sábado, 15 de outubro de 2022

"REPENSANDO A EDUCAÇÃO: PRÓS E CONTRAS DO ENSINO (EM TEMPO) INTEGRAL"

 


"REPENSANDO  A  EDUCAÇÃO: PRÓS  E  CONTRAS DO ENSINO (EM TEMPO) INTEGRAL)"

 

Lindolivo Soares Moura(*)

      "... é natural que um grande  atrativo  do ensino  em  período integral  seja a possibilidade de deixar as crianças  com ocupações  por maistempo"

           (Blog de uma Escola de  Vila  Velha, ES)

Em tempos de eleições - na prática, invariavelmente, "tempos eleitoreiros" -  o chamado "Ensino Integral", ali onde ele existe, encontra-se em via de implementação, ou simplesmente permeia os discursos, tem sido objeto de marketing e propaganda política. E como não poderia deixar de ser, o mesmo vem envolvido por uma aura de novidade, empreendorismo, e capacidade de resolução incomparáveis. Em tempos de normalidade política, por outro lado, em que os ânimos estão menos exaltados, as escolas públicas ou privadas que têm o Ensino Integral como sua principal estratégia educacional, se esmeram no marketing e na propaganda como forma de atrair e arregimentar o maior número possível de "clientes". Não é raro que um grande número deles - pais, avós e outros responsáveis - preocupados e ansiosos por resolver dificuldades e dilemas pessoais, notadamente aqueles relacionados à vida profissional, acabem aderindo ao modelo sem refletir a fundo não só sobre as vantagens mas também sobre os eventuais efeitos colaterais adversos que tal modalidade de ensino possa trazer consigo.

Notemos antes de mais nada que a expressão "ensino integral" é usada de forma ambígua: acaba sendo empregada para caracterizar uma "modalidade" específica de escola ou de ensino, quando na verdade deveria caracterizar o "ideal" e o escopo de todo ensino e de toda e qualquer escola. O fato de que se possa estar de acordo quanto à importância da integralidade no ensino, não significa por certo que esse mesmo consenso deva ser automaticamente aplicado ao chamado "Ensino Integral", como se fosse essa a modalidade ideal ou mais adequada. Uma coisa são os fins, outra bem diferente são os meios. Ninguém por certo se recusaria, podendo fazê-lo, a buscar para seus filhos e netos um ensino no qual estejam contemplados aspectos culturais, intelectuais, físicos, emocionais, sociais, e até "vocacionais", dentre outros. Não me parece que seja essa a questão a merecer especial atenção. O que pode e merece ser objeto de consideração são questões outras, do tipo: somente o chamado Ensino (de tempo) Integral está em condições de responder bem a essa demanda? Por quais razões o chamado "Ensino Tradicional" - ou "Regular", como se prefira - não estaria em condições de fazê-lo? Que eventuais desvantagens tanto uma forma de ensino como a outra portam consigo, como uma espécie de "efeito colateral"?

Avaliados os prós e os contras de ambas as modalidades, qual delas deveria ser considerada de fato mais vantajosa, tendo-se em conta os principais objetivos que se pretende alcançar? Por motivos óbvios a presente reflexão não pretende ser exaustiva no trato com tais questões. Menos pretensiosa, busca tão somente levantar alguns pontos que talvez mereçam um pouco mais de atenção.

Para efeito de esclarecimento chamaremos de "Educação (em tempo) Integral" a modalidade de "aprendência" na linguagem de Hugo Assmann - "Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente" - ou "ensino- aprendizagem" na terminologia tradicional, que se desenvolve no ambiente escolar por aproximadamente oito a nove horas, enquanto o Ensino que estamos denominando "Tradicional"  ou "Regular" se desenvolve por cerca de cinco horas. À primeira vista algo chama a atenção: ou o Ensino Tradicional não tem pretensões e/ou condições de alcançar a integralidade, ou, na hipótese de possuir ambas as coisas devemos concluir que o ensino denominado "Integral" só se diferencia do Ensino Tradicional ou Regular na extensão, ou seja, no número de horas a mais em que o estudante permanece no recinto escolar. Ocorre que essa conclusão é categoricamente rechaçada tanto pelos discursos, sejam eles eleitoreiros ou não, como pelo "marketing" e a propaganda das escolas que operam com a  chamada "Educação Integral", e buscam convencer pais e responsáveis das vantagens em optar pelo mesmo.

