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REFLETINDO
COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *)
"REBORN DOLLS" E O RECENTE FENÔMENO DOS BEBÊS
ULTRARREALISTAS: DE VOLTA AO ADMIRÁVEL MUNDO NOVO
"O excesso nunca é só sobre
o boneco. É sobre o que foi perdido ou nunca chegou"
[Rodrigo Alcântara]
Obs.: esta terceira
parte complementa e finaliza a primeira e a segunda, de mesmo título.
Exploramos, nesta
terceira parte, cinco novos cenários de uso das criações Reborn, cada um deles
portador de ambivalência terapêutica e psicopatológica. Esses contextos revelam
não apenas a criatividade e a complexidade emocional humana, mas também a
propensão a recaídas inconscientes, deslocamentos afetivos inadequados, ou
mesmo construções fantasiosas resistentes ao princípio de realidade. O que pode
ser instrumento de arte, ensino ou cura, pode também servir como mecanismo de
defesa regressivo, ritualização compulsiva, ou congelamento simbólico da dor. A
seguir, os tópicos de seis a dez, que complementam e finalizam nossa reflexão.
[06] Arte e
colecionismo, mas também fetichismo infantilizado: o universo dos bonecos
Reborn atrai artistas e colecionadores do mundo inteiro, que veem nas peças
produzidas verdadeiras obras de arte e de expressão artística. Cada detalhe -
veias pintadas à mão, fios de cabelo implantados um a um, expressão facial
delicada e ultrarreal - é fruto de um minucioso trabalho artesanal que exige
paciência, técnica e sensibilidade. Para muitos, colecionar bonecos Reborn é
tanto uma forma de valorizar o talento artístico quanto manter viva uma estética
que homenageia a infância em sua dimensão lúdica. Mas também aqui é preciso
cuidado. O que começa como arte, hobby e até mesmo profissão pode se tornar uma
prática fetichista, onde o apelo visual pelo boneco ultrapassa a admiração
artística e invade o campo da substituição emocional disfuncional. Em casos
mais graves, pode haver uma recusa de enfrentamento da realidade em favor de um
mundo idealizado, promovendo alienação e infantilização patológica das emoções.
[07] Terapia
ocupacional e "homeworks", mas também compulsão como rota de fuga: em
determinados contextos terapêuticos os cuidados diários com um bebê Reborn -
dar banho, trocar roupas, colocar para “dormir” - podem funcionar como
"homeworks" - tarefas de casa - que ajudam na organização psíquica,
promovem a disciplina e reforçam o senso de responsabilidade. Essa prática pode
ser altamente benéfica, por exemplo, em processos de reabilitação emocional
após determinada perda ocorrida ao longo da vida. Lamentavelmente, porém, o
cuidado para com o Reborn pode evoluir para uma autêntica compulsão por meras
rotinas simuladas, em que a pessoa mergulha num ciclo de cuidados repetitivos
que já não servem à terapia, mas funcionam como rota de fuga ou de esquiva da
realidade. A vida concreta, com suas exigências e vínculos humanos autênticos,
pode acabar sendo progressivamente substituída por um roteiro estéril e
ilusório, situação que requer cuidado e atenção por parte de um profissional
qualificado.
[08] Recuperação de
traumas sexuais e dessensibilização progressiva, mas também revivência
emocional do ato traumático: em casos de abuso sexual ou mesmo de estupro,
especialmente na infância ou adolescência, o uso de bonecos pode integrar
práticas terapêuticas voltadas ao processo de "dessensibilização progressiva",
técnica utilizada visando à diminuição gradativa dos estímulos que provocam
repulsa, medo, pânico ou dissociação, seguida da reaquisição da confiança, da
coragem e do equilíbrio emocional. O boneco Reborn - com formas masculinas e
até mesmo com características simbólicas do agressor - pode ser utilizado como
mediador silencioso da dor, permitindo que o paciente recupere, aos poucos, a
sensação de controle sobre o corpo, o afeto e a própria narrativa. Mas a
aproximação progressiva do Reborn pode também resultar em revivescência do
trauma - uma espécie de "vitimização secundária" - quando seu uso não
é adequadamente mediado por um profissional. Ou seja: ao invés de simbolizar a
superação, o Reborn pode tornar-se um elemento ou elo fixador entre o trauma e
a recordação do abuso. Em vez de distanciamento gradual, o que acaba ocorrendo
é um aprisionamento emocional disfarçado de enfrentamento. O Reborn, nesse
contexto, deixa de ser ferramenta de elaboração e passa a atuar como âncora
psíquica, impedindo o real processamento da violência traumática vivida.
