sexta-feira, 19 de setembro de 2025

XIII= REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ) 8 ) "ESCUTA ATIVA:CIÊNCIA E ARTE A SERVIÇO DA COMPREENSÃO E DA INCLUSÃO, E NÃO APENAS DA RAZÃO E DA PERSUASÃO" [Parte III]

 

XIII= REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ) 8 )

 

"ESCUTA ATIVA:CIÊNCIA E ARTE A SERVIÇO DA COMPREENSÃO E DA INCLUSÃO, E NÃO APENAS DA RAZÃO E DA PERSUASÃO" [Parte III]

 "Escuta  ativa  é a disposição de modi- ficar ou  ser modificado  por  aquilo que se está ouvindo" [José Jackson Campello]

 

Minha neta, de dezesseis para dezessete anos, passava o final de semana comigo. Eu a havia levado ao shopping, onde se encontraria com o namorado para uma sessão de cinema. A recomendação havia sido clara: "não saiam do shopping e não façam nenhuma 'ponte' sem autorização prévia de vovô" [um precedente semelhante já havia ocorrido, e eu já a havia orientado nesse sentido]. Quando liguei para saber se a sessão havia terminado, e saber se já poderia ir buscá-la, ela disse: "sim, vovô, o filme já terminou; pegamos um Uber e estamos indo à casa do meu namorado; ele quer me entregar uma surpresa". De forma calma, porém firme, respondi: "esse não foi o combinado. Mas já que estão a caminho, sigam em frente". Calculando o tempo que levariam para chegar à casa do seu namorado, enviei-lhe, alguns minutos depois, a seguinte mensagem: "em meia hora você deve estar em casa; sem prorrogação. Seu namorado e/ou uma pessoa da família deverá acompanhar você". Eu estava na sala, sozinho, quando ela bateu à porta, já no limite do horário que eu lhe havia passado. Mal abri a porta, toda de longo, ela escancarou um sorriso sem tamanho e exclamou: "olha, vô, a surpresa que meu namorado queria me fazer!".

Era um buquê de flores. Lindo! Daqueles que eu jamais me lembro de ter oferecido à minha companheira em toda a minha vida. Eu havia me preparado para recebê-la, corrigi-la, repreendê-la, ainda que sem intenção de impor-lhe algum tipo de sanção. Ela sabia que havia ultrapassado o sinal amarelo; fosse o vermelho, certamente estaria cônscia de que "haveria consequências"; e não seriam boas. Quando vi o buquê em suas mãos, o sorriso em seu rosto e o brilho em seus olhos, minha mudança de reação foi imediata - "há um tempo para cada coisa debaixo do céu". Dei-lhe um abraço, tomei delicadamente o buquê nas mãos, senti o aroma das flores, e depois de enaltecer o gesto cavalheiresco de seu namorado fiz com que o buquê retornasse às suas mãos. Pedi-lhe que fizesse várias poses diferentes, para que pudéssemos registrar aquele momento inesquecível para ela e, confesso, também para mim. Depois enviamos algumas fotos para sua mãe e para algumas amigas dela. Sugeri-lhe que colocasse o buquê na água para que as flores durassem o máximo de tempo possível, depois colocasse seu pijama, fizesse sua higiene pessoal e, por fim, se preparasse para descansar. Quando ela já se encontrava sentada na cama, aproximei-me e lhe disse: "agora vovô quer conversar uma coisa importante com você". E assim, durante aproximadamente dez a quinze minutos, conversamos calmamente sobre o que precisava ser conversado. Ela estava aberta, receptiva e pareceu ter compreendido as razões de minha correção. Lamentou-se pelo ocorrido, deu-me um beijo e preparou-se para descansar. Suponho que tenha sonhado com um lindo buquê de flores recebido de seu primeiro - e provavelmente inesquecível - namorado.

