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REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ) 8 )
"ESCUTA ATIVA:CIÊNCIA E ARTE A SERVIÇO DA COMPREENSÃO E DA
INCLUSÃO, E NÃO APENAS DA RAZÃO E DA PERSUASÃO" [Parte III]
"Escuta
ativa é a disposição de modi-
ficar ou ser modificado por
aquilo que se está ouvindo" [José Jackson Campello]
Minha neta, de
dezesseis para dezessete anos, passava o final de semana comigo. Eu a havia levado
ao shopping, onde se encontraria com o namorado para uma sessão de cinema. A
recomendação havia sido clara: "não saiam do shopping e não façam nenhuma
'ponte' sem autorização prévia de vovô" [um precedente semelhante já havia
ocorrido, e eu já a havia orientado nesse sentido]. Quando liguei para saber se
a sessão havia terminado, e saber se já poderia ir buscá-la, ela disse:
"sim, vovô, o filme já terminou; pegamos um Uber e estamos indo à casa do
meu namorado; ele quer me entregar uma surpresa". De forma calma, porém
firme, respondi: "esse não foi o combinado. Mas já que estão a caminho,
sigam em frente". Calculando o tempo que levariam para chegar à casa do
seu namorado, enviei-lhe, alguns minutos depois, a seguinte mensagem: "em
meia hora você deve estar em casa; sem prorrogação. Seu namorado e/ou uma
pessoa da família deverá acompanhar você". Eu estava na sala, sozinho,
quando ela bateu à porta, já no limite do horário que eu lhe havia passado. Mal
abri a porta, toda de longo, ela escancarou um sorriso sem tamanho e exclamou:
"olha, vô, a surpresa que meu namorado queria me fazer!".
Era um buquê de
flores. Lindo! Daqueles que eu jamais me lembro de ter oferecido à minha
companheira em toda a minha vida. Eu havia me preparado para recebê-la,
corrigi-la, repreendê-la, ainda que sem intenção de impor-lhe algum tipo de
sanção. Ela sabia que havia ultrapassado o sinal amarelo; fosse o vermelho,
certamente estaria cônscia de que "haveria consequências"; e não
seriam boas. Quando vi o buquê em suas mãos, o sorriso em seu rosto e o brilho
em seus olhos, minha mudança de reação foi imediata - "há um tempo para
cada coisa debaixo do céu". Dei-lhe um abraço, tomei delicadamente o buquê
nas mãos, senti o aroma das flores, e depois de enaltecer o gesto cavalheiresco
de seu namorado fiz com que o buquê retornasse às suas mãos. Pedi-lhe que
fizesse várias poses diferentes, para que pudéssemos registrar aquele momento
inesquecível para ela e, confesso, também para mim. Depois enviamos algumas
fotos para sua mãe e para algumas amigas dela. Sugeri-lhe que colocasse o buquê
na água para que as flores durassem o máximo de tempo possível, depois
colocasse seu pijama, fizesse sua higiene pessoal e, por fim, se preparasse
para descansar. Quando ela já se encontrava sentada na cama, aproximei-me e lhe
disse: "agora vovô quer conversar uma coisa importante com você". E
assim, durante aproximadamente dez a quinze minutos, conversamos calmamente
sobre o que precisava ser conversado. Ela estava aberta, receptiva e pareceu ter
compreendido as razões de minha correção. Lamentou-se pelo ocorrido, deu-me um
beijo e preparou-se para descansar. Suponho que tenha sonhado com um lindo
buquê de flores recebido de seu primeiro - e provavelmente inesquecível -
namorado.
Muitos psicólogos e
terapeutas, assim como muitos pais e avós, discordarão da forma como conduzi a
cena em dois atos, descrita anteriormente, realmente acontecida e que contou
com seu aval para que pudesse ser compartilhada. Dirão que a eficácia de uma orientação
ou de uma correção é maior quando feitas no momento imediatamente subsequente
ao erro ou à falha que as tenham suscitado. É provável que tenham razão. Não
teria sido um erro se eu tivesse agido com base nesse princípio. Ocorre que
minha abordagem e minha compreensão da escuta ativa começam justamente aqui.
