XIX-REFLEXÕES
DE UM PAI, AVÔ E PSICÓLOGO...06 de Outubro de 2024
Lindolivo Soares
Moura(*)
Oi minha linda, como
vai você? Feliz, alegre e de bem com a vida como deve ser? Digo
"deve" porque todos nós, ao menos em princípio, precisamos acreditar
que para isso fomos criados; caso contrário a vida não parece fazer nenhum
sentido, concorda comigo? É verdade que por vezes, ou mesmo em determinadas
fases de nossa vida, nem sempre as coisas acontecem como esperamos ou
imaginamos que deveria ser; mas isso não deve ser razão suficiente para que o
princípio seja invertido. Regra é regra, exceção é exceção, princípio é
princípio. E a experiência tem mostrado que por mais provações, sofrimentos e
desafios que a vida nos imponha, ela é e será sempre um verdadeiro show, um
maravilhoso espetáculo. Quando o instinto de morte prevalece sobre o instinto
de vida, é sinal de que há algo de errado "roubando" a cena; nesse
caso é preciso fazer terapia. Claro que uma determinada etapa da vida pode ser
mais delicada e complexa que as outras; a adolescência, por exemplo, pode
trazer incômodos e desconfortos bastante específicos, como veremos daqui a pouco,
para com os quais é preciso serenidade e sabedoria para lidar. Já ouviu falar
da "Guernica" de Picasso, famoso pintor espanhol? Assim como a
"Monalisa", do italiano Leonardo da Vinci, é uma obra realmente
diferenciada. Nela as partes do corpo - pernas, braços, tronco e cabeça - estão
todas totalmente fora de lugar. Lembrei-me dela porque não consigo evitar a
comparação: grande parte dos adolescentes - provavelmente a maioria - quando se
olham no espelho se veem como na Guernica: as partes nunca parecem estar no
lugar em que deveriam, e quando estão parecem não ter nunca o tamanho e as
dimensões que deveriam ter. Mesmo não sendo exclusividade da adolescência essa
percepção distorcida - chamada "dismorfofobia" ou Transtorno
Dismórfico Corporal - costuma produzir ansiedade e frustração excessivas,
sobretudo nessa fase. Por isso a "dica" de hoje reflete um pouco
sobre isso, com um tema salpicado de humor e irreverência: ESPELHO, ESPELHO
MEU: EXISTE ALGUÉM MAIS DESCONJUNTADA E DESENGONÇADA DO QUE EU? Preparada?
Vamos lá, então.
Um dia qualquer de
sua adolescência - que os norte-americanos chamam de "teenager" em
virtude da terminação "teen" dos números treze a dezenove em inglês -
você acorda exausta e encrespada em razão da festa de quinze anos de sua amiga,
que varou madrugada adentro na noite anterior. Mal se olha no espelho e quase
cai desmaiada: diferentes mechas de uma cabeleira rebelde e toda esvoaçada
apontam cada uma para um ponto cardeal; seu nariz simplesmente parece ter
decidido crescer sem fazer consulta alguma ao restante do corpo, tal como deve
ter acontecido com Pinóquio; suas orelhas mais parecem os orelhões do
elefantinho Dumbo se preparando para alçar voo; seus braços e pernas, de tão
desajeitados, fazem com que você se sinta um boneco de pano pedaço por pedaço
costurada; e se uma espinhazinha que só você consegue enxergar, começa a dar
sinal de que pode aumentar, pronto: o quadro fica completo! Você passa o dia
inteiro calada e trancafiada no quarto dando mil desculpas para não ter que
abrir a porta. No dia seguinte sua única vontade é permanecer debaixo das
cobertas e só "dar as caras" já no final da noite, hora de voltar
para o quarto e cair novamente na cama. Repetidas e insistentes batidas na
porta, entretanto, não deixam margem para dúvidas: faltar à aula sem estar
doente, nem pensar! E lá vai você reclamando e resmungando tomar seu banho,
passar pelo menos mais meia hora diante do espelho se contemplando, e
finalmente se aprontar. No café não há quem não perceba alguma coisa estranha
pairando no ar: você responde monossilabicamente a tudo que lhe é perguntado,
seu humor mais parece uma montanha russa de tanto ir de cima a baixo, e em dois
ou três minutos lá está você pedindo permissão para retornar ao quarto com a
esfarrapada desculpa de que já está atrasada. "Eita adolescência!",
repetem silenciosamente de si para si mesmos os que já passaram por semelhante
experiência; "eita aborrecência!", comentam baixinho os mais
engraçadinhos da casa. O drama não para por aí; na escola a história continua:
sequer tocou o sinal para a entrada e você já se encontra dentro da sala a fim
de escolher criteriosamente seu lugar: a última carteira; bem lá no fundo, no
cantinho, na esperança de que ninguém venha se sentar perto de você e menos
ainda insistir em conversar. Na primeira oportunidade você procura deixar claro
para Deus e todo mundo: "hoje estou cansada, professor, não dormi bem;
qualquer pergunta, faça-a por favor aos demais alunos da sala". Isso se
repete no dia seguinte, e no outro, e no outro... Onde quer que você se
encontre - menos no seu quarto, evidentemente - esse é sempre o último lugar
onde você gostaria de estar. Desconfortável e confusa você busca ajuda do
espelho, esperando alguma frase "de efeito" que de repente venha a
elevar o seu astral. O espelho porém não vê nada de errado com você, e se algo
vê, considera ser esse algo tão insignificante que sequer vale a pena comentar.
