IX-REFLEXÃO DOMINICAL III:
LIVRE PARA SEGUIR A CRISTO (Mc 10,
17-30)
A Palavra de Deus deve necessariamente ser
reescrita, reinterpretada e atualizada hoje, em nossa história e nas novas
realidades de nossas vidas. Senão, recusamos a Deus o direito à Palavra, que
Ele só pode exercer através de nós, os crentes.
A reflexão é de Raymond Gravel, padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Réflexions de Raymond
Gravel, comentando as leituras do 28° Domingo do Tempo Comum - ciclo B (14 de outubro de 2012). A tradução
é de Vanise Dresch.
Eis o texto.
Referências bíblicas:
1ª leitura: Sb 7,7-11
2ª leitura: Hb 4,12-13
Evangelho: Mc 10,17-30
Quanto mais nos engajamos na busca de
Cristo, mais se particularizam as exigências do Reino: há duas semanas, era
acolher o outro, o outro diferente; na semana passada, era a não exclusão do
outro, quem quer que ele fosse; e nesta semana, é o nosso modo de ser para o
outro, para seguir Cristo. Para ser, é preciso passar do ter e do fazer ao ser.
Que isso significa?
Durante muito tempo e ainda hoje, são
numerosos aqueles e aquelas que dizem que a primeira qualidade de um crente, de
um cristão, se verifica pelo que ele faz ou tem; é o que chamamos de atitude
farisaica, ou seja, são aquelas e aqueles que possuem as virtudes e as
praticam: o jejum, a oração, a esmola caracterizam muitas vezes esses bons
cristãos. Por outro lado, o que o evangelho quer não é ter ou fazer, e sim ser,
mas isso exige muito. O exegeta francês Jean Debruynne escreve:
“Um homem corre para Jesus e se põe de joelhos diante dele. Manifestamente,
este homem quer agir bem ou mesmo fazer o que houver de melhor, mas ele está,
justamente, no fazer. Fazer é ainda ter, ter feito, ter realizado, ter
conseguido, ter resultados... enquanto o evangelho é ser. O evangelho não é
para fazer. É para viver. Não se trata de colecionar os resultados, mas, ao
contrário, de desapossar-se de todas as bagagens que carregamos conosco para
sermos livres para seguir Jesus.”
Eis o próprio sentido daquele
episódio do Evangelho que dizemos do jovem rapaz rico. Este Evangelho de Marcos
possui três partes: 1. O encontro com o homem rico (vv. 17-22); 2. A conversa
com os discípulos (vv. 23-27); e 3. A recompensa (vv. 28-30).
1. O encontro com o homem rico.
A história contada por Marcos quer
levar o leitor cristão a ir além da Lei, a qual é simplesmente traduzida pelo
fazer ou não fazer. Jesus disse: “Você conhece os mandamentos: não
mate; não cometa adultério; não roube; não levante falso testemunho; não
engane; honre seu pai e sua mãe” (Mc 10,19). Em relação à Lei com suas
permissões e, sobretudo, suas proibições, o homem afirmou: “Mestre,
desde jovem tenho observado todas essas coisas” (Mc 10,20). Em outras
palavras, ele seguiu a Lei com todo o rigor, fez tudo o que um bom cristão deve
fazer. Tanto é verdade que o evangelista acrescentou: “Jesus olhou para
ele com amor” (Mc 10, 21 a).
Mas preste atenção! O amor é
perigoso, exigente, contagioso, ele transforma, libera, interpela, é
ilimitado: “Falta só uma coisa para você fazer: vá, venda tudo, dê o
dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro no céu. Depois venha e siga-me” (Mc
10, 21 b). Mas espere um instante: para ser cristão, é proibido possuir bens,
ter talentos, deter poder, ser bem-sucedido, possuir diplomas e competências?
Eu penso que não! O evangelho, afinal, não louva a pobreza; não faz dela uma
virtude. O que São Marcos diz, por outro lado, é que é preciso ser livre para
seguir Cristo. Podemos muito bem ser ricos, cheios de talentos, ter adquirido
muitos diplomas e conhecimentos, exercer a autoridade em nossas funções. No
entanto, precisamos ser capazes de nos liberar para amar verdadeiramente. Um
homem rico e famoso afirmou: “Sou rico de bens dos quais sei prescindir”.
Todavia, a riqueza pode se tornar um
obstáculo para amar, um impedimento para viver o evangelho e seguir Cristo. Não
é à toa que o evangelista afirma que, diante do convite de Cristo, aquele homem
virtuoso, bom crente, praticante da Lei ao pé da letra, “ficou abatido
e foi embora cheio de tristeza, porque ele tinha muitas propriedades” (Mc
10, 22). Ele era incapaz de se liberar para amar, portanto, incapaz de seguir
Cristo. Seguiu e vai continuar a seguir a Lei, mas é incapaz de seguir Cristo.
