com um mínimo ético, o que torna suas proposições e conclusões impossíveis,
"a priori", de serem "transplantadas" de forma simples e
automática para o campo da ética e da moralidade. Por outro lado, parece
evidente que os critérios jurídicos de decisão na decretação de inocência ou
culpabilidade, não apenas não são os mesmos como podem também não ser os únicos
exigidos em outros campos, como os já mencionados,sobretudo quando o que está
em jogo é a escolha, através do voto, deste ou daquele candidato para aquele ou
este cargo. Em outras palavras, a chamada "ficha limpa" é, e como tal
deve ser considerada, apenas um "pré-requisito" necessário mas sem
dúvida insuficiente para garantir um mínimo de confiabilidade, por parte do
candidato, àquele que está em vias de se decidir por sua pessoa como
"objeto" de escolha e eleição.
À guisa de conclusão: uma declaração
de inocência que esteja respaldada única e exclusivamente em razão de um
princípio geral que governa o Direito - "Ninguém será declarado culpado
até que se prove o contrário", ou seja, "até o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória" - absolutamente nada diz, afirma ou nega, do
status final e real de um réu ou acusado, podendo esse status ao final ser
considerado totalmente distinto daquele pressuposto numa situação inicial. Ao
garantir o status prévio de "inocência" a todos os cidadãos, até
prova em contrário, o sistema jurídico nada mais faz que aplicar o chamado
"benefício da dúvida": "In dubio, pro reo", que tanto deve
ser aplicado no ato final de prolatação da sentença - persistindo, claro, a
dúvida - como por razões óbvias também no decorrer do processo e mais ainda
pelo tempo que antecede sua colocação em marcha, quando então tal
"benefício" se equipara ao princípio geral da "inocência ou não
culpabilidade prévias".
Não estar suficientemente atento a tais
nuances, ou em estando ignorá-las, pode levar a conflitos desnecessários e
indesejáveis, tipo aquele que presenciamos quando da intervenção de diferentes
Magistrados de nossa mais Alta Corte, ao proferirem declarações divergentes
envolvendo o caso do candidato
"A". A divergência é sem dúvida fundamental para a dialética - Tese,
Antítese, e Síntese - da prática jurídica. Mas também pode produzir tensão e
confusão naqueles não tão familiarizados com ela, além, claro, de poder ser expressão de
interesses espúreos suficientes para colocar em xeque a dignidade e a
credibilidade das Instituições.
Isso não só pode dificultar a
elucidação da situação por parte do eleitor, notadamente daqueles que para isso venham a ter menos recursos, como pode também
levantar suspeitas sobre a idoneidade deste ou daquele Magistrado. Não sem
razão afirmava o jusfilósofo Hans Kelsen que "quando a política entra por
uma porta, a justiça sai pela outra". Sobretudo, acrescentaríamos nós,
quando a política se transforma em "politicagem" ou política de
interesses outros que não o bem maior, o "Bem Comum". Também ao
eleitor dotado de bom senso cabe refletir e avaliar bem esse "jogo"
de interesses em campo. Caso contrário acabaremos tendo que recorrer à ajuda do
VAR para avaliar corretamente não só a atuação dos "jogadores" e das
"jogadas", mas também - o que seria sem dúvida lamentável - a atuação
dos árbitros e "juízes". Resta Lamentar que no campo do Direito a
mera "forma" seja suficiente para impugnar todo um
"conteúdo". A sabedoria e o bom senso veriam esse princípio no mínimo
com desconfiança. Afinal, "é melhor escrever a coisa certa, de maneira
errada, do que escrever a coisa errada de maneira certa" (Rubem Alves).
L.indolivo Soares Moura-Vitória(ES)
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