O que na verdade está acontecendo é o seguinte: você vê e percebe a imagem no
espelho com as mesmissímas emoções e os mesmíssimos sentimentos negativos com
que vê e percebe a si mesma, e por isso acaba concluindo que tampouco o espelho
compreende você. Ou seja: no fundo você apenas "monologa" consigo
mesma, tendo porém que se mirar no espelho porque essa é a única forma de poder
ver o que, sem a ajuda dele, de nenhuma outra forma você conseguiria enxergar.
A imagem do espelho sempre "vê" e "percebe" você exatamente
como você mesma se vê e se percebe. Por isso não perca seu precioso tempo
culpando e recriminando o espelho por ele ser um chato e não conseguir
compreender você: somente sua própria mudança de percepção a respeito de si
mesma pode mudar a percepção do espelho. E se a imagem do espelho não se
mostrar sua amiga, desista: com certeza, na sua percepção, ninguém mais se
mostrará.
Falando agora um
pouco mais científica e psicologicamente,
minha linda: "dismorfofobia", essa espécie de palavrão tão
pouco conhecida, é uma condição psicológica em que a pessoa acaba tendo uma
preocupação obsessiva com defeitos ou imperfeições em sua aparência, geralmente
mínimos ou simplesmente inexistentes. Quem sofre desse transtorno acaba se
enxergando de forma alterada, distorcida, acreditando que aspectos específicos
de sua aparência - ou em certos casos, o corpo como um todo - são extremamente
feios ou anormais, o que pode acabar acarretando muita dor emocional e um
sofrimento psíquico insuportável. Um quadro desse tipo, por sua vez, tende a
facilitar a adoção de comportamentos obsessivos- compulsivos, tais como
verificar constantemente a própria aparência no espelho, tentar a todo instante
esconder os supostos "defeitos" seja lá de que maneira for, ou até
mesmo pressionar pais e cuidadores no sentido de realizar cirurgias
plásticas absolutamente desnecessárias
numa fase ainda tão precoce. Exatamente por isso existe certa precaução e certa
reserva dos psicólogos e terapeutas no sentido de evitar diagnosticar esse
quadro como "transtorno" - "Transtorno Dismórfico Corporal"
- quando ele ocorre na adolescência,
deixando para fazê-lo apenas mais tarde caso o problema evolua para a
fase adulta. O fato é que, com status de "transtorno" ou não, o que
está em jogo nesse caso é a bendita ansiedade, a "doença número um do
século XXI", que costuma afetar e muito a autoestima e a qualidade de vida
das pessoas, sobretudo na fase da adolescência. O grande segredo de tudo está
em compreender que essa fase é temporária e passageira, semelhante a uma
exposição de obras de arte que depois de certo tempo precisa ser desmontada e
ceder seu lugar a uma outra com novos e diferentes atrativos. No futuro
provavelmente você vai rir - ou pelo menos fingir que foi divertido - de tudo
isso. Portanto não leve a fase "Guernica" tão a sério; ela está aí
para nos lembrar que ninguém é perfeito, e que por vezes até os momentos
aparentemente mais tortuosos e desconcertantes da vida podem virar arte. Quando
não, pelo menos uma boa história para compartilhar, rir e gargalhar mais tarde
com nossos filhos e netos - como hoje estou fazendo com você - quando também eles estiverem passando pela
mesma fase e cruzando essa mesma "ponte" chamada
"adolescência". Um beijo nesse coração de ouro; no seu, da Bia, do
Ben, do Fran e do Alê. AMO MUITO, DE
ALMA E CORAÇÃO, TODOS E CADA UM DE VOCÊS!
(*)
Lindolivo Soares Moura é Psicólogo e Professor Universitário no Consultório de
Psicologia- Universidade Federal do Espírito Santo- Vila Velha, Espírito
Santo, Brasil.
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