Via de regra o argumento mais forte nesse sentido consiste justamente em assegurar que a escola em questão esteja em condições, nos vários aspectos requeridos para tal, de garantir uma experiência e uma vivência "diferenciadas" ao aluno, bem como uma educação que integre, com a melhor sinergia possível, os aspectos anteriormente  mencionados. Cientes de que grande número de pais e responsáveis estão envolvidos durante praticamente todo o dia com suas próprias responsabilidades e atividades, tais escolas se dispõem também, claro, a garantir que seus filhos, nesse mesmo tempo, estarão não apenas "seguros" do ponto de vista da proteção, mas igualmente "ocupados" com obrigações e tarefas escolares, sem a perda de atenção e foco que, segundo elas, certamente ocorreria caso estivessem em suas casas manipulando computadores, celulares e outros aparatos eletrônicos disponíveis. Esses talvez sejam os principais atrativos explorados pela oferta da chamada Educação (em tempo) Integral.

Devemos reconhecer, entretanto, que a busca de integralidade não é e nem pode ser exclusividade desta ou daquela modalidade de  ensino. A chamada Educação Tradicional ou Regular, desde que devidamente pensada e planejada, é sem dúvida também ela capaz de responder e corresponder com excelência às mesmas demandas feitas à chamada Educação (em tempo) Integral, exceto, claro, no tocante aos quesitos específicos já mencionados que só esta última, por motivos óbvios, está em condições de proporcionar. Um exemplo dessa capacidade de resposta por parte da Educação Regular ou Tradicional é o que ocorre na Finlândia, país que depois de iniciar uma profunda reforma no Ensino há mais de quatro décadas chegou na década passada a ser considerado o país com a melhor educação do mundo, e que mesmo tendo perdido esse posto continua sendo referência mundial quando o assunto é educação. Contrariamente aos países que hoje ocupam o "topo", e que investem maciçamente na Educação (em tempo) Integral sobretudo com objetivos claros de concorrência e competição no grande mercado da imensa "aldeia global", o ensino finlandês apresenta características bem distintas. Vejamos algumas delas.

Na Finlândia o Professor leciona em média seiscentas horas anuais, enquanto nos Estados Unidos, outra referência mundial em Educação, a média é praticamente o dobro, acima de 1.080 horas. A "autonomia" do aluno - e não prioritariamente a "competitividade" - é estimulada através da oferta de métodos de ensino alternativos que exploram competências menos tradicionais, tais como projetos direcionados para a busca de soluções de problemas comunitários e enfrentamento de problemáticas sociais. As classes em geral são relativamente pequenas, com cerca de vinte alunos, enquanto o número de aulas é menor, com mais tempo de descanso para os alunos e possibilidade de melhor preparação das aulas por parte dos professores. Há um reconhecido menor número de testes formais de avaliação, bem como de tarefas e atividades para serem desenvolvidas em casa, com duração próxima de meia hora. Apenas cerca de dez por cento dos aspirantes a Professor são aceitos nas faculdades e universidades, enquanto aproximadamente sessenta e seis por cento dos estudantes conseguem ingresso nas mesmas, sendo esta a maior proporção de toda a Europa e, claro, sem comparação com o Brasil. Esses dados, de 2016,  constam de um estudo de Bruno André Blume, formado em Direito Internacional pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Com essa modalidade de ensino, a Finlândia é um dos países mais competitivos do mundo? Sem dúvida que não! Ao menos quando comparada a países como Estados Unidos, China (sobretudo  a Província de Xangai), Coréia do Sul e os chamados "Tigres Asiáticos" em geral, onde a educação está diretamente voltada e direcionada para a competitividade, tanto a nível interno - entre os próprios estudantes - como externo, visando o enfrentamento da concorrência no grande mercado da imensa aldeia global. Entretanto alguns dados impõem respeito e chamam a atenção. A Finlândia possui um dos IDHs - Índice de Desenvolvimento Humano - mais altos do mundo - décimo primeiro, segundo pesquisa Gallup em parceria com a ONU - índice este que avalia, entre outros dados, renda per capta, saúde e educação. O país não possui favelas e favelados, e é considerado um dos mais seguros para se viver - índice de oitenta e cinco por cento nesse quesito, segundo pesquisa feita junto à própria população. A educação é considerada "constitucionalmente" direito de todos, do ensino básico à universidade; mesmo as escolas particulares são gratuitas e subsidiadas pelo Governo. À parte sobre o que pode significar "felicidade", o certo é que a Finlândia foi considerada o país "mais feliz do mundo" por quatro anos consecutivos. Nem o fato de ser um país altamente consumidor de antidepressivos parece ser suficiente para por em xeque a qualidade de vida dos finlandeses, já que esse fato se refere não só à Finlândia mas aos países nórdicos em geral.

