IX-
Os desafios, semelhanças e diferenças do novo Papa Leão XIV com o
antecessor Francisco
Declaração de
transparência
O sociólogo Eduardo Brasileiro é membro
da Plataforma Economias do Conselho Episcopal Latino-americano e Caribenho
(CELAM) e autor do livro ‘Outra economia possível: a proposta de Francisco’
(Ideias & Letras, 2024).
O cardeal Robert Francis Prevost imprimiu a si mesmo um desafio
particular ao decidir pelo nome de Leão XIV e, ao mesmo tempo, saudar Francisco
duas vezes em seu discurso inaugural, reafirmando assim os compromissos de seu
antecessor. Os doze anos de Francisco foram de protagonismo do catolicismo no
mundo diante de questões latentes. Como a agenda socioambiental - impulsionada
pela encíclica _Laudato Si_-, a contundência no
debate em favor da paz, o enfrentamento a tabus do catolicismo como o acolhimento às
pessoas LGBTQIA+ , e ensaios sobre um maior protagonismo de mulheres em estruturas
milenarmente conduzidas por homens.
Francisco soube esticar o tecido da Igreja para o que ele chamou de
razão de ser da evangelização: “Na Igreja há lugar
para todos, todos e todos.” Se o Cardeal Prevost resolvesse ser chamado
de Francisco II, precisaria assumir o compromisso de continuar, ao estilo de
Francisco, esse exercício de reformas da Igreja que estão inacabadas e, em
muitos aspectos, incompletas.
Com o nome escolhido, ele aponta coragem diante das inevitáveis
comparações, e opta não pela continuidade, mas por uma complementariedade.
Aponta também distinções de seu antecessor e a busca por proximidades com o que
Francisco mais despertou de positivo no mundo com sua imagem: o cuidado
pastoral.
Ao optar por retomar a linha de Leão XIII, o grande
inaugurador do pensamento social da Igreja, Prevost despertou a curiosidade do
mundo inteiro pela encíclica Rerum
Novarum (“Das coisas novas”: sobre a condição do operário do século XIX),
documento que serviu de justificativa para
construção de bases sólidas de leis trabalhistas e que culmina
também na formação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1907.
Leão XIII foi um homem europeu que optou pela conciliação de classes,
investindo em um processo duplo de frear as revoltas pelo mundo inteiro,
reafirmando o caminho capitalista, e reconhecer que era necessário dignidade no
mundo do trabalho.
Trabalho digno e paz, missões difíceis
Feita a escolha do nome Leão XIV, qual é a conciliação ou concórdia que
o novo Papa logrará a luz da Rerum Novarum? Relatórios da OIT afirmam que nos
países de baixa renda, o desemprego continua sendo um desafio significativo,
agravado pela escassez de empregos formais e pela prevalência do trabalho
informal, que compromete a qualidade do emprego. Embora muitos trabalhadores
estejam ocupados, a maioria atua em condições precárias, sem proteção social,
segurança no trabalho ou salários dignos.
A ebulição das guerras no mundo – há mais de 80
conflitos neste momento – mostra que o seu pontificado deverá
responder quais os caminhos para processos de efetivação da paz no mundo. O
Papa Francisco trouxe contribuições como a retomada de relações entre Estados
Unidos e Cuba no governo Obama e a ampliação do diálogo com as religiões
orientais e asiáticas. Ele também se empenhou em mediações importantes, como as
suas inúmeras tentativas de cessar fogo na Palestina. Aliás, sua morte gerou
uma crise diplomática com a retirada, pelo
governo de Israel, de uma nota de condolências inicialmente
publicada.
Uma pedra no sapato de Donald Trump
O estilo de Leão XIV será diplomático ou fará gestos de denúncia?
Francisco foi muito hábil com as mensagem enviadas por imagens. No Natal de
2024, por exemplo, ocupou as manchetes do mundo e provocou reações ao colocar
um keffiyeh (símbolo palestino) na manjedoura do
Vaticano.
Ele também denunciou, em inúmeros fóruns, uma economia que mata (Evangelii Gaudium,
n. 53) e a pouca eficiência em dar uma nova alma à economia (Economy Of
Francesco) por meio de lideranças globais. Por isso os seus discursos enfáticos
com os jovens para que promovessem ‘revoluções’ (2013) e fossem profetas de uma
nova economia (2022). Além disso, investiu na criação e consolidação de
processos de discussão com os católicos das periferias, sobretudo com os
movimentos populares, como exemplifica a Economia de
Francisco e Clara e os encontros globais
com Movimentos Populares.