Sempre que uma determinada situação nos ofereça a oportunidade para que
possamos "otimizar" um diálogo ou uma simples conversação, não
deveríamos deixar passar em branco essa oportunidade. Imaginemos que eu tivesse
começado pela orientação ou a correção, e só depois, numa espécie de
"segundo ato", passado ao ritual da surpresa do buquê, tal como já
descrito. Esse segundo momento ficaria seguramente prejudicado pela adversidade
do "clima emocional" reinante no primeiro ato. A psicologia ensina
que não devemos cercar um fato ou um valor positivo com elementos negativos. Se
minha intenção é falar do amor de Deus, por exemplo, não faz sentido rechear
minha fala com conceitos do tipo: pecado, culpa, condenação, inferno e outros
semelhantes. O problema é que nós, pais, avós e educadores - psicólogos e
psicoterapeutas também costumam ser pais e mães, em sua maioria - vamos, ao
longo da vida, construindo caminhos e "rotas" de segurança e depois nos
sentimos inseguros e incapazes de tomar qualquer tipo de "atalho" que
se nós apresente. Acontece que nem todo atalho é ruim ou perigoso, e um bom
número deles com certeza otimizaria nossa jornada e nossa missão formativa
direcionada aos nossos filhos e netos. A maioria dos pais e dos avós
provavelmente se colocaria "de plantão" à porta aguardando a chegada
do "infrator", prontos para fazer a necessária correção. Ocorre que,
se um fato novo se sobrepõe, em importância ou ocasião, a um fato anterior de
igual ou menor relevância, pais, avós e educadores precisamos usar de
sensibilidade e compreensão para percebermos a hora e a forma certas de
otimizar a escuta do outro e não apenas a nossa. Esse também é um princípio
básico - que proponho como o primeiro deles - do que estamos chamando, aqui, de
escuta ativa.
A segunda
característica mais importante da escuta ativa - a meu juízo, claro - diz
respeito à forma diferenciada no trato com a afetividade. Escutar para
compreender as razões do outro é importante, claro, mesmo quando possamos
presumir que ele não está com a razão. "O coração tem razões que a própria
razão desconhece", afirmava René Pascal. Porém, o que mais contribui para
que um diálogo seja efetivamente produtivo e otimizado é nossa capacidade de
rastrear e identificar os sentimentos e as emoções que se alojam por trás da
fala de quem nos fala. Existe um poder encantador nas palavras e mágico na
escuta, como deixou escrito Lacan. O outro se sente "tocado" - isto
é, afetiva e emocionalmente compreendido - quando percebe que seus sentimentos
e suas emoções, e não apenas sua fala e suas razões, encontraram ressonância
emocional em nós. Esta é a "pedra de toque" de um diálogo genuíno e
verdadeiro, capaz de propiciar um "encontro autêntico entre um eu e um
tu", tal como concebido por Martin Buber. Entretanto, essa capacidade não
parece ser algo natural e inato, senão em bem poucos. Pessoas dotadas de alta
percepção sensitiva costumam fazer uso desse maravilhoso dom, mas para a grande
maioria de nós isso exige esforço, crescimento espiritual e, acima de tudo, um
contínuo e elevado despertar da consciência. Se você teve a sorte de encontrar
alguém com essa qualidade especial - em um pai, uma mãe, um cônjuge ou um
professor - com certeza terá se sentido compreendido e acolhido em um nível
poucas vezes experimentado. Os mais belos e arquetípicos diálogos nascem a
partir desse elevado nível de escuta ativa e compreensão profunda. A Sagrada
Escritura está recheada de um expressivo número deles. Grandes mestres como
Buda, Jesus, Sócrates, OSHO e Zaratustra, só se ocupam com as coisas da mente
na medida em que elas são portas de entrada para se alcançar o coração. Fora
dessa rota, sobra apenas muito blá-blá-blá e excesso de racionalização.