O que afinal tem a ver tudo isso com a Educação (de tempo) Integral? Nossa hipótese inicial é a de que a integralidade perseguida pelo Ensino e pela Educação tem antes a ver com critérios e quesitos outros que não necessariamente a "extensão", contrariamente ao que a propaganda e o marketing em seus mais variados níveis querem nos fazer crer. Apontar para a prática em nosso país, afirmando que os Governos e as Escolas  que optam pela Educação (de tempo) Integral têm obtido melhores resultados que as de Ensino Tradicional ou Regular, identificando "resultados" com "notas", e notas com "performances", não nos parece tampouco suficiente e adequado para que se possa encerrar de vez a questão. Primeiro porque "nota", ainda que importante, obviamente, não é o único quesito - e pode-se suspeitar de que seja o principal - a ser considerado quando o que está em jogo é a "qualidade de vida", o  "desenvolvimento 'humano'", e a própria "saúde" em seus mais variados aspectos. Devemos considerar com atenção e avaliar com critério até que ponto a "competitividade" como característica preponderante de um sistema educacional tende a favorecer e contribuir, de fato, para a saúde, a qualidade de vida, e o desenvolvimento mais humanizado de uma população. Estresse, ansiedade e depressão, têm sido diagnosticados - e isso já há bem tempo - como os três grandes males do século XXI. Uma hipótese não descartada pela presente reflexão é a de que, justamente ao contrário do que nos querem fazer crer, a "extensão" prolongada no ambiente escolar pode vir a ser uma espécie de "tiro pela culatra", tornando crianças, jovens e adolescentes ainda mais tensos, cansados, estressados, e consequentemente menos resilientes para o trato tanto nas relações interpessoais escolares, como na convivência social em geral. Apenas uma hipótese? Sem dúvida! Mas que talvez mereça mais atenção do que comumente lhe venha sendo dispensada.

À guisa de conclusão: o estímulo à competitividade é bom, não há como negá-lo; difícil é saber o limite e a partir de onde ele deixa de sê-lo. Se esse limite não for estratégica e sabiamente respeitado, certamente teremos sérias dificuldades em incutir nas gerações mais jovens princípios e valores como "cooperação", compromisso e "solidariedade", assim como "respeito", "tolerância", "compreensão" e outros mais. Durante bom tempo muito se falou em "QI" - Quoeficiente de Inteligência. Percebido como insuficiente, passou-se a chamar a atenção para o "QE" - Quoeficiente Emocional. Hoje vem se falando e acentuando cada vez mais a importância de um "QS" - do inglês, "Spirituality", Quoeficiente de Espiritualidade. A integralidade da educação talvez esteja menos na "extensão" do tempo e mais na real e sinérgica integração dessas dimensões tão essenciais ao ser humano. Caso contrário poderemos incorrer no erro de atribuir mais importância à "forma" do que ao "conteúdo", ainda que evidentemente estes não sejam mutuamente excludentes.

