sexta-feira, 20 de junho de 2025

X- REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *) "REBORN DOLLS" E O RECENTE FENÔMENO DOS BEBÊS ULTRARREALISTAS: DE VOLTA AO ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

 

 

X-      REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *)

 

"REBORN DOLLS" E O RECENTE FENÔMENO DOS BEBÊS ULTRARREALISTAS: DE VOLTA AO ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

 

              "O excesso nunca é só  sobre o boneco.  É sobre  o que foi perdido ou nunca chegou" [Rodrigo Alcântara]

 

Obs.: esta terceira parte complementa e finaliza a primeira e a segunda, de mesmo título.

Exploramos, nesta terceira parte, cinco novos cenários de uso das criações Reborn, cada um deles portador de ambivalência terapêutica e psicopatológica. Esses contextos revelam não apenas a criatividade e a complexidade emocional humana, mas também a propensão a recaídas inconscientes, deslocamentos afetivos inadequados, ou mesmo construções fantasiosas resistentes ao princípio de realidade. O que pode ser instrumento de arte, ensino ou cura, pode também servir como mecanismo de defesa regressivo, ritualização compulsiva, ou congelamento simbólico da dor. A seguir, os tópicos de seis a dez, que complementam e finalizam nossa reflexão.

[06] Arte e colecionismo, mas também fetichismo infantilizado: o universo dos bonecos Reborn atrai artistas e colecionadores do mundo inteiro, que veem nas peças produzidas verdadeiras obras de arte e de expressão artística. Cada detalhe - veias pintadas à mão, fios de cabelo implantados um a um, expressão facial delicada e ultrarreal - é fruto de um minucioso trabalho artesanal que exige paciência, técnica e sensibilidade. Para muitos, colecionar bonecos Reborn é tanto uma forma de valorizar o talento artístico quanto manter viva uma estética que homenageia a infância em sua dimensão lúdica. Mas também aqui é preciso cuidado. O que começa como arte, hobby e até mesmo profissão pode se tornar uma prática fetichista, onde o apelo visual pelo boneco ultrapassa a admiração artística e invade o campo da substituição emocional disfuncional. Em casos mais graves, pode haver uma recusa de enfrentamento da realidade em favor de um mundo idealizado, promovendo alienação e infantilização patológica das emoções.

[07] Terapia ocupacional e "homeworks", mas também compulsão como rota de fuga: em determinados contextos terapêuticos os cuidados diários com um bebê Reborn - dar banho, trocar roupas, colocar para “dormir” - podem funcionar como "homeworks" - tarefas de casa - que ajudam na organização psíquica, promovem a disciplina e reforçam o senso de responsabilidade. Essa prática pode ser altamente benéfica, por exemplo, em processos de reabilitação emocional após determinada perda ocorrida ao longo da vida. Lamentavelmente, porém, o cuidado para com o Reborn pode evoluir para uma autêntica compulsão por meras rotinas simuladas, em que a pessoa mergulha num ciclo de cuidados repetitivos que já não servem à terapia, mas funcionam como rota de fuga ou de esquiva da realidade. A vida concreta, com suas exigências e vínculos humanos autênticos, pode acabar sendo progressivamente substituída por um roteiro estéril e ilusório, situação que requer cuidado e atenção por parte de um profissional qualificado.

[08] Recuperação de traumas sexuais e dessensibilização progressiva, mas também revivência emocional do ato traumático: em casos de abuso sexual ou mesmo de estupro, especialmente na infância ou adolescência, o uso de bonecos pode integrar práticas terapêuticas voltadas ao processo de "dessensibilização progressiva", técnica utilizada visando à diminuição gradativa dos estímulos que provocam repulsa, medo, pânico ou dissociação, seguida da reaquisição da confiança, da coragem e do equilíbrio emocional. O boneco Reborn - com formas masculinas e até mesmo com características simbólicas do agressor - pode ser utilizado como mediador silencioso da dor, permitindo que o paciente recupere, aos poucos, a sensação de controle sobre o corpo, o afeto e a própria narrativa. Mas a aproximação progressiva do Reborn pode também resultar em revivescência do trauma - uma espécie de "vitimização secundária" - quando seu uso não é adequadamente mediado por um profissional. Ou seja: ao invés de simbolizar a superação, o Reborn pode tornar-se um elemento ou elo fixador entre o trauma e a recordação do abuso. Em vez de distanciamento gradual, o que acaba ocorrendo é um aprisionamento emocional disfarçado de enfrentamento. O Reborn, nesse contexto, deixa de ser ferramenta de elaboração e passa a atuar como âncora psíquica, impedindo o real processamento da violência traumática vivida.

