sábado, 22 de abril de 2023

"PASSARAM AO LARGO O SACERDOTE E O LEVITA: O DESPREZO COMO AMEAÇA LETAL PARA A AUTOESTIMA E A QUALIDADE DE VIDA"

 

"PASSARAM AO LARGO O SACERDOTE E O LEVITA: O DESPREZO COMO  AMEAÇA LETAL PARA A AUTOESTIMA E A QUALIDADE DE VIDA"

            [Texto  Integral]

Por  Lindolivo Soares Moura (*)

 

   "Todos  temos por  onde  sermos  desprezíveis.  Cada  um de nós traz consigo  um  crime cometido  ou um crime que a alma  nos pede para cometer"   [Fernando Pessoa]

Três palavras pronunciadas pelo Filósofo Francês Renê Descartes revolucionaram a história da filosofia: "Cogito, Ergo Sun!" - "Penso, Logo Existo!". Quanto mais precisa e concisa for uma máxima, mais impactante costuma ser. Se o nome pronunciado é Descartes, o "Cogito" é sempre lembrado. Mas e se o nome lembrado for Shakespeare? Nesse caso a máxima evocada provavelmente será: "ser ou não ser? Eis a questão!". Curioso é que para a chamada filosofia existencialista "ser" e "existir" são conceitos essencialmente distintos, enquanto para Sheakspeare e Descartes eles parecem perfeitamente intercambiáveis. Aliás, o Existencialismo tira seu nome e sua identidade do segundo, do "existir", enquanto o "ser" - ou a "essência", mais precisamente - é concebido como um "eterno vir-a-ser", um ser em contínuo processo de transformação  e construção. "Eterno", força de expressão, pois a morte como encontro pessoal, e o morrer como condição humana universal, colocam um ponto final nesse processo. Ou não!

Assim como Pandora fora consolada pela Esperança, depois que seu excesso de curiosidade colocara à solta todos os males, incluindo a morte, a espiritualidade insiste em abrir uma nova porta, apontar para "uma luz no fim do túnel". Afinal, como afirma Carl Simonton, "na ausência da certeza, nada há de errado com a esperança". Para Deepak Chopra, voz importante no movimento que prenuncia a chegada de uma nova espiritualidade, essa ânsia de imortalidade provavelmente  seja a "força motriz" que há milênios vem impulsionando os incansáveis "buscadores" de todos os tempos e gerações: "ao longo da evolução de Deus - ele afirma - as pessoas anseiam por transformação. Cada religião se assemelha a um programa de treinamento, cujo principal objetivo é substituir a concha da mortalidade pelo manto reluzente da imortalidade". O Existencialismo não nega mas tampouco pressupõe essa transformação radical, "transcendental", se podemos e preferimos chamá-la assim. Afirma que nossa responsabilidade se limita à construção do nosso ser ou essência "única e exclusivamente no aqui e no agora de nosso contexto vital" - "sitz im leben" -  bem como na ação solidária para com os demais na persecução do mesmo objetivo.  Ao mesmo tempo, paralela e correlatamente as disciplinas diversas, notadamente aquelas assim chamadas de "humanas", procuram oferecer, cada uma delas, sua contribuição específica para a construção dessa "essência" e a estruturação da identidade própria de cada um de nós.

