XV-
SANTO
AGOSTINHO E A PALAVRA DE DEUS
O mês de setembro, para a Igreja do
Brasil, é muito especial para todas as comunidades eclesiais missionárias. Já é
uma tradição que este mês seja lembrado como o “Mês da Bíblia”. Setembro foi
escolhido peloRs Bispos do Brasil como o Mês da Bíblia em razão da festa de São
Jerônimo, celebrada no dia 30. A cada ano, um livro é meditado, rezado e
estudado, auxiliando cada cristão a se aproximar da palavra de Deus, “que é viva, eficaz e mais penetrante que
qualquer espada de dois gumes. Penetra até dividir alma e espírito,
articulações e medulas. Julga os pensamentos e as intenções do coração. Não há
criatura que possa ocultar-se diante dela” (Hebreus 4, 12-13).
Santo Agostinho, em sua vida, foi um
daqueles que experimentou a força e o sustento da palavra de Deus. Em seu
processo de conversão, ele relata em suas Confissões: “O que sei, Senhor, sem sombra de dúvida, é que te amo. Feriste
meu coração com tua palavra, e te amei” (Confissões X, 7, 8). Os primeiros encontros de
Agostinho com a Escritura em sua infância deram-se pelas
leituras ouvidas certamente na igreja ou nas proximidades. Foi após o despertar
provocado pelo Hortensius, de Cícero, quando estava com 18
anos, que leu, pela primeira vez, o texto da Escritura, como narra nas Confissões (cf. Confissões III, 5, 9). “Essa leitura, que se reduziu,
evidentemente, a uma parte dessa biblioteca que é a Bíblia, não teve resultado
positivo, por motivos estilísticos: versado na eloquência clássica, considerou
inconveniente o estilo bíblico”
(O’Donnell, 2019, p.184). Porém, lendo novamente ao menos alguns textos
bíblicos, pouco depois caiu na seita dos maniqueus, com os quais precisou ler e
ouvir vários textos conhecidos das Escrituras,
mas inseridos num contexto diferente, ao lado dos escritos dos maniqueus.
Entre as leituras que esses faziam da Escritura,
o que mais afetou Agostinho foi o ataque dos maniqueus ao antropomorfismo e à
suposta imoralidade dos patriarcas do Primeiro Testamento.
A partir desse ponto, o relato da
conversão de Agostinho é uma narração de sua aproximação progressiva e de sua
apreciação cristã sucessiva da Escritura. O estudo da Escritura e de outros textos tornou
indefensáveis as posições maniqueias. O ouvir a pregação de Ambrósio e o
exemplo de sua leitura silenciosa e atenta da Escritura tornaram possível para
Agostinho compreender como uma interpretação plausível da Escritura pudesse estar de acordo com
suas raízes socioculturais e as relativas expectativas. Assim, Agostinho
apresenta o momento decisivo de sua conversão como um ato de leitura da Escritura e de aplicação literal daquela
prescrição moral a si mesmo. Retirou-se em Cassicíaco naquele mesmo inverno, a
fim de ler a Escritura (levando em consideração a
recomendação de Ambrósio de ler o profeta Isaías), mas os registros daquele
inverno são mais de natureza filosófica do que escriturística. Entretanto, nos
anos seguintes, antes de sua ordenação em Hipona, sua atenção voltou-se a
textos específicos da Escritura - particularmente o Gênesis - para refutar os maniqueus.
Antes de sua ordenação presbiteral,
em Hipona, em 391, “escreveu
a seu bispo, Valério, a fim de pedir-lhe tempo para dedicar-se ao estudo
da Escritura”
(O’Donnell, 2019, p.185). Essa referência remete a um processo de formação como
autodidata em Escritura, que para nós, enquanto processo, é
oculto, mas, enquanto resultado, é ineludível. A partir de seus primeiros
escritos como presbítero, sua obra está cheia de referências, ecos e citações
da Escritura. Agostinho começa a mostrar fascínio
pelos Salmos, que o acompanharão pelo resto de
sua vida. Enquanto presbítero, começou a confrontar-se com problemas de
interpretação paulina, e é sabido que, “em meados dos anos 90 do IV século, chegou a um ponto em que
tal estudo o levou a uma visão completamente nova de Paulo, que influenciará
sua teologia pelo resto de sua vida”
(O’Donnell, 2019, p.185). Isso não quer dizer que seu interesse pelo Gênesis e pelos Salmos diminuirá.
Nos anos seguintes, seu interesse exegético principal direcionar-se-á para a
obra de São João, tanto para o Evangelho como para a primeira epístola,
que se tornaram objeto de longas discussões, resultando em obras e
escritos.
