VII-REFLEXÃO II
1º de janeiro – MARIA, MÃE DE
DEUS
Por Gisele Canário*
Maternidade divina em Maria:
libertação e identidade filial
I. INTRODUÇÃO GERAL
Maria é uma mulher de Nazaré,
um povoado judaico que contava entre duzentos e quatrocentos habitantes na
época de Jesus. Escavações realizadas sob as estruturas cristãs posteriores
revelam prensas para a produção de azeite de oliva e vinho, cisternas, silos e
pedras de moer espalhadas ao redor de covas, indicando uma população rural que
vivia em casas muito precárias. A arqueologia evidencia que a vida dessa
sociedade rural era marcada pela fome e pelo sofrimento. Na época de Jesus,
cerca de 30% dos recém-nascidos morriam, índice que subia para cerca de 50% no
período dos primeiros dez anos de vida. Na faixa etária dos 30 anos, entre 70%
e 75% morriam, especialmente devido à desnutrição e à falta de alimentos,
causadas pelo trabalho pesado e pelas guerras. O empobrecimento do judeu
camponês era decorrente do pagamento de altos impostos, incluindo o imposto
sobre 25% a 30% das colheitas para os romanos, pedágios para a circulação de
mercadorias e trabalho forçado dedicado às tropas e obras públicas. Também havia
impostos do templo, diversos dízimos, ofertas de sacrifícios, imposto pessoal,
estipulado em 1 denário, entre outros. Com toda essa problemática, a quantidade
de pessoas escravizadas aumentava cada vez mais. Era comum testemunhar famílias
sendo vendidas como escravas por causa de dívidas.
Neste domingo, somos convidados
a refletir sobre a autenticidade e a significância da maternidade divina
representada por Maria, a Mãe de Deus. Maria é protagonista do projeto de Jesus
porque acreditou ser possível formar e educar seu filho, que estaria à frente
de um projeto pautado no amor e na justiça. Em sua maternidade reside a conexão
entre o humano e a divindade, que nos conduz à libertação e à nossa identidade
filial em Deus.
A maternidade divina de Maria
deve ser realidade contínua e presente na vida espiritual dos cristãos. Maria é
profetisa por excelência, pois acolhe o Verbo de Deus e vive o plano divino de
ser a Mãe de Jesus. Nesse sentido, não nos cumpre apenas colaborar para que o
Reino de Deus aconteça entre nós; cabe-nos vivê-lo assim como ela,
protagonizando o enfrentamento dos poderes que promovem a destruição da vida,
em todas as suas manifestações.
Esta solenidade revela nossa
identidade de filhos e filhas do amor de Deus. Jesus nos ensinou a chamar Deus
de “Abbá, Pai”. Maria anda conosco e nos apresenta o caminho da relação amorosa
com Deus, que é uma relação de escuta, amor e compaixão. Ela experimentou esse
caminho, pois acreditou no Senhor e viveu em total comunhão com ele. Sua
obediência é ao projeto de justiça, pois é da vontade divina entrar em comunhão
com quem deseja viver e trilhar o projeto de vida em abundância para todos os
seres vivos.
A liturgia deste domingo nos
convida a refletir sobre nossa resposta a esse amor e liberdade oferecidos por
Deus. Assim como Maria acolheu Jesus em sua vida e serviu os necessitados ao
seu redor, somos chamados acolhê-lo de maneira prática e a expressar esse amor
por meio do serviço e da solidariedade aos mais vulneráveis e necessitados da
nossa sociedade.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS]
1.I leitura (Nm 6,22-27)
O relato faz parte do núcleo
presente no Pentateuco que narra eventos ocorridos durante o período do êxodo
dos israelitas do Egito até sua chegada às fronteiras da Terra Prometida. O
capítulo 6, particularmente, trata da lei nazireia, que estabelece um voto
especial de consagração a Deus. O texto em questão faz parte de uma seção que
descreve as instruções dadas por Deus a Moisés para abençoar os filhos de
Israel. Essa bênção é dada aos sacerdotes para ser pronunciada sobre o povo. O
texto é uma bênção composta de três partes: invocação (“O Senhor te abençoe e
te guarde”), petição (“O Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti e tenha
misericórdia de ti”) e conclusão (“O Senhor sobre ti levante o seu rosto e te
dê a paz”). Essa estrutura tripartida enfatiza a completude e a plenitude da
bênção divina. Historicamente, essa bênção era pronunciada pelos sacerdotes
sobre o povo de Israel como parte do serviço religioso no templo.