[09] Ensino e
Educação, mas também reforço de papéis estereotipados: o uso de Reborns em
atividades pedagógicas e em programas de prevenção à gravidez precoce pode
oferecer experiências educativas concretas e interessantes. Alunos compreendem,
por meio da vivência prática simulada, as responsabilidades envolvidas no
cuidado de um recém-nascido. Isso estimula empatia, autocontrole e reflexão
crítica sobre maternidade e a maternagem. Nos Cursos de Medicina, por exemplo,
até certo ponto e medida o Reborn pode substituir o corpo humano como objeto de
estudo e de intervenção. No primeiro caso mencionado, é preciso cuidado: o uso
do Reborn pode reforçar papéis de gênero estereotipados e normativos,
especialmente quando a experiência é imposta quase exclusivamente a meninas. Em
vez de promover o pensamento crítico, sua utilização pode induzir uma
"naturalização" precoce da maternidade como destino inevitável,
enfraquecendo a pluralidade de trajetórias e escolhas possíveis para a vida
adulta.
[10] Instrumento de
alívio e conforto, mas também dependência emocional simbiótica: a interação com
um bebê Reborn pode proporcionar alívio imediato de angústias, servir de
consolo para a solidão e evocar sensações de cuidado mútuo. Em contextos de
sofrimento psíquico, a presença silenciosa e sempre disponível do Reborn pode
atuar como um "acolhedor simbólico" temporariamente válido e útil. Na
contramão dessa funcionalidade, o vínculo com o Reborn pode gerar também uma
dependência simbiótica perigosa, em que o objeto passa a ser tratado como
extensão do próprio eu. A pessoa começa a regular suas emoções exclusivamente
por meio da presença do Reborn, enfraquecendo assim suas habilidades de
autorregulação, de busca de ajuda real e de vínculo com pessoas humanas. Nesses
casos, o boneco não alivia - e menos ainda “cura” - o vazio emocional, mas
apenas o disfarça, reforça e perpetua. Sempre que possível, a orientação de um
profissional deve ser considerada.
À guisa de conclusão:
dois diferentes tipos de reducionismo constituem os erros mais frequentes na
análise do fenômeno Reborn: primeiro, reduzir a complexidade do seu uso ao
“bebê Reborn”; segundo, reduzir o uso desse mesmo bebê à sua dimensão
patológica, ignorando dimensões terapêuticas, afetivas e simbólicas igualmente
legítimas. A existência dos bonecos e bebês Reborn no cenário contemporâneo
revela muito mais que uma tendência estética ou uma excentricidade do mercado
de brinquedos. Eles funcionam como alternativas simbólicas válidas de projeção
e sublimação, onde diferentes pessoas, com distintas necessidades, inscrevem
suas angústias, carências, afetos e desejos - conscientes ou não. São telas em
branco e, ao mesmo tempo, espelhos. E é justamente nessa ambiguidade que reside
sua força terapêutica ou seu risco patológico.
Ao longo das três
partes aqui desenvolvidas, vimos que os Reborns podem ser aliados preciosos no
enfrentamento da dor, da perda e da solidão. Porém, seu uso sem mediação
crítica ou acompanhamento profissional corre o sério risco de se converter em
ritual de fuga, reforço da negação ou cristalização de traumas. A plasticidade
emocional do ser humano é com certeza uma de suas maiores riquezas, mas também
pode ser o terreno fértil para confusões simbólicas e amarras emocionais
travestidas de cuidado.
Cabe, portanto, a
nós, enquanto terapeutas, educadores, pesquisadores ou simples observadores -
mantermos o olhar atento e sensível, evitando tanto o desprezo irônico quanto a
adesão destituída de análise crítica. Os Reborns não são apenas bonecos; são
sintomas, símbolos e sinais. Como toda forma simbólica, precisa ser escutada,
não silenciada - e sobretudo, integrada de forma lúcida à paisagem emocional da
vida real. Como nos lembra certo ditado chinês, "é preciso ter cuidado
para não se botar fora a criança junto com a água suja".
( * ) Texto enviado pelo autor via Whatsapp, de Vitória
(ES)
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