Muitos psicólogos e terapeutas, assim como muitos pais e avós, discordarão da forma como conduzi a cena em dois atos, descrita anteriormente, realmente acontecida e que contou com seu aval para que pudesse ser compartilhada. Dirão que a eficácia de uma orientação ou de uma correção é maior quando feitas no momento imediatamente subsequente ao erro ou à falha que as tenham suscitado. É provável que tenham razão. Não teria sido um erro se eu tivesse agido com base nesse princípio. Ocorre que minha abordagem e minha compreensão da escuta ativa começam justamente aqui. Sempre que uma determinada situação nos ofereça a oportunidade para que possamos "otimizar" um diálogo ou uma simples conversação, não deveríamos deixar passar em branco essa oportunidade. Imaginemos que eu tivesse começado pela orientação ou a correção, e só depois, numa espécie de "segundo ato", passado ao ritual da surpresa do buquê, tal como já descrito. Esse segundo momento ficaria seguramente prejudicado pela adversidade do "clima emocional" reinante no primeiro ato. A psicologia ensina que não devemos cercar um fato ou um valor positivo com elementos negativos. Se minha intenção é falar do amor de Deus, por exemplo, não faz sentido rechear minha fala com conceitos do tipo: pecado, culpa, condenação, inferno e outros semelhantes. O problema é que nós, pais, avós e educadores - psicólogos e psicoterapeutas também costumam ser pais e mães, em sua maioria - vamos, ao longo da vida, construindo caminhos e "rotas" de segurança e depois nos sentimos inseguros e incapazes de tomar qualquer tipo de "atalho" que se nós apresente. Acontece que nem todo atalho é ruim ou perigoso, e um bom número deles com certeza otimizaria nossa jornada e nossa missão formativa direcionada aos nossos filhos e netos. A maioria dos pais e dos avós provavelmente se colocaria "de plantão" à porta aguardando a chegada do "infrator", prontos para fazer a necessária correção. Ocorre que, se um fato novo se sobrepõe, em importância ou ocasião, a um fato anterior de igual ou menor relevância, pais, avós e educadores precisamos usar de sensibilidade e compreensão para percebermos a hora e a forma certas de otimizar a escuta do outro e não apenas a nossa. Esse também é um princípio básico - que proponho como o primeiro deles - do que estamos chamando, aqui, de escuta ativa.

A segunda característica mais importante da escuta ativa - a meu juízo, claro - diz respeito à forma diferenciada no trato com a afetividade. Escutar para compreender as razões do outro é importante, claro, mesmo quando possamos presumir que ele não está com a razão. "O coração tem razões que a própria razão desconhece", afirmava René Pascal. Porém, o que mais contribui para que um diálogo seja efetivamente produtivo e otimizado é nossa capacidade de rastrear e identificar os sentimentos e as emoções que se alojam por trás da fala de quem nos fala. Existe um poder encantador nas palavras e mágico na escuta, como deixou escrito Lacan. O outro se sente "tocado" - isto é, afetiva e emocionalmente compreendido - quando percebe que seus sentimentos e suas emoções, e não apenas sua fala e suas razões, encontraram ressonância emocional em nós. Esta é a "pedra de toque" de um diálogo genuíno e verdadeiro, capaz de propiciar um "encontro autêntico entre um eu e um tu", tal como concebido por Martin Buber. Entretanto, essa capacidade não parece ser algo natural e inato, senão em bem poucos. Pessoas dotadas de alta percepção sensitiva costumam fazer uso desse maravilhoso dom, mas para a grande maioria de nós isso exige esforço, crescimento espiritual e, acima de tudo, um contínuo e elevado despertar da consciência. Se você teve a sorte de encontrar alguém com essa qualidade especial - em um pai, uma mãe, um cônjuge ou um professor - com certeza terá se sentido compreendido e acolhido em um nível poucas vezes experimentado. Os mais belos e arquetípicos diálogos nascem a partir desse elevado nível de escuta ativa e compreensão profunda. A Sagrada Escritura está recheada de um expressivo número deles. Grandes mestres como Buda, Jesus, Sócrates, OSHO e Zaratustra, só se ocupam com as coisas da mente na medida em que elas são portas de entrada para se alcançar o coração. Fora dessa rota, sobra apenas muito blá-blá-blá e excesso de racionalização.

A terceira característica da escuta ativa se encontra no fato de que ela pressupõe um processo gradual e profundo de "desconstrução", no sentido que passamos a descrever em seguida. Ao longo de nosso crescimento vamos montando uma espécie de "caixa de ferramentas" onde são depositados conceitos, "pre"conceitos, crenças, ideologias, juízos, "pre"juízos, escalas, códigos, regras e sanções, que posteriormente aplicaremos ao comportamento das pessoas com as quais interagimos no dia a dia. Julgar e sancionar, como mecanismo de controle, talvez seja um dos atos humanos mais recorrentes e que ocorre em múltiplos e diversificados níveis. A sociedade - para o que aqui nos interessa, o nível mais alto dessa escala - delega e repassa essa função às diversas instituições a ela interligadas, dentre as quais estão a família, a escola, a igreja e, por fim, cada ser humano em particular. Historicamente, muitas dessas "ferramentas" têm se mostrado inadequadas, ultrapassadas, além de excessivamente desumanas. Em razão disso, de tempos em tempos todos, em todos os níveis, precisamos passar por um processo de "desconstrução" desse verdadeiro arsenal do qual fazemos uso cotidianamente. As religiões têm um papel importante nesse processo de desconstrução, renovação e reconstrução. Ambiguamente, porém, elas podem não só retardá-lo, como dificultá-lo, comprometê-lo, e até mesmo impedir que ele seja colocado em marcha. Esse é o caso, por exemplo, da notória "involução" sofrida pelos conceitos de Sheol, Hades e Geena, respectivamente, no judaísmo antigo, no judaísmo intertestamentário e finalmente no cristianismo. Em tempos remotos não havia uma concepção dualista-maniqueísta de céu e inferno, de julgamento e de condenação, e menos ainda de punição e castigo eternos. O Sheol era simplesmente a morada dos mortos, para onde iam indistintamente todos os seres humanos após a morte. Não era um lugar de recompensa e tampouco de castigo. Ao entrar em contato com outros povos e outras crenças, sobretudo durante o exílio babilônico, os judeus começaram a reelaborar suas principais concepções concernentes ao destino dos mortos: os justos aguardariam, em plena paz, a ressurreição, enquanto os ímpios fariam o mesmo, só que em meio a terríveis e interminaveis tormentos. Esse novo Sheol, agora completa e funestamente "reformado", foi muitas vezes traduzido para o grego como Hades e, mais tarde, com o cristianismo, transformado em “inferno” ou Geena. Muitas falas de Jesus sobre a implacabilidade do julgamento pessoal e do juízo final são claramente "credos" e "crenças" remanescentes do judaísmo tardio, colocados em sua boca. Isso tem muito menos a ver com Jesus e seu processo de redenção, e muito mais com a Igreja enquanto instituição. Essa surpreendente "involução" nos ajuda a compreender e interpretar com mais fidelidade a máxima nietzschiana de que "o verdadeiro e autêntico cristianismo morreu na cruz". Um Deus juiz que julga, condena, e finalmente desiste da maior parte de sua criação - pois não foi dito que são poucos os que se salvam? - é totalmente estranho tanto ao que seu Filho ensinou quanto ao que Ele praticou. Esta é a principal razão pela qual toda escuta ativa, que tenha como objetivo precípuo o crescimento e o resgate do outro, pressupõe um processo de "desconstrução". O próprio Jesus, durante toda a sua vida, liderou esse processo. Por outro lado, "homens cruéis acreditam num Deus cruel e usam sua crença para justificar sua crueldade. A fé apenas amplia o bem ou o mal que já existe", deixou escrito Bertrand Russell.

A quarta e última característica da escuta ativa - sugira quantas mais, você desejar - é que ela deve visar sempre o crescimento e, quando necessário, o resgate do outro. Isso se impõe não apenas por motivos religiosos ou espirituais, mas em razão da dignidade da qual se reveste todo e cada ser humano. Alguns encontros e diálogos da vida de Jesus são paradigmáticos nesse sentido: Zaqueu, o cobrador de impostos rico e desprezado; a mulher adúltera, já previamente julgada e condenada; e a mulher samaritana do poço de Jacó, discriminada em múltiplos e diferentes aspectos. Especialmente nesse último encontro, Jesus rompe, ao mesmo tempo, barreiras culturais, religiosas e de gênero: judeus não falavam com samaritanos, muito menos homens com mulheres, e menos ainda em público. São encontros e diálogos que não deixam dúvida quanto à intenção primordial de Jesus: resgatar e "re"incluir; desistir da pessoa, jamais. "Eu vim para que todos tenham vida"; "não vim chamar os justos, mas os pecadores"; "uma ovelha perdida, depois de encontrada traz mais alegria e regozijo do que as noventa e nove que não se perderam", são máximas que corroboram essa essência de sua missão. Por outro lado, um rótulo de "inútil" aplicado por nós a uma pessoa equivale a uma declaração explícita de que não estamos mais dispostos a investir em seu resgate. Um grito, um palavrão, por vezes até mesmo algumas chibatadas, a gente suporta, releva e esquece. Mas quando alguém deixa claro que está desistindo de nós, a dor da rejeição se mostra insuportável. A fala e a escuta que não têm como objetivo primeiro e último o resgate e o crescimento do outro, pouco ou nada têm de terapêutica. São como o bronze que soa ou o címbalo que retine, como já deixara claro São Paulo. "Escutar verdadeiramente é oferecer ao outro a chance de existir em sua plenitude, pois quem é ouvido é resgatado do silêncio e da invisibilidade", deixou escrito certo autor desconhecido.

À guisa de conclusão: nossa resistência em perdoar determinados atos e ofensas não é inata, isto é, não nascemos com ela, como uma espécie de hardware que já vem instalado num computador. Ela é fruto de aprendizado gradual e contínuo, que nos chega por meio de inúmeras instituições com as quais interagimos ao longo da vida. Isso, entretanto, não nos isenta da responsabilidade de ressignificar e rematrizar muitas dessas crenças, "verdades" e convicções que nos foram transmitidas e continuam sendo ensinadas. É a isso que chamei de processo de "desconstrução", um processo que não alcança seu fim em si mesmo. Ele é como a "ironia" socrática que antecede e prepara para a "maiêutica"; no presente caso, para a reconstrução. Nossas mentes padecem de um excesso de "heteronomia". Sem uma faxina geral, de tempos em tempos, sequer sobra lugar para o exercício da "autonomia". O que os orientais chamam de "despertar da consciência" não é senão isso: um esvaziamento prévio da mente, seguido da conquista de um máximo de autonomia com um mínimo de heteronomia, estado em que a pessoa se transforma no único mestre de si mesma. Alcançado esse nível de despertar da consciência - que James Fowler chamou de "transcendência" ou "ensino e cura" - nossa capacidade de compreensão e de inclusão é máxima, e nossa predisposição para julgamento e segregação é mínima. Isso vale para qualquer tipo de juízo ou julgamento.

"Têm olhos, mas não veem, boca, mas não falam, ouvidos, mas não ouvem": ouvir é a percepção passiva dos sons. Quando ouvimos, nossos ouvidos captam palavras, ruídos ou sons do ambiente, mas não há necessariamente compreensão ou atenção plena. Ouvir é ato físico e automático; os estímulos nos chegam, mas podem não penetrar em nosso entendimento e em nossa compreensão. Escutar, ao contrário, é uma ação ativa. É ouvir com atenção, intenção e presença mental e emocional. Envolve compreender o sentido das palavras, captar emoções, sentimentos e intenções, interpretar gestos e decifrar silêncios. É entrar em contato com o outro, estar disponível e aberto à mensagem que ele realmente nos quer transmitir. Quem somemte ouve corre o risco de responder sem entender, de interpretar mal, e de manter vínculos e relacionamentos superficiais. Uma escuta ativa cria empatia, conexão e confiança, e permite que o outro se sinta visto, escutado e compreendido de fato. Se é verdade que a Psicanálise é a "cura pela fala", como afirmou Ana O, a primeira paciente de Freud, a escuta ativa é, sem dúvida, o medicamento mais eficaz e eficiente da receita.

 

( * ) Texto enviado de Vitória (ES) via Whasapp

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