1. A conversa com os discípulos.
Essa história do homem rico dá a
oportunidade ao Cristo do Evangelho de Marcos de dispensar um ensinamento sobre
ser cristão e a exigência que disso decorre. Não é fácil ser cristão, diz o
Evangelho, principalmente quando alguém possui muitas riquezas: o talento, o
poder, o dinheiro, a competência, o conhecimento, etc. “Como é difícil
para os ricos entrar no Reino de Deus!” (Mc 10, 23). Mas por quê?
Simplesmente porque ser cristão exige o desapossamento de nós mesmos, a
renúncia a nós mesmos. Quanto mais possuímos, mais difícil se torna nos
separarmos do que temos. E é clara a imagem utilizada pelo evangelista para
ilustrar tal dificuldade: “É mais fácil passar um camelo pelo buraco de
uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!” (Mc, 10, 25).
Marcos fez alusão à portinha que se encontrava nos edifícios. Uma portinha pela
qual as pessoas passavam se curvando, mas os animais não conseguiam passar por
ela. No entanto, não era impossível fazer com que um animal passasse por essa
porta; bastava desvencilhá-lo de sua carga, desatrelá-lo e fazê-lo dobrar as
patas. No fundo, a mensagem de Marcos consiste em afirmar que a mesma coisa
vale para os ricos: eles devem desvencilhar-se de seus bens, libertar-se de
suas riquezas, desapossar-se de si mesmos, dobrar as pernas, para viver o
evangelho e seguir Cristo: “Para os homens isso é impossível, mas não
para Deus. Para Deus tudo é possível” (Mc 10, 27).
2. A recompensa.
A observação de Pedro visou todos os
cristãos do século I e aqueles de hoje que tiveram e que ainda têm de renunciar
a muitas coisas para seguir Cristo. O evangelista explicou que tais renúncias
são feitas por causa de Jesus, mas também por causa da Boa Notícia, e a Boa
Notícia diz respeito a todos os cristãos de todos os tempos (Mc 10, 29)*.
Infelizmente, a tradução francesa não faz jus ao texto grego. Na enumeração das
renúncias, “ou” significa que não precisamos sacrificar ou abandonar
tudo: «Une maison ou des frères ou des sœurs ou une mère ou un père ou
des enfants ou une terre» (Mc 10,29)**, enquanto as recompensas são
enumeradas no plural pela conjunção aditiva e, para significar a multiplicação
das recompensas aqui e agora: «Des maisons et des frères et des sœurs
et des mères et des enfants et des terres, avec des persécutions (referindo-se
aos cristãos de Roma do fim do século I aos quais Marcos se dirige), et,
dans le monde à venir, la vie éternelle» (Mc 10,30).
Em suma, abandona-se uma coisa e
recebem-se muitas coisas, pois cresce a família cristã. Também, como Marcos é
realista, ele sabe que a perseguição faz parte da condição de ser cristão em
seu tempo.
Para concluir, a exigência de ser
cristão pode ser facilitada pela Sabedoria que a primeira leitura de hoje
personifica em Deus mesmo. Preferi-la ao ouro, à prata, à beleza e à saúde nos
permite a superação de nós mesmos e nos guia pelo caminho da fé. Esta sabedoria
é mais que a luz, porque o brilho dela nunca se apaga (Sb 7,10). E se a Palavra
de Deus está viva, como diz a carta aos Hebreus, nossa segunda leitura de hoje,
ela não pode estar encerrada ou petrificada num livro, por mais belo que este
seja. A Palavra de Deus deve necessariamente ser reescrita, reinterpretada e
atualizada hoje, em nossa história e nas novas realidades de nossas vidas.
Senão, recusamos a Deus o direito à Palavra, que Ele só pode exercer através de
nós, os crentes.
O exegeta francês Alain
Marchadour afirmou: “A Palavra de Deus não é uma escritura morta,
petrificada para sempre no passado em que foi pronunciada. A Palavra de Deus
antecede cada um de nós e vem ao nosso encontro para estabelecer um diálogo,
despertar o desejo, conduzir ao caminho da conversão... Esta Palavra revela
nossas fragilidades, mas, ao mesmo tempo, traz com ela luz e força para nos
fazer seguir adiante. Denuncia também as forças que pesam sobre nós,
contestando-as e nos incentivando à conversão”.
* N.T.: Na tradução para o português,
as renúncias são separadas por vírgulas, cf. Bíblia Sagrada. Edição Pastoral.
Editora Paulus. “...casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos, campo” (MC
10, 29)
** N.T.: Na versão em português: “...casas, irmãos, irmãs, mães, filhos
e campos, junto com perseguições. E, no mundo futuro, vai receber a vida
eterna.” (Mc 10,30) cf. Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. Editora
Paulus.
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