XI-
Atualidades
Anunciar o Evangelho ou vender religião?
Por Pe.
Leonardo Lucian Dall’Osto*
*presbítero pertencente ao clero de Caxias
do Sul (RS). Grudado em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Graduado é mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS). Doutorando em Teologia pela Pontifica Università
Gregoriana de Roma.
Eis o artigo:
Jesus enviou seus
discípulos para que anunciassem o Evangelho (Mc 16,15). Anunciar o Evangelho
mais do que ensinar uma doutrina é continuar a obra salvífica de Jesus. O
Mestre veio para comunicar à toda a humanidade a vida divina que brota do
imenso amor de Deus. Veio para que n’Ele tivéssemos vida e vida em abundância
(Jo 10,10). Constituiu seus discípulos em continuadores de sua missão, fazendo
deles pescadores de homens (Lc 5,10), com a missão de retirar seus irmãos do
mar, símbolo escriturístico do mal e da morte.
Portanto, em Jesus a
vida se transforma qualitativamente através da nova relação que Ele estabeleceu
entre Deus e a humanidade, que deve necessariamente transformar também as
relações entre todos os seres humanos. Somente dentro dessa moldura relacional
é que podemos entender o conceito de “salvação”. Salvação nada mais é do que a
comunhão com Deus e com os irmãos, que tem suas raízes aqui na história, mas
que tem uma vocação à eternidade. Essa teia de relações ultrapassa os limites
da história e torna-se perene na eternidade.
Com o passar do tempo, e
de modo muito particular a partir do sincretismo entre Evangelho e pensamento
grego nos primeiros séculos, os conceitos de evangelização e salvação foram
sendo revistos. Evangelizar passou a ser entendido no sentido de
cristianização, ou seja, converter os pagãos à religião cristã e a salvação foi
esvaziada de sua dimensão histórica e tornou-se salvação da “alma”, como
cuidado único da dimensão espiritual do ser humano que sobrevive à morte.
Nisso, por muito tempo, os esforços se concentraram em converter as pessoas à
prática religiosa católica e através desta garantir aos convertidos a
possibilidade de salvarem suas almas.
O Concílio Vaticano II
na constituição pastoral Gaudium et spes, voltou as fontes bíblicas e retornou
à compreensão que é o coração do Evangelho: o cuidado de Jesus com o ser
humano. Para o Concílio é a pessoa que deve ser salva, não apenas sua dimensão
espiritual: “o eixo de nossa exposição será o ser humano na sua unidade e na
sua totalidade, corpo e alma, coração e consciência, espírito e vontade (GS
3)”. O escândalo da fé cristã é que Deus se coloca a serviço do ser humano, se
abaixa para lavar os pés da humanidade (Jo 13,3-15). Se o Mestre lavou os pés
da humanidade, a comunidade cristã não possui outra opção senão imitá-lo.
Passados sessenta anos
desde a conclusão do Concílio, a Igreja parece ter retrocedido nas opções
conciliares. De uma igreja que nos primeiros decênios pós Concílio se despiu
das estruturas e roupagens de poder, passa-se agora a uma igreja que deseja
novamente tudo aquilo do qual abriu mão. Por qual motivo? Talvez porque o
Evangelho atrai pelo fato de comunicar vida, mas é vazio de poder. Enquanto que
a religião como tal exerce poder, controle, domínio de consciências e garante
status. Não apenas se quer retroceder para dentro das sacristias, mas se deseja
uma igreja não sacramental, ou seja, se faz opção por não mais comunicar vida
ao mundo. Interessa salvar as “almas” daqueles que estão dentro.
Esse é o motivo pelo
qual Francisco caminha para um lado, enquanto parte considerável da Igreja
caminha para outro. Francisco é um homem do Concílio, conhece bem suas opções.
Não é um progressista como tantos dizem, mas alguém fiel às intuições
conciliares que outros tentaram (e quase conseguiram) frear. Com clareza se
percebe a distinção entre os discursos, prática e textos de Francisco e o
discurso e propostas pastorais de muitos clérigos. Isso não é acidental, é uma
opção!
Talvez o que mais
visibilize essa tendência ao fechamento e o retorno às lógicas de poder seja o
modo como as redes sociais e as TVs “católicas” apresentam a fé. Pregações que
desconsideram o magistério conciliar e do Papa Francisco; transformação dos símbolos
em amuletos; visões mágicas em relação à oração; superstições baseadas em
supostas visões de Jesus, de Maria e dos santos; práticas devocionais acima do
discipulado de Jesus. Em suma, o Evangelho instrumentalizado como moldura para
um comércio religioso. Vender religião é lucrativo, hipnotizante e eficaz. Por
vezes se falou de prática de exploração em igrejas evangélicas e agora os
católicos correm o risco de cair no mesmo erro que outrora levou Lutero a
protestar.
Há uma decisão a ser
tomada: anunciar o Evangelho ou vender religião? É claro que vender religião e
alimentar as pessoas com devoções sem nenhum extrato evangélico rende muito,
pois garante igrejas e cofres cheios. E diante de enormes estruturas que devem
ser sustentadas a tentação é muito grande. Ao mesmo tempo, cair nessa tentação
significa estabelecer uma pastoral sem profecia alguma, de manutenção,
preocupada excessivamente com a opinião pública e com as aparências
institucionais. É sempre uma decisão. Penso que a resposta certa está em olhar
como agiu Jesus diante da religião e das instituições de sua época e perceber
quais foram suas escolhas.
https://www.vidapastoral.com.br/atualidades/anunciar-o-evangelho-ou-vender-religiao/
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