No campo específico da Psicologia vigora um princípio aparentemente  simples, mas que requer atenção especial. Isso porque, malgrado sua simplicidade, tal princípio se reveste de importância crucial para a auto-estima e a qualidade de vida, bem como para a busca de construção de nossa essência íntima, tal como propugnado pelo Existencialismo. Requer-se que psicólogos, filósofos, espiritualistas e humanistas, estejamos todos atentos a esse princípio antes que a qualquer um outro, sobretudo quando o que está em foco é o ser considerado como "razão de ser" da criação: o ser humano. Buscando preservar sua simplicidade, tentaremos resumir tal princípio da forma mais simplificada e fiel possível. Ficaria mais ou menos assim: "em cada ser humano, antes do reconhecimento do desejo vigora sempre o desejo de reconhecimento". A relevância de tal princípio se mostra ainda mais evidente quando se tem presente a célebre afirmação psicanalítica de que "o desejo é a alavanca do mundo". Não seria exagero, ao nosso ver,  afirmar que tal princípio possa ser considerado como uma espécie de bússola, norteadora e orientadora de todos os demais. Indícios dessa relevância estão presentes, por exemplo, na ousada e provocante definição de espiritualidade de Kimeron Harding, onde os sentimentos de "pertença" e "inclusão" aparecem como fundamentos estruturantes indispensáveis do ser, da identidade e da personalidade de cada pessoa. Nas palavras de Harding,  "[...] Espiritualidade não significa que você deva acreditar num Deus ou Deuses, ou em espíritos que rondam a terra. A espiritualidade [...] incluindo ou não um conceito de um Deus ou de um poder superior, envolve o desenvolvimento de um sistema de crenças que o faça sentir que VOCÊ PERTENCE, MERECE SER INCLUÍDO - maiúsculas por nossa conta - E TEM UM IMPORTANTE PAPEL no planeta". Não parece ser diferente a percepção de William James, quando afirma apontando nessa mesma direção: "o mais profundo princípio da natureza humana é a ânsia de ser apreciado", isto é , não apenas de ser considerado importante, mas sobretudo de sentir-se digno de apreço, estima, afeição e consideração. Numa única palavra, de "validação".

Ora, se tivermos presente o fato de que as crenças e convicções que trazemos conosco atuam como princípios que guiam as nossas ações, e influenciam poderosamente a maneira como nos comportamos e reagimos para com os demais, tal como sustenta Karim Khoury, perceberemos melhor o quanto essa ânsia por reconhecimento, apreço e afeição, ocupa o lugar central - espinha dorsal - na construção de nossa identidade própria e de nossa essência como indivíduos singulares.

Constata-se assim que a  filosofia existencialista e a psicologia - em particular, a psicologia da personalidade - se encaminham rumo a um estratégico ponto de convergência, fiéis a uma espécie de "encontro previamente marcado", como se mutuamente atraídas uma pela outra. Não admira que muitos profissionais estejam determinados a resgatar essa dimensão fundamental e originária da filosofia, atuando profissionalmente como "orientadores filosóficos", dessa forma complementando,  integrando e enriquecendo o trabalho dos profissionais psicólogos e vice-versa.Tudo, esclareça-se desde logo, numa busca de sinergia e cooperação, e não de concorrência  ou competição, como faz questão de deixar claro um dos maiores expoentes dessa nova vertente filosófica, Lou Marinoff:  "não estamos tentando substituir ou suplantar a psiquiatria ou a psicologia. Estamos simplesmente devolvendo a filosofia ao seu devido lugar, em parceria com outras profissões que prestam ajuda [...]".

Essa é a principal razão que nos leva a conectar princípios filosóficos,  psicológicos e até mesmo espirituais - não necessariamente "religiosos" - num único e mesmo texto proposto à reflexão, opção estratégica que vimos abraçando já há um bom tempo. Essa "conexão" não se mostra apenas viável, mas também confiável e segura, ainda que a princípio nem sempre ao alcance da compreensão e da aprovação de todos, malgrado a persistente busca por diálogo e interdisciplinaridade que tem norteado os diversos saberes, ciências e disciplinas nos últimos tempos. Feita essa observação, retomemos o objetivo central de nossa reflexão: avaliar a importância do afeto e do apreço para a  autoestima e a qualidade de vida do ser humano, bem como o quanto sua ausência ou escassez podem comprometer severamente a consecução desse objetivo. A chamada "parábola do bom samaritano" se revela arquetípica nesse sentido, ao colocar em foco num único e mesmo relato o verso e o reverso da experiência  humana do apreço: o da "ausência e recusa" - nas atitudes do sacerdote e do levita - e o da sua "presença revivificadora" - na pessoa do viajante samaritano -  presença esta que tem no "cuidado" uma de suas principais formas de expressão. Isto posto, podemos avançar um pouco mais em nossa reflexão.

Aprendemos com o Existencialismo que ninguém "nasce humano" -  nem como homem e nem como mulher, como afirma Simone de Beauvoir - senão que "se torna" humano. Com base nessa premissa a psicologia nos põe a par do quão importante é para cada pessoa, em sua trajetória de individuação e diferenciação, o sentimento de aceitação e apreço que ela experimenta ao longo desse processo de "construção de si mesma". Crasso equívoco, portanto, é a pressuposição de que aquilo que os outros pensam, sentem ou afirmam de nós não tem ou não deva ser tido como de maior relevância. Se é certo que essa espécie de "espelhamento" não pode e não deva ser considerada como critério determinante de auto-avaliação e auto-percepção, é igualmente verdadeiro que menosprezá-la ou ignorá-la é demonstrar escasso conhecimento daquilo que na rica expressão de Teilhard de Chardin recebe o nome de "fenômeno humano", e de como se dá o processo de constituição de nosso ser, de construção de nossa individualidade, e de engendramento de nossa singularidade.Tal percepção deve, claro, ser continuamente reavaliada e revista, na medida em que o despertar de nossa consciência continua evoluindo até alcançar seu máximo grau de completude, como sugerem os orientais. Não seria talvez essa a verdadeira saga do ser humano sobre a face da terra: nascer dependente e condicionado pela mais absoluta "heteronomia", e seguir em busca de sua auto-suficiência  e máxima "autonomia"?

Numa síntese do que se pode entender por "autoestima", Karim Khoury a define como sendo "a avaliação objetiva, honesta e favorável que fazemos de nós mesmos, que tem o condão de influenciar todas as nossas demais experiências e nossa qualidade de vida". A auto-estima pressupõe portanto, como se depreende da definição sugerida, duas condições ou disposições básicas: autoconhecimento e mudança, isto é, a adoção de padrões de comportamento adequados à permanente transformação que o processo de viver e conviver impõe a cada ser humano. Essa pressuposição  norteia invariavelmente todo tipo de atendimento, acompanhamento e aconselhamento à nossa disposição ao longo do nosso processo de crescimento, quer estejamos nos referindo a um nível profissional ou não. Mas, eis que aqui entra uma vez mais em cena o chamado "princípio do duplo poder", tal como o denomina Lou Marinoff:  "tudo que carrega consigo potencialidade para o bem, carrega também consigo igual potencialidade para o mal". Assim, o remédio poderoso pode se transformar de repente num veneno perigoso. E é a partir daqui que  a questão envolvendo o apreço e a validação, por um lado, e o "desprezo" e a ausência de reconhecimento, por outro, entram em cena.

Lembra-se de quantas vezes em manifestações de agouro, recomendações, felicitações e cumprimentos por motivos diversos, iniciamos nossa fala com o título de "prezado/prezadíssimo" e o seu equivalente "caro/caríssimo", para mencionar apenas as saudações mais rituais e frequentes? Entre tantos outros significados, tais saudações têm o sentido de "dileto", "querido", "amado", "estimado", uma espécie de "apreço que não tem preço", algo que se insere na ordem do inestimável e do imponderável! Sentimentos de afeição e estima que quando são sinceros e genuínos não alimentam apenas o nosso eu consciente, mas alcançam o âmago de nosso ser mais profundo e verdadeiro, que responde pelo nome de "self", cuja característica principal, como já  o dissemos, consiste em portar consigo uma ânsia profunda por reconhecimento e validação, estima e apreço! Alimentar o ego pode não ser tão difícil como pensamos ou possa parecer, posto que habitando as superfícies ele se satisfaz com trivialidades e superficialidades.  Já para com o "self", nossa essência mais íntima, que habita as profundezas do nosso ser, essa já é lá uma outra história. Pode parecer um mero jogo de palavras, "licença poética", se se preferir, mas para entendermos bem a dimensão e a importância da estima e do apreço na consolidação de nossa identidade e de nossa individualidade, vale a pena reatualizar o princípio já mencionado: "para todo e cada ser humano, sem exceção, antes do reconhecimento de qualquer tipo de desejo, está o desejo de reconhecimento ", isto é, ser percebido como digno e merecedor de valor, apreço, estima e validação. Essa ânsia ou desejo inato, podemos considerá-la como uma espécie de "software" que cada ser humano traz consigo desde sempre, antes mesmo de seu próprio nascimento, e que  de forma alguma suporta permanecer desconhecido ou passar ignorado.

Lamentavelmente porém, nem toda ânsia por apreço e estima, e nem todo anseio por reconhecimento e validação encontram realização e satisfação na vida real, como seria de se esperar. Você pode até não conhecê-los, mas o fato é que muita gente conhece, experimenta, e por vezes se vê constrangida a conviver com o desprezo, o descaso e a indiferença por toda uma existência, trazendo para a vida adulta marcas profundas e indeléveis da infância e da juventude. E se você nunca experimentou esses sentimentos adversos e corrosivos da auto-imagem e da auto-estima, é provável também que sequer tenha ideia do que eles representam para quem com eles convive, sem esperança e expectativa de conseguir superá-los. E para que ao menos ideia possa ter, vou lhe contar uma pequena "parábola" da vida real - a do bom samaritano você já conhece -  esperando que essa dose de realidade venha a aguçar um pouco mais a sua e a sensibilidade de todos nós.

A experiência que lhe será relatada serviu de referência para que o TRT4, da Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul, fizesse vir à luz a obra "Vivendo a experiência de ser um trabalhador  invisível", proposta posteriormente a nível nacional como uma espécie de novo paradigma na formação dos magistrados trabalhistas brasileiros. Refiro-me à experiência realizada por alunos e alunas do Curso de Direito da USP - Universidade de São Paulo - numa determinada etapa de sua formação acadêmica. Resumidamente, tal experiência constituiu-se no seguinte. Parte das alunas mulheres de algumas turmas, sem que o restante de seus colegas tivessem conhecimento, foram colocadas como "empacotadoras" em uma determinada rede de supermercados. Parte dos alunos homens, por sua vez, sem que seus demais colegas de turma soubessem da iniciativa, foram trabalhar como "garis" no recinto interno da própria Universidade. No relato posteriormente compartilhado as  alunas-mulheres, empacotadoras, se queixaram de terem sido "excessivamente vistas" e demasiadamente exigidas, já que os chefes e  responsáveis tampouco sabiam da experiência que estava sendo levada a cabo no ambiente de trabalho. Enquanto isso a queixa dos alunos-homens, como "garis", foi na mesma proporção, mas no sentido exatamente inverso ao das colegas mulheres: "nós simplesmente não éramos vistos ou percebidos como pessoas. Éramos apenas 'uniformes' desempenhando uma função, fazendo seu trabalho. Sequer nossos colegas de turma nos reconheceram, pois nem olhar para nós eles olhavam! Ficamos literalmente 'invisíveis!'".

Pois bem! Convido você agora, a partir da experiência mencionada, a parar para refletir e nos conscientizarmos de quantas pessoas - milhares, milhões? - são e continuam sendo tratadas por nós ora com excesso extremo, ora com ausência total de visibilidade.  Desprezo e indiferença costumam ser tão rotineiros, e ocorrer com uma frequência tão grande em nosso dia-a-dia, que passam a ser "normais" e "naturalizados" a ponto de ficarem fora do alcance dos radares de nossa sensibilidade. Passamos a não mais "detectar", conscientemente, as situações e vezes em que estamos expondo e  submetendo as pessoas a esse tipo de experiência psicológica e emocionalmente tão deplorável quanto degradante. A recusa de um contato, de um gesto, de uma palavra, às vezes até de um olhar, para com alguém  que nos interpela num semáforo,  com quem cruzamos numa caminhada, o gari que recolhe e retira o lixo e o entulho de nossas ruas e praças, as pessoas que trabalham no nosso prédio ou condomínio e passam dias e noites, domingos e feriados nas guaritas e portarias, limpando e higienizando áreas e corredores, aparando a grama e dando vida nova a nossos jardins, aquelas que marcam presença  na administração otimizando tarefas, recebendo e posteriormente distribuindo encomendas e pacotes, enfim, as pessoas que trabalham dentro de nossa própria casa todos os dias, semanas, meses e às vezes anos, todas essas podem se tornar oportunidades e experiências de satisfação ou sofrimento de vida ou morte "psico-emocional para essas pessoas, em dependência direta da forma como lidamos e nos comportamos para com elas.

Pensamos - e pensamos muito equivocadamente, diga-se de passagem - que o dinheiro, uma ajuda extraordinária ou simplesmente um bem material, são ao fim e ao cabo o de que mais necessitam essas e outras pessoas, e concluímos que isso é o mais importante para elas. Aprimorar urgentemente essa forma de perceber as coisas, os vínculos e os relacionamentos,e passar a nos relacionar com as pessoas de nosso cotidiano e de nosso convívio de uma forma mais humana, mais qualitativa que quantitativa, revela-se ainda mais urgente que intervir na busca de solução conjunta para minorar danos decorrentes da miséria, da desigualdade social, de eventuais catástrofes e eventos causadores de dor e sofrimento de ordem material. Não se trata, veja bem, de ignorar e menos ainda de desdenhar da importância de tais realizações e iniciativas, sobretudo quando elas se mostram urgentes e necessárias. Mas para um contingente humano certamente muito maior do que aquele que entra em nossos cálculos e suposições, a carência psíquica e afetivo-emocional, a ânsia por apreço, reconhecimento e validação, tudo isso é sem dúvida muitíssimo mais gritante e importante que a carência material econômico-financeira. Quase sempre são pessoas que trazem sobre si um histórico de descuido, descaso e indiferença, quando não de desprezo e rejeição, que poucos de nós conseguiríamos suportar. Ora, se a vida, os deuses e as divindades, nos sorriram com famílias estáveis, pais afetivamente presentes, avós que nos querem tão bem como a seus próprios filhos, e uma série de cuidadores e prestadores de ajuda e cuidado sensíveis e amáveis, sempre ocupados e preocupados com nossa qualidade de vida e nosso bem estar tanto material como psíquico e emocional, por que não sorrir de volta com um maior aprimoramento  de nossa sensibilidade, com um grau de atenção e de percepção mais apurados, com um maior investimento de compreensão, empatia e interesse genuíno pela história e a trajetória de vida daqueles que não foram contemplados com esse mesmo tipo de "herança" com que fomos agraciados?  Por que não exercitar com mais frequência  e atenção gestos que nos custam tão pouco, e que podem se revestir de um poder curativo e regenerativo para o espírito e a auto-estima de tantas pessoas, que como nós  também têm sonhos, anseios e expectativas que só podem ser percebidos e mensurados na medida em que nos dispomos a esse exercício diferenciado de empatia e sensibilidade?

O Psicanalista francês Jacques Lacan, talvez mais que nenhum outro, insiste em seus "Seminários" sobre o poder mágico das palavras. Mágico e terrível, é bem verdade! Mas a cada um de nós cabe escolher e decidir se vamos edificar dentro de nós e a partir de nós um arsenal bélico ou um centro de apoio e acolhimento. Um simples olhar tanto pode "disparar" mísseis de indiferença, desprezo e agressividade emocional, como pode enviar flechas  de simpatia, empatia, compreensão, apreço e reconhecimento. Todos sabemos por experiência própria o que isso significa e o que isso representa na vida de uma pessoa. Ninguém é tão rico emocionalmente,  que nunca tenha precisado de um olhar desse tipo, ou talvez até mais que um olhar. Tampouco ninguém é tão pobre afetiva e emocionalmente, que nada tenha para compartilhar. A escassez de bens materiais nunca é tão grave quanto a carência de estima, afeto, apreço, reconhecimento e validação. "A deformação do corpo não afeta a alma - dizia Sêneca - mas a beleza da alma se reflete no corpo".