Em nosso país, falando de um modo geral, a educação e o ensino têm sofrido intromissões excessivas e reconhecidamente mais perniciosas que virtuosas pela engrenagem do poder político, com cenas que descambam para os porões do politiqueiro e da politicagem. Índices são literalmente "construídos", metas "ideologicamente" (mal)traçadas, "performances" estrategicamente "alteradas", por vezes não só cerceando como tornando difícil o exercício da liberdade e da autonomia por parte dos mestres, educadores e professores. Estados, Escolas, e a própria Federação, parecem competir entre si, como se a qualidade da educação estivesse bem representada por notas, escores, e índices de aprovações. Tudo isso lamentavelmente contribui para que "a faixada" e a "maquiagem" prevaleçam sobre a real qualidade do ensino e da educação. Claro que há exceções que merecem ser reconhecidas e servem de referência, mas lamentavelmente essa parece estar bem longe de ser a regra.

Dir-se-á que o Ensino (de tempo) Integral favorece as classes mais pobres em vários aspectos: criança na escola, alimentação, dispensa da creche, e por aí vai. Esse é um fato inconteste. Assim como o são os inúmeros "vales" e "bolsas" criados e mantidos por sucessivos governos. Isso entretanto não torna menos imperiosa as advertências de uma recomendação feita há mais seis décadas pelo Concílio Ecumênico Vaticano II: "Satisfaçam-se em primeiro lugar as exigências da justiça para que não se dê como caridade o que já é devido a título de justiça. Eliminem-se as causas dos males, e não só os seus efeitos. Seja encaminhada a ajuda de tal maneira que aqueles que a recebem pouco a pouco dela se libertem e se tornem auto-suficientes"

(Encíclica Apostolicam Actuositatem).

A chamada Educação (de tempo) Integral tem com certeza seus pontos positivos e suas inegáveis qualidades. Ajuda a resolver problemas e dilemas que pais e responsáveis teriam sem dúvida mais dificuldades de solucionar se não pudessem contar com ela. Entretanto, é preciso reconhecer que muitas vezes o que é solução para uns pode vir a se tornar problema para outros. O fato de muitas vezes os maiores interessados que são os próprios estudantes não serem sequer consultados para participar das discussões a respeito, não parece ser bom sinal; tanto a nível do Estado para com o povo, como dos pais e responsáveis para com seus filhos e aqueles que estão sob seus cuidados. Afinal, almejamos e queremos que nossos filhos, filhas e netos, sejam educados e formados antes de tudo para a vida, como cidadãos verdadeiramente "cosmopolitanos", ou nos damos por satisfeitos que estejam sendo preparados apenas e tão somente para satisfazer às demandas e exigências "tecno-científicas" do mercado de trabalho? Tratar a Educação (de tempo) Integral como alternativa é sem dúvida agir com bom senso, assim como pode ser contra-senso e até perigoso ver nela, "a priori", a melhor ou a única alternativa de solução.

_____________________

  (*)Possui graduação em teologia pelo Instituto teológico pio XI (1983), graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (1997), graduação em Filosofia pela Faculdade Salesiana de Filosofia, ciências e letras (1986) e mestrado em Filosofia pela Pontificia Universidade Gregoriana ,Roma - Itália(1988) . Foi por 11 anos consecutivos professor de filosofia jurídica e psicologia Jurídica do Centro Universitário de Vila Velha, ES.Durante esses 11 anos foi Coordenador Pedagógico por 05 anos e de Ensino por 1 ano e meio do mesmo Curso de Direito. Atualmente é terapeuta de grupo, individual, vocacional, Consultório Clínico Psicológico particular. Formou-se recentemente em Psicodrama (02 anos) pelo Instituto Pegasus de Vitória, ES. Atualmente, cursa a pós graduação TCC - Terapia Cognitivo Comportamental.

 

https://www.escavador.com/sobre/3708588/lindolivo-soares-moura

 

 

 

 

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário