XIII –SANTO AGOSTIMHO E A MISERICÓRDIA DE DEUS
A Misericórdia, rosto de Deus para Santo Agostinho
Frei
Enrique Eguiarte
A teologia, o pensamento e a vida cotidiana de
santo Agostinho estiveram marcados pela misericórdia. Deste modo o mesmo Bispo
de Hipona nos diz o que é a misericórdia, assinalando com isso não só o sentido
etimológico da palavra, mas também a profunda ressonância bíblica e teológica
que tal palavra deve ter na vida de todo aquele que tem fé:
A misericórdia traz em seu nome outras duas
palavras: ‘miseria’ e ‘cor’ (‘miséria’ e ‘coração’). Fala-se de misericórdia
quando a miseria alheia toca e sacode teu coração. Todas as obras boas que
realizamos nesta vida caem dentro da misericórdia. (s. 358, 1).p
O Pai, o Filho e o Espírito Santo
Deus é o primeiro que exercita a misericórdia.
Uma misericórdia que se manifesta, em primeiro lugar, no ato da encarnação do Filho,
no qual o Cristo, o Bom Samaritano (en. Ps. 125, 15), baixa dos céus para
resgatar ao homem que havia perdido todos seus dons ao ter sido despojado por
Satanás. Cristo é, pois, o primeiro exemplo de misericórdia e é quem revela
como é a misericórdia do Pai (s. 192, 3).
Trata-se de uma misericórdia infinita e
abundante (s. 47, 5), sempre a disposição do homem, que sempre será miserável e
estará absolutamente necessitado dessa misericórdia divina. Por isso santo
Agostinho repete em sua obra que “a misericórdia de Deus se adianta a nós (s.
112A, 6), ou que só nela está posta a esperança humana, dado que o homem por
seus próprios méritos não pode fazer nada: “Nossa esperança está, pois, na
misericórdia de Deus” (s. 179A, 1). De fato esta esperança o leva a fazer sua
própria “profissão de fé” na manifestação desta misericórdia de Deus por meio
de sua graça: “Toda minha esperança está em tua grande misericórdia. Dá o que
mandas e manda o que queiras” (Conf. 10. 40).
A misericórdia de Deus nos é transmitida através
do Espírito Santo, pelo qual o amor de Deus é derramado em nossos corações (Rom
5, 5): Ele é a misericórdia de Deus, “o dom de Deus, a graça de Deus, a
abundancia de sua misericórdia para conosco” (s. 270, 1).
A misericórdia praticada pelo homem
Esta mesma misericórdia de Deus, ao ser a
esperança dos pecadores, deve ser acima de tudo um chamado à conversão, e não
uma desculpa para pecar. Por isso santo Agostinho acentua de maneira paralela a
misericórdia de Deus, junto com sua justiça, dizendo que o tempo presente é
tempo de misericórdia, mas que depois virá o momento do juízo: “Cantaremos ao
Senhor a misericórdia e o juízo; primeiro se envia a misericórdia, depois se
faz o julgamento. A separação ocorrerá no julgamento. Agora, escute-me o que é
bom, e faça-se melhor; escute-me também o mal, e converta-se em bom enquanto é
tempo de arrependimento e antes que seja proferida a sentença”. (s. 250, 2) .
Neste juízo final haverá misericórdia para quem
foi misericordioso, mas não para quem a negou, como no caso do rico néscio da
parábola do pobre Lázaro, caso que é comentado por santo Agostinho como uma
exortação a pratica da misericórdia neste tempo de peregrinação, antes de
chegar o dia do julgamento: Deu-se conta de que lhe era negada a misericórdia
que ele havia negado. Deu-se conta de que é certo que haverá um juízo sem
misericórdia para quem não a teve (s. 41, 4).
As obras de misericórdia
E precisamente a misericórdia de Deus deve ser
um modelo e paradigma para o ser humano, para que ele por sua vez seja
misericordioso com aqueles que o rodeiam. Neste sentido santo Agostinho exorta
às diversas obras de misericórdia, acentuando que a primeira obra de
misericórdia que uma pessoa deve realizar é para com sua própria alma; deve
considerar o destino eterno de seu próprio ser e evitar o pecado para poder
alcançar o reino dos céus. “Praticai a esmola autêntica. Que é a esmola? A
misericórdia. Escuta a Escritura: Compadece-te de tua alma agradando a Deus.
Pratica a esmola: compadece-te de tua alma agradando a Deus. Tua alma
mendiga ante tuas portas; regressa a tuas consciências” (s. 106, 4).
E com todas as demais obras de misericórdia,
santo Agostinho antes de tudo indica a esmola e a ajuda aos pobres, pois esta
encerra uma dupla obra de misericórdia, já que quem dá esmola pessoalmente, por
um lado se compadece do pobre, por outro lado é misericordioso consigo mesmo ao
saber-se limitado e necessitado: “Outra advertência quero vos fazer: sabei que
quem dá pessoalmente algo aos pobres realiza uma dupla obra de misericórdia”
(s. 259, 5).
Santo Agostinho nos exorta a realizar obras de
misericórdia a toda pessoa que nos pede. Não obstante, em situações
particulares ou em doações de certo valor, santo Agostinho é o único Padre da
Igreja que se faz eco, curiosamente, de uma frase da Didaché (1.6): “e a
Escritura diz em outro lugar: Que esmola transpire em tuas mãos até que
encontres o justo a quem deves entregá-la (en. Ps. 146, 17). Embora seja certo
que santo Agostinho crê que esta frase é da Escritura, o fundamental é que nos
exorta a fazer bem o bem, ou seja, a praticar a misericórdia com sapiência e
prudência.
O Agostinho misericordioso
O mesmo santo Agostinho será uma pessoa que em
sua prática pastoral manifestará a misericórdia, tanto pessoalmente, dando aos
pobres o que pode e tem, como por meio de duas instituições episcopais em sua
diocese de Hipona, como foram a matricula pauperum (ep. 20*, 2) e o xenodochium
(s. 356, 10). A primeira era uma lista das pessoas ou famílias mais pobres, às
quais socorria periodicamente com os alimentos e elementos necessários. O
xenodochium era um albergue onde se ajudava os estrangeiros, peregrinos, pobres
e necessitados da diocese de Hipona.
E este exemplo de misericórdia de seu pastor
levou o povo fiel de Hipona a imitar seu comportamento, de modo que em uma
ocasião em que santo Agostinho estava ausente, os leigos reuniram uma boa
quantia de dinheiro para resgatar a mais de 200 pessoas que haviam sido
sequestradas e eram levados para ser vendidos como escravos. O exemplo da
misericórdia de Deus e de Cristo havia levado Agostinho a ser misericordioso, e
seu próprio exemplo levou seus fieis a imitar suas ações. Obviamente, quando
teve conhecimento do fato, o santo não pode senão louvar a fé e a misericórdia
de seus fieis (ep. 10*, 7).
Em um mundo sem misericórdia como o nosso, poder resgatar a
misericórdia em seu sentido mais evangélico e agostiniano será, sem dúvida, uma
alternativa e a solução a muitos dos problemas que afligem a humanidade,
particularmente o da falta de valores e de coração no mundo.
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