 

Também é certo que na medida em que formos reconquistando nossa capacidade de sentir e perceber a presença "do outro", para além do uniforme ou da roupa que ele veste ou deixa de vestir,   conseguiremos detectar melhor seu mundo interior, sua história única e sua trajetória de vida pessoal. "Os sentimentos humanos são palavras expressas no corpo humano", dizia Aristóteles, e só não os detecta e identifica quem não se dispõe a fazê-lo ou quem teimosamente insiste em não querer enxergar. A cegueira do espírito, nesse sentido, é sem dúvida muito mais prejudicial que a cegueira do corpo, porque ela nos incapacita para perceber o "invisível", e como ensinava Saint-Exupéry, o invisível é o mais importante, o que realmente conta, o essencial. Perder um emprego, uma fonte de renda, tendo que readequar nossa situação  econômico-financeira, pode sem dúvida acarretar problemas e dificuldades, mas perder a capacidade de sentir, de sensibilizar-se e de enternecer-se, talvez seja o maior dos males, a doença mais grave, o vírus de maior alcance pandêmico a ser enfrentado. Se curável ou não,  isso só cada um de nós poderá dizer. Remédio e vacina para isso existem, mas o negacionismo, sob a forma de racionalização e escassez de sensibilidade, pode continuar dificultando e muito as coisas.

À guisa de conclusão: expressar estima e apreço pelas pessoas não é algo espontâneo e natural, exceto em casos específicos onde a proximidade e a natureza do vínculo suscitam automaticamente manifestações do tipo. Nossa natural tendência em racionalizar e julgar quase sempre se antecipa à entrada em cena de nossos sentimentos e de nossa expressão de afeto. Em razão disso, muitos, talvez a grande maioria, acabem excluídos do nosso repertório de gentileza, validação, reconhecimento, estima e apreço. Costumamos ser seletivos demais! E seletividade pressupõe escolha, preferência, identificação, bem como, na contrapartida, desconfiança, preconceito, discriminação e exclusão. "Todo semelhante tende a atrair e ser atraído pelo semelhante", dizia São Tomás de Aquino. Natural, portanto, é a seleção e a seletividade, como procurou demonstrar Darwin. Manifestar estima e apreço pelo outro, pelo diferente, pelo desconhecido, exige consciência e conscientização,  esforço e disposição, e com certeza boa dose de virtude e virtuosidade.

Mas há um lado curioso e nem sempre facilmente percebido, quando se coloca em marcha o processo anteriormente mencionado. No exato momento, e na exata medida em que expressamos reconhecimento, estima e apreço por alguém, estamos "ipso facto" investindo em nossa própria auto-estima e em nossa própria qualidade de vida, uma espécie de "efeito bumerangue" do investimento que fazemos nos demais. O grande mestre espiritual do budismo, Sidarta Gautama, o Buda, expressou isso numa fórmula bastante simples: "quer faça eu, o bem ou o mal, serei sempre herdeiro daquilo que eu fizer". No cristianismo, a chamada "Oração de São Francisco" talvez seja o exemplo mais expressivo dessa equação simples, que Carl Jung chamou de "sincronicidade", e que leva o nome de reciprocidade . Mas existe um vírus altamente perigoso, que pode não apenas dificultar mas literalmente nos convencer a "passar ao largo", como fizeram o sacerdote e o levita do arquetípico relato-parabólico de Lucas. Você vai conhecê-lo no próximo e último parágrafo, com o qual finalizamos nossa reflexão. Depois é só tomar sua própria decisão, sem esquecer que quando se quer fazer alguma coisa, sempre se acha um caminho, mas quando não se quer, sempre se acha uma boa desculpa.

Carta de Otto Lara Rezando a Norah Medeiros:

"Quando eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê, nao-vendo. Experimente ver, pela primeira vez, o que você vê todos os dias, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos é familiar já não desperta curiosidade. O campo visual de nossa retina é como um vazio.

Você sai todos os dias, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém perguntar o que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio, pelo mesmo hall do prédio do seu consultório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe um bom dia, e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.

Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima ideia. Em 32 anos, nunca o vira. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia em seu lugar, estivesse uma girafa cumprindo o rito, pode ser que também ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver: gente, coisas, bichos! E vemos? Não, não vemos!

Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo! O poeta é capaz de ver, pela primeira vez, o que de tão visto, ninguém vê! Há pai que nunca viu o próprio filho! Marido que nunca viu a própria esposa! Disso existe às pampas! Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos! E É POR AÍ QUE SE INSTALA, NO CORAÇÃO, O MONSTRO DA INDIFERENÇA" - maiúsculas por nossa conta.

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(*) Reflexão enviada de Vitória(ES) via whatsapp.

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