A terceira
característica da escuta ativa se encontra no fato de que ela pressupõe um
processo gradual e profundo de "desconstrução", no sentido que
passamos a descrever em seguida. Ao longo de nosso crescimento vamos montando
uma espécie de "caixa de ferramentas" onde são depositados conceitos,
"pre"conceitos, crenças, ideologias, juízos, "pre"juízos,
escalas, códigos, regras e sanções, que posteriormente aplicaremos ao
comportamento das pessoas com as quais interagimos no dia a dia. Julgar e
sancionar, como mecanismo de controle, talvez seja um dos atos humanos mais
recorrentes e que ocorre em múltiplos e diversificados níveis. A sociedade -
para o que aqui nos interessa, o nível mais alto dessa escala - delega e
repassa essa função às diversas instituições a ela interligadas, dentre as
quais estão a família, a escola, a igreja e, por fim, cada ser humano em
particular. Historicamente, muitas dessas "ferramentas" têm se
mostrado inadequadas, ultrapassadas, além de excessivamente desumanas. Em razão
disso, de tempos em tempos todos, em todos os níveis, precisamos passar por um
processo de "desconstrução" desse verdadeiro arsenal do qual fazemos
uso cotidianamente. As religiões têm um papel importante nesse processo de
desconstrução, renovação e reconstrução. Ambiguamente, porém, elas podem não só
retardá-lo, como dificultá-lo, comprometê-lo, e até mesmo impedir que ele seja
colocado em marcha. Esse é o caso, por exemplo, da notória
"involução" sofrida pelos conceitos de Sheol, Hades e Geena,
respectivamente, no judaísmo antigo, no judaísmo intertestamentário e
finalmente no cristianismo. Em tempos remotos não havia uma concepção
dualista-maniqueísta de céu e inferno, de julgamento e de condenação, e menos
ainda de punição e castigo eternos. O Sheol era simplesmente a morada dos
mortos, para onde iam indistintamente todos os seres humanos após a morte. Não
era um lugar de recompensa e tampouco de castigo. Ao entrar em contato com
outros povos e outras crenças, sobretudo durante o exílio babilônico, os judeus
começaram a reelaborar suas principais concepções concernentes ao destino dos
mortos: os justos aguardariam, em plena paz, a ressurreição, enquanto os ímpios
fariam o mesmo, só que em meio a terríveis e interminaveis tormentos. Esse novo
Sheol, agora completa e funestamente "reformado", foi muitas vezes
traduzido para o grego como Hades e, mais tarde, com o cristianismo,
transformado em “inferno” ou Geena. Muitas falas de Jesus sobre a
implacabilidade do julgamento pessoal e do juízo final são claramente
"credos" e "crenças" remanescentes do judaísmo tardio,
colocados em sua boca. Isso tem muito menos a ver com Jesus e seu processo de
redenção, e muito mais com a Igreja enquanto instituição. Essa surpreendente
"involução" nos ajuda a compreender e interpretar com mais fidelidade
a máxima nietzschiana de que "o verdadeiro e autêntico cristianismo morreu
na cruz". Um Deus juiz que julga, condena, e finalmente desiste da maior
parte de sua criação - pois não foi dito que são poucos os que se salvam? - é
totalmente estranho tanto ao que seu Filho ensinou quanto ao que Ele praticou.
Esta é a principal razão pela qual toda escuta ativa, que tenha como objetivo
precípuo o crescimento e o resgate do outro, pressupõe um processo de
"desconstrução". O próprio Jesus, durante toda a sua vida, liderou
esse processo. Por outro lado, "homens cruéis acreditam num Deus cruel e
usam sua crença para justificar sua crueldade. A fé apenas amplia o bem ou o
mal que já existe", deixou escrito Bertrand Russell.
