XIII-
SANTO
AGOSTINHO E A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA
Santo Agostinho e a Bíblia: descubra como o
Doutor da Graça leu, viveu e ensinou as Escrituras, unindo fé, razão e amor à
Palavra de Deus.
Autor: Redação MBC
Santo Agostinho e a
Bíblia são inseparáveis quando falamos da história da interpretação cristã. O
Doutor da Graça foi um dos maiores mestres da Igreja no modo de ler, viver e
anunciar as Sagradas Escrituras.
Neste artigo, você vai
descobrir como a Bíblia moldou a vida de Santo Agostinho e como seus
ensinamentos continuam atuais para quem deseja ler a Palavra de Deus com
profundidade, amor e fidelidade. Boa leitura!
A Bíblia na vida da Igreja
A Bíblia é o coração
pulsante da vida da Igreja. Através dela, Deus fala ao Seu povo, revelando
progressivamente Seu plano de salvação e formando, pela Palavra, uma comunidade
de fé, esperança e caridade. Como ensina o Concílio Vaticano II, “nas Sagradas
Escrituras, o Pai que está nos céus vem amorosamente ao encontro de seus
filhos” 1.
A Igreja não apenas
acolhe as Escrituras como Palavra de Deus, mas também as interpreta com
autoridade, guiada pelo mesmo Espírito que as inspirou. Essa união entre Bíblia
e Tradição, sustentada pelo Magistério, constitui o fundamento seguro da fé
católica.
Santo Agostinho viveu profundamente
essa relação: ao descobrir a Bíblia, encontrou a verdade e o sentido da vida.
Ao mesmo tempo, com sua inteligência e fé, ajudou a Igreja a formular
princípios sólidos para a interpretação das Escrituras, lançando bases
duradouras para a unidade entre Palavra e Igreja.
Para aprofundar esse
tema, vale a pena conferir também nosso artigo O que significa interpretar a Sagrada
Escritura em comunhão com a Igreja?, que mostra como essa missão continua viva
até hoje.
Santo Agostinho e a Bíblia
A Bíblia na
conversão de Santo Agostinho
A Bíblia teve um papel
decisivo na conversão de Santo
Agostinho.
No entanto, sua relação inicial com as Escrituras foi marcada por resistência.
Ele próprio confessa que
desprezava sua linguagem, considerando-a “rústica” e inferior aos clássicos
filosóficos que admirava, como os de Apuleio 2.
Agostinho buscava a
verdade, mas ainda era “indócil”, preso à vaidade intelectual e à heresia
maniqueísta 3.
Foi através das homilias
de Santo Ambrósio, bispo de Milão, que ele começou a perceber a profundidade
espiritual da Escritura. As palavras simples escondiam um sentido elevado,
digno de reverência.
Santa Mônica, sua mãe,
pediu ao bispo que falasse com ele. Mas Ambrósio respondeu que Agostinho se
convenceria pela própria leitura.
O ponto decisivo veio
com o célebre “Toma e lê”. Em meio à angústia interior, Agostinho ouviu uma voz
dizendo: “Toma e lê, toma e lê”.
Ele abriu a Bíblia e leu
Rm 13,13-14: “Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e não procureis satisfazer os
desejos da carne” 4.
Naquele momento, as
trevas da dúvida se dissiparam. Alípio, seu amigo, também leu o versículo
seguinte: “Recebei ao fraco na fé”, e aplicou-o a si mesmo.
A Palavra de Deus foi
instrumento direto da graça na conversão dos dois.
Leia mais sobre como se
deu a conversão
de Santo Agostinho.
Como Santo
Agostinho interpretava a Bíblia
A leitura da Bíblia,
para Santo Agostinho, não era um exercício meramente intelectual. Era, antes de
tudo, um caminho espiritual de encontro com Deus.
Seu método unia fé,
razão,
oração e a vida da Igreja. Ele compreendia que as Escrituras continham vários
níveis de sentido, todos ordenados à caridade.
Um dos pilares de sua
abordagem está no tratado A
Doutrina Cristã. Ali, Agostinho afirma que “toda leitura e estudo
das Escrituras apoia-se em dois caminhos: o de discernir aquilo que deve ser
interpretado, e o de transmitir aquilo que foi interpretado” 5.
Ele ensina a distinguir
entre “res” (coisas) e “signa” (sinais), ressaltando que muitos textos
bíblicos, especialmente no Antigo Testamento, são sinais de realidades
espirituais mais elevadas.
Outro princípio central
é o da caridade: toda interpretação válida deve conduzir ao amor de Deus e do
próximo. “A ciência incha, mas a caridade edifica” 6, dizia ele, alertando contra uma leitura
fria e vaidosa.
Agostinho também
estabeleceu a chamada “regra da fé”: se uma leitura literal contradiz a fé ou a
moral cristã, o texto deve ser lido de modo figurado. Isso vale, por exemplo,
para os salmos imprecatórios.
Sua leitura era
profundamente eclesial. Ele dizia: “Eu não daria crédito ao Evangelho se não
fosse a autoridade da Igreja Católica”. A Igreja era, para ele, a guardiã
legítima da Escritura.
Agostinho reconhecia
ainda os diversos sentidos espirituais da Bíblia: alegórico, moral e anagógico
— distinção que mais tarde seria incorporada pelo Catecismo 7.
Sua exegese não era
apenas para eruditos. Ele visava formar pregadores e catequistas, como deixa
claro na Doutrina
Cristã, que divide em três partes sobre a compreensão e uma quarta
sobre a comunicação da fé.
A importância
de Santo Agostinho para a leitura da Bíblia na Igreja Católica
A Igreja Católica
reconhece em Santo Agostinho um dos maiores mestres da interpretação bíblica.
Sua vida e obras influenciaram profundamente a maneira como a Escritura é lida,
ensinada e vivida na tradição católica.
Ele não apenas amou a
Bíblia, mas ajudou a formular os princípios fundamentais de sua leitura, sempre
em fidelidade à Tradição da Igreja e ao Magistério.
Sua obra A Doutrina Cristã tornou-se
um verdadeiro manual para pregadores, teólogos e fiéis. Nela, Agostinho ensina
que “alguns preceitos são dados a todos em comum, enquanto outros são dirigidos
a diferentes estados de vida” 8.
Outro legado precioso é
o tratado Da
Concordância dos Evangelistas, em que Agostinho estuda a harmonia
entre os quatro Evangelhos. Ele mostra como os hagiógrafos, inspirados por
Deus, apresentam de maneira complementar o único Evangelho de Cristo.
Na obra, o santo
desmonta as acusações de contradição levantadas por pagãos da época do Império
Romano, mostrando que as diferenças de estilo ou ordem narrativa não
comprometem a verdade dos fatos.
Essa defesa permanece
atual diante das críticas modernas — muitas delas repetindo os mesmos erros de
interpretação. Agostinho oferece uma resposta firme e clara, útil tanto contra
o ceticismo externo quanto contra interpretações desequilibradas dentro da
própria Igreja.
Para ele, a Escritura é
uma unidade inspirada pelo mesmo Espírito. Por isso, escreveu também Contra Fausto, combatendo
o maniqueísmo e defendendo a continuidade entre Antigo e Novo Testamento.
Sua fidelidade à Igreja
é um marco: “Eu não daria crédito ao Evangelho se não fosse a autoridade da
Igreja Católica” 9. Essa convicção molda sua leitura bíblica
e fundamenta sua contribuição à exegese católica.
A teologia e a
espiritualidade católicas foram profundamente marcadas por ele. Ler a Bíblia
com Santo Agostinho é aprender a amar a Palavra na escola da Igreja, com
fidelidade, inteligência e caridade.
Princípios da leitura bíblica segundo Santo Agostinho
As ideias de Santo
Agostinho sobre a Bíblia não foram apenas reflexões teóricas, mas diretrizes
práticas que moldaram a tradição interpretativa da Igreja. A seguir,
apresentamos os principais princípios que orientam sua leitura espiritual e
teológica das Escrituras.
Coisas e
sinais: como Santo Agostinho via os símbolos da Bíblia
Para Santo Agostinho, a
Sagrada Escritura está cheia de símbolos. Esses símbolos — ou “signa” — apontam
para realidades mais profundas que os olhos não veem, mas o coração iluminado
pela fé pode reconhecer.
Em seu tratado A Doutrina Cristã, ele
distingue entre “res” (coisas) e “signa” (sinais). As coisas são realidades em
si mesmas. Já os sinais são realidades que remetem a outras, espirituais ou
invisíveis.
Essa distinção é
fundamental para ler a Bíblia com sabedoria. Muitas passagens, especialmente no
Antigo Testamento, têm sentido mais profundo do que o literal. São como janelas
para os mistérios de Deus.
Agostinho ensina que
compreender esses sinais exige humildade, oração e familiaridade com a vida da
Igreja. Sem isso, corre-se o risco de tomar os símbolos ao pé da letra ou de
interpretá-los segundo critérios meramente humanos.
Para ele, o verdadeiro
leitor da Bíblia deve aprender a “elevar-se das realidades visíveis às
invisíveis”. Isso vale tanto para os personagens quanto para os ritos, gestos e
narrativas da história sagrada.
Ler a Bíblia com Santo
Agostinho, portanto, é aprender a ver além da letra — para encontrar, nos
sinais, a verdade que salva.
Fruição, uso e
caridade: princípios para ler a Bíblia com Santo Agostinho
Entre os princípios mais
profundos do método agostiniano está a distinção entre fruir e usar. Segundo
ele, algumas coisas são feitas para serem usadas como meios; outras, para serem
desfrutadas como fins.
Deus é o único que deve
ser fruído — ou seja, amado por si mesmo. Tudo o mais deve ser usado em vista
d’Ele, inclusive a Sagrada Escritura.
A interpretação bíblica,
portanto, não é um fim em si. Seu objetivo último é levar o leitor à caridade, ao amor verdadeiro por
Deus e pelo próximo.
Agostinho adverte: “A
ciência incha, mas a caridade edifica” 6. O conhecimento bíblico que não conduz à
humildade e ao amor pode ser vaidade espiritual.
Ele também afirma que
nem todos os preceitos das Escrituras têm o mesmo destinatário. “Alguns
preceitos são dados a todos em comum, enquanto outros são dirigidos a
diferentes estados de vida” 10.
Por isso, é preciso
discernimento espiritual para aplicar corretamente o ensinamento bíblico à vida
concreta, sem rigorismos nem permissividades.
Ler a Bíblia com Santo
Agostinho é, portanto, um caminho de caridade. Não basta entender a letra — é
preciso permitir que a Palavra transforme o coração e gere frutos de amor.
A regra da fé:
quando um texto bíblico deve ser lido figuradamente
Santo Agostinho ensina
que nem toda passagem bíblica deve ser interpretada literalmente. Quando a
leitura literal de um texto parece contradizer a fé ou a moral cristã, é
necessário buscar seu sentido espiritual.
Esse princípio é
conhecido como “regra
da fé”. Ele afirma: “Se
da leitura literal resultar algo que ofende a reta fé ou os costumes, deve-se
entender de modo figurado” 11.
Por exemplo, os salmos
imprecatórios, em que se invoca o castigo divino sobre os inimigos, não podem
ser tomados ao pé da letra como desejo de vingança. Eles expressam, na
linguagem da época, a luta espiritual contra o pecado e o mal.
Agostinho destaca que o
amor aos inimigos, ensinado por Cristo, é um critério hermenêutico central. A
Bíblia deve sempre ser lida à luz da caridade e da unidade da fé.