[09] Ensino e Educação, mas também reforço de papéis estereotipados: o uso de Reborns em atividades pedagógicas e em programas de prevenção à gravidez precoce pode oferecer experiências educativas concretas e interessantes. Alunos compreendem, por meio da vivência prática simulada, as responsabilidades envolvidas no cuidado de um recém-nascido. Isso estimula empatia, autocontrole e reflexão crítica sobre maternidade e a maternagem. Nos Cursos de Medicina, por exemplo, até certo ponto e medida o Reborn pode substituir o corpo humano como objeto de estudo e de intervenção. No primeiro caso mencionado, é preciso cuidado: o uso do Reborn pode reforçar papéis de gênero estereotipados e normativos, especialmente quando a experiência é imposta quase exclusivamente a meninas. Em vez de promover o pensamento crítico, sua utilização pode induzir uma "naturalização" precoce da maternidade como destino inevitável, enfraquecendo a pluralidade de trajetórias e escolhas possíveis para a vida adulta.

[10] Instrumento de alívio e conforto, mas também dependência emocional simbiótica: a interação com um bebê Reborn pode proporcionar alívio imediato de angústias, servir de consolo para a solidão e evocar sensações de cuidado mútuo. Em contextos de sofrimento psíquico, a presença silenciosa e sempre disponível do Reborn pode atuar como um "acolhedor simbólico" temporariamente válido e útil. Na contramão dessa funcionalidade, o vínculo com o Reborn pode gerar também uma dependência simbiótica perigosa, em que o objeto passa a ser tratado como extensão do próprio eu. A pessoa começa a regular suas emoções exclusivamente por meio da presença do Reborn, enfraquecendo assim suas habilidades de autorregulação, de busca de ajuda real e de vínculo com pessoas humanas. Nesses casos, o boneco não alivia - e menos ainda “cura” - o vazio emocional, mas apenas o disfarça, reforça e perpetua. Sempre que possível, a orientação de um profissional deve ser considerada.

À guisa de conclusão: dois diferentes tipos de reducionismo constituem os erros mais frequentes na análise do fenômeno Reborn: primeiro, reduzir a complexidade do seu uso ao “bebê Reborn”; segundo, reduzir o uso desse mesmo bebê à sua dimensão patológica, ignorando dimensões terapêuticas, afetivas e simbólicas igualmente legítimas. A existência dos bonecos e bebês Reborn no cenário contemporâneo revela muito mais que uma tendência estética ou uma excentricidade do mercado de brinquedos. Eles funcionam como alternativas simbólicas válidas de projeção e sublimação, onde diferentes pessoas, com distintas necessidades, inscrevem suas angústias, carências, afetos e desejos - conscientes ou não. São telas em branco e, ao mesmo tempo, espelhos. E é justamente nessa ambiguidade que reside sua força terapêutica ou seu risco patológico.

Ao longo das três partes aqui desenvolvidas, vimos que os Reborns podem ser aliados preciosos no enfrentamento da dor, da perda e da solidão. Porém, seu uso sem mediação crítica ou acompanhamento profissional corre o sério risco de se converter em ritual de fuga, reforço da negação ou cristalização de traumas. A plasticidade emocional do ser humano é com certeza uma de suas maiores riquezas, mas também pode ser o terreno fértil para confusões simbólicas e amarras emocionais travestidas de cuidado.

Cabe, portanto, a nós, enquanto terapeutas, educadores, pesquisadores ou simples observadores - mantermos o olhar atento e sensível, evitando tanto o desprezo irônico quanto a adesão destituída de análise crítica. Os Reborns não são apenas bonecos; são sintomas, símbolos e sinais. Como toda forma simbólica, precisa ser escutada, não silenciada - e sobretudo, integrada de forma lúcida à paisagem emocional da vida real. Como nos lembra certo ditado chinês, "é preciso ter cuidado para não se botar fora a criança junto com a água suja".

( * ) Texto enviado pelo autor via Whatsapp, de Vitória (ES)

Nenhum comentário:

Postar um comentário