A quarta e última
característica da escuta ativa - sugira quantas mais, você desejar - é que ela
deve visar sempre o crescimento e, quando necessário, o resgate do outro. Isso
se impõe não apenas por motivos religiosos ou espirituais, mas em razão da
dignidade da qual se reveste todo e cada ser humano. Alguns encontros e diálogos
da vida de Jesus são paradigmáticos nesse sentido: Zaqueu, o cobrador de
impostos rico e desprezado; a mulher adúltera, já previamente julgada e
condenada; e a mulher samaritana do poço de Jacó, discriminada em múltiplos e
diferentes aspectos. Especialmente nesse último encontro, Jesus rompe, ao mesmo
tempo, barreiras culturais, religiosas e de gênero: judeus não falavam com
samaritanos, muito menos homens com mulheres, e menos ainda em público. São
encontros e diálogos que não deixam dúvida quanto à intenção primordial de
Jesus: resgatar e "re"incluir; desistir da pessoa, jamais. "Eu
vim para que todos tenham vida"; "não vim chamar os justos, mas os
pecadores"; "uma ovelha perdida, depois de encontrada traz mais alegria
e regozijo do que as noventa e nove que não se perderam", são máximas que
corroboram essa essência de sua missão. Por outro lado, um rótulo de
"inútil" aplicado por nós a uma pessoa equivale a uma declaração
explícita de que não estamos mais dispostos a investir em seu resgate. Um grito,
um palavrão, por vezes até mesmo algumas chibatadas, a gente suporta, releva e
esquece. Mas quando alguém deixa claro que está desistindo de nós, a dor da
rejeição se mostra insuportável. A fala e a escuta que não têm como objetivo
primeiro e último o resgate e o crescimento do outro, pouco ou nada têm de
terapêutica. São como o bronze que soa ou o címbalo que retine, como já deixara
claro São Paulo. "Escutar verdadeiramente é oferecer ao outro a chance de
existir em sua plenitude, pois quem é ouvido é resgatado do silêncio e da
invisibilidade", deixou escrito certo autor desconhecido.
À guisa de conclusão:
nossa resistência em perdoar determinados atos e ofensas não é inata, isto é,
não nascemos com ela, como uma espécie de hardware que já vem instalado num
computador. Ela é fruto de aprendizado gradual e contínuo, que nos chega por
meio de inúmeras instituições com as quais interagimos ao longo da vida. Isso,
entretanto, não nos isenta da responsabilidade de ressignificar e rematrizar
muitas dessas crenças, "verdades" e convicções que nos foram
transmitidas e continuam sendo ensinadas. É a isso que chamei de processo de
"desconstrução", um processo que não alcança seu fim em si mesmo. Ele
é como a "ironia" socrática que antecede e prepara para a
"maiêutica"; no presente caso, para a reconstrução. Nossas mentes
padecem de um excesso de "heteronomia". Sem uma faxina geral, de
tempos em tempos, sequer sobra lugar para o exercício da "autonomia".
O que os orientais chamam de "despertar da consciência" não é senão
isso: um esvaziamento prévio da mente, seguido da conquista de um máximo de
autonomia com um mínimo de heteronomia, estado em que a pessoa se transforma no
único mestre de si mesma. Alcançado esse nível de despertar da consciência -
que James Fowler chamou de "transcendência" ou "ensino e
cura" - nossa capacidade de compreensão e de inclusão é máxima, e nossa
predisposição para julgamento e segregação é mínima. Isso vale para qualquer
tipo de juízo ou julgamento.
"Têm olhos, mas
não veem, boca, mas não falam, ouvidos, mas não ouvem": ouvir é a
percepção passiva dos sons. Quando ouvimos, nossos ouvidos captam palavras,
ruídos ou sons do ambiente, mas não há necessariamente compreensão ou atenção
plena. Ouvir é ato físico e automático; os estímulos nos chegam, mas podem não
penetrar em nosso entendimento e em nossa compreensão. Escutar, ao contrário, é
uma ação ativa. É ouvir com atenção, intenção e presença mental e emocional.
Envolve compreender o sentido das palavras, captar emoções, sentimentos e intenções,
interpretar gestos e decifrar silêncios. É entrar em contato com o outro, estar
disponível e aberto à mensagem que ele realmente nos quer transmitir. Quem
somemte ouve corre o risco de responder sem entender, de interpretar mal, e de
manter vínculos e relacionamentos superficiais. Uma escuta ativa cria empatia,
conexão e confiança, e permite que o outro se sinta visto, escutado e
compreendido de fato. Se é verdade que a Psicanálise é a "cura pela
fala", como afirmou Ana O, a primeira paciente de Freud, a escuta ativa é,
sem dúvida, o medicamento mais eficaz e eficiente da receita.
( * ) Texto enviado de Vitória (ES) via
Whasapp
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