Essa regra impede interpretações
distorcidas que poderiam justificar ódio, violência ou erros doutrinais. Ela
protege a leitura bíblica de desvios e mantém sua fidelidade ao coração do
Evangelho.
Assim, a “regra da fé” é
um verdadeiro farol na interpretação católica das Escrituras. Ela nos ajuda a
enxergar além da letra, com os olhos do Espírito e em comunhão com a Igreja.
Para se aprofundar nesse
tópico, leia também o artigo sobre as diferenças
entre o sentido literal e figurado na Bíblia.
Santo
Agostinho e os sentidos da Bíblia
Santo Agostinho
reconhecia que a Sagrada Escritura possui diversos sentidos. Ele lia a Bíblia
não apenas em sua dimensão literal, mas também espiritual, discernindo nela
profundezas que alimentam a fé e a caridade.
Inspirado
pela tradição patrística, Agostinho identificava três sentidos espirituais além
do literal: o alegórico,
que aponta para Cristo e a Igreja; o moral, que orienta a vida cristã; e
o anagógico,
que conduz às realidades eternas. Esses sentidos seriam mais tarde assumidos e
sistematizados pelo Catecismo da Igreja Católica 7.
Essa riqueza
interpretativa não era um convite ao subjetivismo, mas à meditação profunda da
Palavra, sempre iluminada pela fé da Igreja. Agostinho ensinava que os
múltiplos sentidos da Bíblia não se contradizem, pois têm um único fim:
conduzir à verdade plena em Cristo.
Seu método exegético
continua sendo uma referência segura. Ele nos convida a ler com atenção,
humildade e oração, buscando na letra o espírito que vivifica 12, e permitindo que a Palavra penetre a alma
como “espada de dois gumes” 13.
Por que ler a Bíblia com Santo Agostinho hoje
Ler a Bíblia com Santo
Agostinho é mergulhar no coração da fé católica. Sua vida transformada pela
Palavra e sua sabedoria na interpretação continuam a iluminar os caminhos da
Igreja.
Agostinho nos ensina que
a Escritura não é apenas texto, mas encontro com Deus vivo. Com ele, aprendemos
a ler com fé, a interpretar com caridade e a viver com coerência.
Que seu exemplo nos
inspire a amar a Palavra, acolher a Igreja e crescer em santidade.
Livro “A Doutrina Cristã”
O livro “A Doutrina
Cristã”, de Santo Agostinho, oferece a sabedoria de um Doutor da Igreja para
ajudar você a entender,
viver e ensinar a Palavra de Deus com profundidade. Em
suas 288 páginas,
a obra apresenta ensinamentos sobre a disposição interior adequada para a
leitura das Sagradas Escrituras, revela sete regras fundamentais para uma
interpretação correta e fiel à Igreja e explica como compreender os símbolos e
metáforas bíblicas sem cair em erros. Além disso, conduz o leitor a alcançar o
sentido mais profundo das Escrituras, indo além da leitura literal, e ensina
como transmitir a fé católica com clareza,
fidelidade e caridade.
Mais do que um livro,
esta obra é um guia seguro para quem deseja se aprofundar no verdadeiro sentido
da Palavra, seguindo o ensinamento perene da Igreja.
Referências
- Dei Verbum, 21[↩]
- Confissões, Livro III, cap. 4[↩]
- Confissões, Livro III, cap. 12, p. 72[↩]
- Confissões, Livro VIII, cap. 11–12, p.
203[↩]
- Livro Quarto, cap. 1, p. 384[↩]
- 1Cor 13,2[↩][↩]
- §117[↩][↩]
- Livro III, cap. 17, p. 382[↩]
- De Moribus Ecclesiae[↩]
- A Doutrina Cristã, Livro III, cap. 17, p. 382[↩]
- A Doutrina Cristã, Livro III, cap. 33, p. 383[↩]
- cf. 2Cor 3,6[↩]
- Hb 4,12[↩]
https://bibliotecacatolica.com.br/blog/formacao/santo-agostinho-e-a-biblia/
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