Com seu discurso inaugural centrado na paz no mundo, Leão XIV parece ter
um caminho aberto para dialogar com a sociedade norte-americana e mundial, hoje
sob o discurso bélico, odioso e sectário da extrema direita mundial. A
perspectiva deste Papa de dupla nacionalidade (estadounidense e peruano), que
trabalhou décadas com migrantes, refugiados e comunidades periféricas, é de que
seja possível construir um projeto político de fraternidade entre os povos em
que o amor se manifeste em gestos de solidariedade, acolhida e cuidado
públicos. Leão XIV poderá ser um importante contraponto a figura de Donald
Trump, tanto para a sociedade estadunidense, como também para o mundo, portanto,
uma grande pedra no sapato da extrema direita global.
O desafio de Leão XIV no diálogo com os católicos das periferias do
mundo será orientar a crítica contemporânea a uma economia marcadamente sem
povo. Em ritmo acelerado, o capitalismo global concentra monopólios e fragiliza
as estruturas de governanças políticas e econômicas que poderiam levar a pactos
para superar desigualdades estruturais.
Em uma época de desregulamentação e fragilização de pactos econômicos de
combate às misérias, concentração de monopólios e financeirização cada vez
maiores, há dois feixes de luz emanados pela memória da Rerum Novarum de Leão XIII, datada de 1891, que
poderão iluminar os posicionamentos do novo Papa:
1) “O sistema econômico que se baseia puramente na liberdade de mercado,
sem qualquer controle, leva à concentração de riqueza nas mãos de poucos e à
miséria das grandes massas de trabalhadores”.
2) “É dever do Estado intervir na economia para assegurar a justiça
social e garantir que os direitos dos trabalhadores sejam respeitados”.
Desastres climáticos e sinodalidade
A maior herança diante da crise climática e socioambiental do Papa Leão
XIV é o debate inaugurado pela encíclica de Francisco ‘Laudato Si’ e continuado pela
encíclica ‘Laudate Deum’.
Se a sociedade se despede de um pontífice ambientalista, uma série de
agendas e compromissos que foram consolidados baterão à porta de Roma. Do que
parece ser um caminho incontornável (os compromissos socioambientais vindos de
um Papa), espera-se a reafirmação do apelo da indissociabilidade entre a crise
social e ecológica. E que isso seja reafirmado nos próximos anos por novos
compromissos e reflexões, dando novo fôlego à agenda política socioambiental
diante dos desastres climáticos pelo mundo.
Por fim, a sinodalidade — tema que extrapola os
muros da Igreja e surgiu no Vaticano II, do qual Francisco foi continuador —
deriva do latim sínodos, “caminhar juntos”, e ocupa o coração da geopolítica da
Cúria Romana e da eclesiologia mundial. Ela propõe uma Igreja menos piramidal,
mais circular e que incorpore a diversidade que exala no mundo também nas
decisões políticas do Vaticano.
O Papa Leão XIV mostrou-se, anteriormente, afeito a essa dinâmica ao
acompanhar diversos leigos no processo de construção de uma Igreja mais
participativa na Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe (AELAC),
realizada na Cidade do México em 2021 — um evento histórico e um exemplo
expressivo de escuta das periferias latino-americanas, que ele deverá motivar a
prosseguir.
Os elementos expostos neste ensaio oferecem um caminho para compreender
que, se por um lado o Papa Leão XIV renova o compromisso com a grande virada da
Igreja Católica no mundo que foi o Vaticano II, por outro há uma
evidente ausência de contundência neste início de papado. Isso fica evidenciado
pela opção, em seu discurso inaugural, de citar apenas “aqueles que sofrem”.
Essa distinção em relação a Francisco, que nomeava diretamente “os pobres”,
pode revelar maior leniência diante dos processos de injustiça ocorridos pelo
mundo.
A aposta dos cardeais que escolheram Leão XIV foi em um Papa que avança com o tempo histórico, buscando diálogo
e interlocução, mas com o cuidado e a atenção necessários para não romper com
processos doutrinários clássicos. É um perfil que pode implicar, sobretudo, em
não responder de imediato às demandas por inclusão total das pessoas que sofrem
— como mulheres, pessoas gays e transexuais —, mas promover uma inclusão
gradual pautada no respeito, no diálogo e na convivência. Diante de um mundo
eclipsado pelo conservadorismo, trata-se de um aceno importante. Porém, frente
aos apelos de uma sociedade pluralista, constitui um alerta sobre a possível
dificuldade de conexão com as agendas emergentes que interpelarão
particularmente este pontificado.
( * )Pesquisador
nas áreas de Sociologia, Economia e Religião, Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais (PUC Minas)
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