A essência do ser humano sempre
foi, de alguma forma, buscar a bênção da divindade; pessoas e comunidades
revelam seus anseios mais profundos por vida plena e paz. Dessa forma, ele
busca se relacionar com a vida e com a promoção da vida, e é aí que reside o
caráter sagrado das religiões (cf. Ex 20,24). O problema se dá quando rituais são
perverti- dos e práticas religiosas comunitárias e pessoais se voltam para
projetos individualistas – por exemplo, no pós-exílio, em que muitos rituais
foram utilizados para a legitimação de instituições (Nm 15,32-36), hierarquias
(Nm 17,1-5.25) e coleta de ofertas que não tinham o objetivo de fortalecer
práticas de solidariedade, justiça, defesa e promoção da vida. A bênção e os
rituais nunca devem ser usados como fonte de manipulação e ideologias, pois seu
sentido é trazer vida abençoada para toda a comunidade e para todos os seus
membros (cf. Jo 10,10).
2. II leitura (Gl 4,4-7)
Paulo, em sua carta aos
Gálatas, destaca o momento oportuno da vinda de Jesus, filho de Maria, como
parte do ápice da história da salvação. Essa encarnação do Verbo representa o
clímax do plano divino, pelo qual Deus envia seu Filho para nos libertar da
escravidão do pecado e nos adotar como filhos e filhas. Tal mensagem é crucial
na carta, escrita por volta do ano 49-50 d.C. e dirigida às igrejas da Galácia,
na atual Turquia. O objetivo é corrigir a influência dos judaizantes, que
pressionavam os gentios convertidos ao cristianismo a seguir a Lei judaica.
O trecho em questão está
situado em uma seção em que Paulo argumenta sobre a liberdade em Cristo, em
contraste com a escravidão da Lei. Ele discorre sobre o papel central de Jesus
na história da salvação, enfatizando o momento oportuno de sua vinda e sua
importância para a o resgate do pecado da humanidade, adotada como filhos e
filhas de Deus.
Paulo afirma que a vinda de Jesus ocorreu no “momento oportuno”
(kairós), ressaltando a soberania e providência de Deus na história da
salvação. Ele contrasta a antiga escravidão da humanidade sob a Lei com a
liberdade que vem por meio de Jesus, destacando que, por meio da fé nele, os
crentes são adotados como filhos e filhas de Deus e herdeiros de suas
promessas. Essa transição do regime da Lei para o regime da graça em Jesus é
crucial para a compreensão do texto em seu contexto histórico e teológico.
3. Evangelho (Lc 2,16-21)
O Evangelho de Lucas foi
escrito por alguém que não era da Palestina, porque se atrapalha ao falar da
geografia da região. Possivelmente, quem escreveu esse Evangelho foi um grande
admirador de Paulo; talvez um membro de alguma comunidade paulina ou um
prosélito grego – alguém que teve contato com a religião judaica, estudou as
Escrituras e mais tarde se converteu ao Evangelho de Jesus. No fim do século,
as comunidades vi- vem um momento crítico, correndo o risco de abandonar o
projeto de Jesus e assimilar valores propostos pela sociedade greco-romana.
Algumas pessoas caem na descrença e no desânimo e acabam abandonando a
caminhada (Lc 24,13.21). Diante dos desafios de seu tempo, o autor procura
reavivar a memória da prática de Jesus, tendo como objetivo principal “verificar
a solidez dos ensinamentos recebidos” (Lc 1,4). Para isso, ele apresenta quem é
Jesus de Nazaré e o que é preciso fazer para segui-lo. Mais do que informar, o
autor quer reforçar a fé dos seus leitores.
