8- REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA( * )
ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE: O VÍNCULO E AMOR CONJUGAIS RESSIGNIFICADOS À LUZ DA ORAÇÃO DE
SÃO FRANCISCO" [Parte II]
"Ó Mestre, fazei-me
instrumento da vossa paz!
Onde houver ódio, que eu
leve o amor!
[Atribuída a São Francisco de Assis]
Obs.: esta segunda parte dá sequência e complementa a primeira, de mesmo título.
Ó
MESTRE, FAZEI-ME INSTRUMENTO DA VOSSA PAZ!
A paz é o alicerce e o
fundamento de tudo, bem como de todo e qualquer tipo de expressão do amor
humano; ou ao menos deveria ser. Não é a tão almejada e jamais alcançada
felicidade que ocupa esse posto, como geralmente se pensa. A literatura é farta
quando se trata de indicar caminhos e até atalhos para se atingir a felicidade;
torna-se bem mais modesta - e bem menos procurada, diga-se de passagem - quando
se trata de apontar direções seguras para se alcançar a paz. Contrariamente ao
que muitos supõem, felicidade e paz não podem ser consideradas sinônimos ou
equivalentes; não faria sentido. A paz pode conviver pacificamente, lado a
lado, com a perda, a dor e o sofrimento; a felicidade, dificilmente. Observe
que a Oração de Francisco, antes mesmo de qualquer outra invocação, é precedida
por esta enfática súplica: "Senhor, fazei-me instrumento de vossa
paz!". A petição é clara: instrumento, não da paz própria, não da paz que
já se possui, não da paz cujo instrumento de propagação é a própria fonte. Há
uma consciência clara e indubitável de que a paz, tal como o mundo a concebe e
a propõe, é insuficiente, falaciosa e, com demasiada frequência, enganosa;
pouco ou quase nada tem de terapêutico, balsâmico e apaziguador.
“Deixo-vos a paz, a minha
paz vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração,
nem se atemorize”. Observe que o Mestre dos mestres distingue com inequívoca
clareza a paz divina - que também pode ser compreendida como paz interior,
profunda e duradoura, mas da qual não necessariamente se é a fonte - da paz
meramente circunstancial ou exterior oferecida pelo mundo. A paz que norteia
acordos, tratados, promessas e cartas de boas intenções está longe de ser a paz
que nasce da vontade reta e bem-intencionada, do desejo autêntico e sincero, e
de um coração manso, pacífico e pacificador. Bem ao contrário - como nesses
últimos tempos nos tem sido permitido constatar - é a paz imposta pelo medo, pela
violência, pela tensão reinante e a ameaça constante.
Muitos casamentos,
infelizmente, são mantidos - princípio, meio e fim - por essa paz ilusória, que
não passa de caricatura e simulacro da paz autêntica e verdadeira. Não podemos
ignorar o fato de que grande número de relacionamentos também se encontram
estruturados com base em promessas - "eu te prometo ser fiel..." -
contratos - o Direito Matrimonial categoriza o vínculo conjugal como um mero
contrato, nada mais - e cartas de boas intenções - "...amando-te e
respeitando-te por todos os dias da minha vida". Não admira que o
cotidiano de tais matrimônios não ultrapasse a esfera de uma paz negociada -
termo que, por si só, já sugere conflito e divergência, e não alinhamento e
convergência de aspirações - continuamente mantida sob tensão. Quando não, e na
melhor das hipóteses, o que se tem está longe de ser uma paz construída,
edificada e alicerçada no exercício da vontade sincera, do respeito mútuo e do
cuidado compartilhado. A graça, de uma forma ou de outra sempre presente,
reconhece, eleva e plenifica o esforço humano; jamais o nega, suprime ou
ignora, como se fosse algo insignificante. Sete pães e dois peixes podem ter
parecido irrelevantes aos olhos dos discípulos, mas não aos do Mestre, que
sabia enxergar com olhos diferentes. O fato é que a paz reinante em muitos
casamentos não passa de uma paz de cemitério, de vivos-mortos, de almas
apequenadas, em conflito, que mal conseguem aguardar o fim do expediente
esperando ser libertadas.