Santo Agostinho é tido até hoje como
referência para o estudo da teologia bíblica. Esse talento para a interpretação
da Bíblia e para sua sistematização pode
ser nitidamente observado em suas diversas obras de comentários bíblicos e em
seus numerosos sermões. Uma dessas obras de comentários bíblicos, que também
serviu de inspiração para a atuação política de pessoas como Dietrich Bonhoeffer[1] e Martin Luther King Jr.,[2] é a
obra Sobre o Sermão
do Senhor na Montanha.
Nessa obra, Santo Agostinho faz uma explanação do famoso sermão de Jesus Cristo
no monte (Evangelho de São Mateus, capítulos 5 a 7), que é considerado por
muitos o lugar onde se concentra a primeira exposição da ética cristã.
Agostinho considera a Bíblia como a expressão imediata da
vontade e da inteligência de Deus. A Escritura não
é um livro de história, e sim uma oferta divina que é proporcionada ao homem de
fé para revelar-lhe o que Deus lhe pede em cada momento e o que é que tem de
fazer para agradá-Lo. É a carta que Deus escreveu aos homens: “Daquela cidade, de onde estamos ausentes
como peregrinos, chegaram-nos cartas. São as Escrituras, que nos exortam a viver bem” (Comentários aos salmos 90,2,1). O
que faz ao enviar suas cartas é fazer crescer em nós o desejo da pátria, de
voltar ao nosso autêntico lar.
A Bíblia nasceu da vontade de o povo ser fiel a Deus e a si
mesmo. Nasceu da preocupação de transmitir aos outros e a nós essa fidelidade.
A Bíblia é, portanto, humana e divina
tanto por sua origem como por seu conteúdo: “É um homem que fala de Deus, Deus o inspira, é verdade, mas
não deixava de ser um homem. A inspiração o fez dizer algo. Sem ela, teria
emudecido inteiramente. Porque um homem recebeu a inspiração, não disse tudo o
que o mistério é, mas o homem pode dizer” (Tratado sobre o Evangelho de São João 1,1).
Ler a Escritura é entrar na intimidade da
relação de Deus com um povo que nos deixou por escrito o que temos de fazer
para que nossa vida seja continuamente conectada com Ele. “Agostinho fez da Escritura o alimento de sua vida cotidiana, e
foi capaz de distribuí-la também como pão ao seu povo” (SIERRA RUBIO, 2003, p.8). Como nos
ensina o Concílio Vaticano II, “[...]
é tão grande a força e a virtude da palavra de Deus que se torna o apoio
vigoroso da Igreja, solidez da fé para os filhos da Igreja, alimento da alma,
fonte pura e perene de vida espiritual” (DV 21).
Frei Caio Filipe de
Lima Pereira, OSA
-Texto publicado na
coluna Theos do Jornal
Inquietude On-line, de setembro de 2023.
REFERÊNCIAS
[1] Cf. BONHOEFFER,
Dietrich. Ética. 7 ed. São Leopoldo:
Ed. Sinodal, 2005.
[2] Clayborne
Carson (org.). A autobiografia de Martin Luther King. Rio de Janeiro: Ed.
Zahar, 2014, p. 88-89. Tradução: Carlos Alberto Medeiros.
AGOSTINHO, Santo. Comentário ao Evangelho
e ao Apocalipse de São João. Tomo 1. São Paulo: Cultor de Livros, 2017.
AGOSTINHO,
Santo. Comentário
aos Salmos:
salmos 51-100. Vol. 9/2. São Paulo: Paulus, 2014.
AGOSTINHO,
Santo. Confissões. 17.ed. Tradução de
Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 2004.
BÍBLIA SAGRADA.
Tradução oficial da CNBB. 3.ed. Brasília: Edições CNBB, 2019.
BONHOEFFER,
Dietrich. Ética. 7 ed. São Leopoldo:
Ed. Sinodal, 2005.
CLAYBORNE, Carson
(org.). A
Autobiografia de Martin Luther King. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2014, p. 88-89.
Tradução: Carlos Alberto Medeiros.
CONCÍLIO VATICANO II.
Constituição Dogmática Dei Verbum. In: Documentos do Concílio
Vaticano II: constituições, decretos, declarações. Petrópolis: Vozes, 1966.
O’DONNELL, James J.
Bíblia. In:
FITZGERALD, Allan D, OSA (org.). Agostinho através dos tempos: uma enciclopédia.
São Paulo: Paulus, 2018. p.183-186.
SIERRA RUBIO,
Santiago, OSA. A Bíblia: O Manjar de Deus. Col. Cadernos de
Espiritualidade Agostiniana (7), FABRA. São Paulo, 2003.
https://agostinianos.org.br/artigo/santo-agostinho-e-a-palavra-de-deus/
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