O texto de Lucas 2,16-21 faz
parte do relato do nascimento de Jesus em Belém. Após o nascimento, pastores
vêm adorar o recém-nascido, conforme os anjos lhes anunciaram. O texto menciona
a circuncisão de Jesus e a imposição do nome, conforme a tradição judaica. A
circuncisão e a imposição do nome são práticas que mostram o cumprimento Lei de
Moisés e a inserção de Jesus na tradição religiosa judaica. Isso enfatiza sua
identificação com o povo judeu e sua submissão às práticas religiosas da época.
O texto retrata a humildade do nascimento de Jesus, pois ele nasce em Belém, em
uma manjedoura, e é anunciado primeiramente aos pastores, que eram considerados
pessoas simples e humildes na sociedade da época. Historicamente, o texto
ressalta a importância de Jesus como o Messias esperado pelos judeus e sua identificação
com seu povo por meio da circuncisão. Nessa perspectiva, ao considerar o papel
de Maria nessa realidade, é importante visualizar sua forte presença em todo o
evento. Maria, ao aceitar ser a mãe de Jesus, torna-se também um exemplo de fé
e obediência ao projeto do Deus da vida. Embora o texto de Lucas foque nos
eventos que confirmam a identidade judaica de Jesus, Maria é a figura que
integra essa identidade no contexto familiar e religioso. Sua atitude de
“guardar todas essas coisas no coração” (Lc 2,19) revela uma postura de
profunda meditação e aceitação dos planos de Deus, que se alinham com a
tradição e a fé que sustentavam as comunidades cristãs nas dificuldades do
final do primeiro século. Ao mencionarmos a circuncisão de Jesus, não podemos esquecer
que Maria, como Mãe de Deus, desempenhou um papel essencial em assegurar que
seu filho fosse fiel às tradições de seu povo, preparando-o para cumprir seu
projeto de amor.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
– Maria é símbolo de
resistência e esperança. Viveu numa sociedade onde imperava a opressão, a
exploração e a violência. Como mãe e mulher, protagonizou o projeto do seu
filho, Jesus. Inspirados pela coragem e ousadia de Maria, como podemos resistir
à opressão e trabalhar pela transformação de nossas comunidades?
– A maternidade de Maria
subverte as expectativas sociais e religiosas de seu tempo. O nascimento de
Jesus não em um palácio, mas em uma manjedoura, e a visita dos pastores,
pessoas simples e marginalizadas, questionam as hierarquias de poder e status.
Que ações concretas podemos tomar para subverter as hierarquias injustas em
nossa sociedade e promover verdadeira igualdade?
– Maria não deve ser apenas um
ícone passivo de devoção, mas sobretudo uma figura ativa de transformação
social e espiritual. Sua vida nos chama a uma fé que se traduz em ações
concretas de libertação dos oprimidos. Como podemos, em nossa prática diária,
transformar nossa fé em ações que promovam a libertação das diversas formas de
escravidão moderna, sejam elas econômicas, sociais ou espirituais?
– Jesus nos ensinou a chamar
Deus de “Abbá, Pai”, criando uma comunidade baseada na fraternidade e na
justiça. A maternidade de Maria nos lembra que essa identidade filial exige de
nós um compromisso ativo com a justiça social. Em que aspectos de nossa vida
estamos falhando em viver esse compromisso? O que podemos fazer para alinhar
mais estreitamente nossas ações com a visão do Reino de Deus?
– A aceitação de Maria do
chamado divino e sua vida de serviço nos desafiam a uma resposta profética ao
amor de Deus. Isso significa não apenas acolher passivamente, mas também agir
ativamente para transformar as realidades de desigualdade e injustiça que nos
cercam. Estamos dispostos a arriscar nosso conforto e segurança para agir em
nome dos princípios de justiça e amor exemplificados por Maria?
Gisele Canário*
*é mestra em Teologia,
com ênfase em Exegese Bíblica (Antigo Testamento), pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui graduação em Teologia pelo Instituto São
Paulo de Estudos Superiores. É licenciada em Geografia pela Universidade
Cruzeiro do Sul e assessora no Centro Bíblico Verbo, onde atua, desde 2011, com
a confecção de material para estudos bíblicos, gravação de vídeos, formação em
comunidades eclesiais e cursos bíblicos on-line.
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/1o-de-janeiro-maria-mae-de-deus/
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