Se observarmos com atenção -
não a vida dos outros, mas a nossa própria - veremos que muitos matrimônios,
tão logo têm início, vão rapidamente se transformando em um vicioso e
interminável círculo de brigas e tréguas, tréguas e brigas que se alternam o
tempo todo. Entra dia sai dia, entra noite sai noite, e assim por semanas,
meses e anos, com o "clima de guerra" cada vez mais se agravando. Até
que finalmente - e como poderia ser diferente? - o relacionamento acaba se
transformando num verdadeiro inferno - deixo claro que não estou evocando
nenhum demônio. Que casamento algum chegue a ser um céu, paraíso ou algo
equivalente, tudo bem; é perfeitamente compreensível. De seres humanos não se
pode e nem se deve esperar tanto. Mas tampouco faz sentido se resignar a um
inferno constante e interminável já na vida presente. "Ruim com ele - ou
com ela, naturalmente - pior sem ele - ou sem ela, novamente". Nunca se
ouviu falar que exista um inferno nem melhor nem pior que outro. Inferno é
sempre inferno, e ponto. Pelo sim e pelo não, Abraham Lincoln - impossível
saber se falava sério ou não - preferiu se manter equidistante desses dois
extremos: "matrimônio não é céu nem inferno; apenas um purgatório",
deixou ele escrito. Sua fiel companheira, Mary T. Lincoln, compartilhava muitos
de seus pensamentos e ideais. Isso não quer dizer que ela necessariamente
concordasse com essa percepção.
Há porém algo que se torna
imperativo reconhecer: se existe uma coisa que o maligno sabe fazer com
propriedade - com direito a registro de patente - é infiltrar-se nas brechas
deixadas pela bondade, travestir-se de anjo e, a partir daí, se sentir à
vontade para aprontar suas maldades. Os exegetas me corrigirão, esclarecendo
que "nem tanto". Concordo plenamente. No presente caso, essa brecha
se constitui no seguinte: afirmar que a paz verdadeira - aquela que realmente
traz equilíbrio, clareza mental e serenidade ao espírito - é exclusivamente
aquela que vem do alto, divinamente concedida, pode nos levar perigosamente a
concluir que sua única ou principal via de acesso seja a prece em forma de
súplica. Imagino que Francisco não a tenha concebido nesses termos quando, no
auge de sua entrega, implorou que o Mestre o fizesse instrumento de propagação
de sua paz. Podemos até supor que determinados dons, graças e carismas - como,
de resto, a própria paz - nos sejam concedidos por pura gratuidade e
benevolência. Mas, do ponto de vista da sensatez e da prudência - a psicologia
diria “da otimização da terapêutica” - parece muito mais sábio e precavido
admitir que, independentemente de qual seja a fonte, a conquista da paz passe
necessariamente pela via da vontade operante, da disciplina constante e do
esforço contínuo. Na ausência da certeza, claro, nada há de errado com a
esperança, como ensina Carl Simonton. Mas a esperança que faz a diferença não é
exatamente aquela que nasce do verbo "esperar", e sim aquela que
brota de “esperançar”. “Vem, vamos embora, que esperar não é saber. Quem sabe,
faz a hora, não espera acontecer.” Lembra-se desse convite? Compreender isso é
reencontrar o eixo que sustenta e confere sentido à vida, permitindo que a luz
reoriente o caminho e dissipe a sombra. A sedutora máxima de que "quem
espera sempre alcança" não passa de chavão vazio, sem sentido, que embora
pareça profundo, no presente caso se mostra, além de inverdadeiro, totalmente
inútil. Quem anseia profundamente pela paz - tal como a corsa sedenta suspira
por águas correntes, como ensinam as Escrituras - deve estar disposto a criar
as condições para que ela germine, cresça, e dê frutos que permaneçam. A
diferença entre inferno e paraíso na vida matrimonial - resguardados os demais
requisitos, naturalmente - talvez esteja justamente aí: entre um tipo de paz
que não ultrapassa o limite da súplica, e outro que vai além - transformando a
súplica em busca constante, esforço persistente e construção duradoura.
(* ) Possui graduação em teologia pelo
Instituto teológico pio XI (1983), graduação em Psicologia pela Universidade
Federal do Espírito Santo (1997), graduação em Filosofia pela Faculdade Salesiana
de Filosofia, Ciências e Letras (1986) e mestrado em Filosofia pela Pontificia
Universidade Gregoriana, Roma - Itália(1988) . Foi por 11 anos consecutivos
professor de filosofia jurídica e psicologia Jurídica do Centro Universitário
de Vila Velha, ES. Durante esses 11 anos foi Coordenador Pedagógico por 05 anos
e de Ensino por 1 ano e meio do mesmo Curso de Direito. Atualmente é terapeuta
de grupo, individual, vocacional, Consultório Clínico Psicológico particular.
Formou-se recentemente em Psicodrama (02 anos) pelo Instituto Pegasus de
Vitória, ES. Atualmente, cursa a pós graduação TCC - Terapia Cognitivo
Comportamental..
https://www.escavador.com/sobre/3708588/lindolivo-soares-moura
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