IX-
REFLEXÃO DOMINICAL II
15 de
junho – SANTÍSSIMA TRINDADE
Por Pe.
Francisco Cornélio*
O mistério e a beleza de um Deus comunidade de amor
I. Introdução geral
Celebrada no primeiro
domingo após Pentecostes, a solenidade da Santíssima Trindade recorda a
comunhão de amor que une o Pai, o Filho e o Espírito Santo, as três divinas
pessoas, que constituem um único Deus. Esse é o mistério central da nossa fé,
do qual emanam todos os demais. No entanto, o fato de ser um mistério não
significa que não possa ser explicado nem compreendido, e sim que nenhuma
explicação humana é capaz de dizer tudo sobre ele. Portanto, as leituras desta
festa não explicam a Santíssima Trindade, como nenhum texto bíblico o faz, mas
ensinam muita coisa sobre a identidade do Deus que é uno e trino, à luz do que
se diz do seu agir em favor do mundo e da humanidade, sobretudo. A primeira
descreve a maneira de Deus criar: ele não suporta a solidão, por isso, antes de
criar o universo, criou a sabedoria, para continuar criando em sua companhia,
divertindo-se ao lado dela. Na segunda, Paulo recorda que a vida cristã é toda
revestida do agir trinitário, sobretudo pelo amor, motivo de esperança para os
cristãos. No Evangelho, Jesus anuncia o envio do Espírito Santo, para capacitar
seus discípulos na compreensão dos seus ensinamentos e de tudo que recebeu do
Pai. Mediante o salmo, somos convidados a contemplar a beleza de Deus na
criação, especialmente no ser humano, sua obra-prima.
II. Comentários dos textos bíblicos
1. I leitura (Pr 8,22-31)
O livro dos Provérbios,
do qual é tirada a primeira leitura, é o mais expressivo dos escritos
sapienciais da Bíblia. É composto de várias coleções de máximas, provérbios e
ditos populares, recolhidas da sabedoria popular de Israel em diferentes
épocas. Possui também algumas seções poéticas e narrativas. Começou a ser
composto ainda em época salomônica, no século X a.C., e foi concluído já no
século III a.C., durante a dominação grega, perfazendo cerca de sete séculos de
produção literária.
Apesar de estar
localizada na primeira parte (cap. 1-9), a leitura pertence à última fase de
composição do livro, quando a cultura grega exercia grande influência na
juventude, o que era visto como ameaça para as tradições de Israel. Diante
disso, preocupados com a educação das novas gerações, escribas e sábios judeus
elaboraram grandes reflexões sobre a sabedoria judaica, apresentando-a como
infinitamente superior à dos gregos. Vários escritos surgiram nesse contexto,
como partes de Provérbios e os livros do Eclesiástico e da Sabedoria. A leitura
faz parte de um discurso poético em primeira pessoa (8,12-36), considerado o
coração do livro, no qual a própria Sabedoria se apresenta como uma personagem,
dando origem à ideia de Sabedoria personificada, pois é retratada como uma
pessoa. Detentora da palavra, ela faz um elogio a si mesma, apresentando-se
como a primeira das criaturas (v. 22) e atuando como uma espécie de assistente
de Deus durante a criação, mas sem fazer qualquer interferência (v. 30).
Embora faça um
autoelogio, o que a Sabedoria mais revela é a identidade de Deus, sobretudo
seus atributos de criador. Ela se declara possuída por Deus como primícia,
demonstrando ser muito querida por ele, criada antes de todas as coisas como
modelo e inspiração para a criação inteira (v. 22-26). Enquanto Deus criava,
ela estava ao seu lado (v. 27-30a) como uma criança que assiste ao seu pai em
seu trabalho e o diverte, tornando o trabalho mais prazeroso e, por
consequência, a obra mais bonita (v. 30b-31). Assim, ela revela os traços de um
Deus criador e Pai, que se humaniza à medida que dá forma aos seus projetos,
sentindo-se, com isso, plenamente realizado. Trata-se de um Deus que não
suporta a solidão, mas vive de comunhão, pois, antes de tudo, criou a sabedoria
para, em seguida, desenvolver seu programa criador já em companhia dela.
Diante disso, é possível
ver na Sabedoria uma representação prefigurada tanto do Filho quanto do
Espírito Santo. O que ela diz sobre Deus, ao falar de si mesma, é prefiguração
do que Jesus, o Verbo encarnado, revelou e o Espírito Santo recorda
perenemente. Contudo, ao estabelecer essa relação, deve-se recordar que, ao
contrário da sabedoria, o Filho e o Espírito Santo não são criaturas, mas são
Deus mesmo, possuem a mesma natureza daquele que é Criador e Pai.
2. II leitura (Rm 5,1-5)
A segunda leitura é
tirada da carta aos Romanos, considerada a obra-prima do apóstolo Paulo. Além
de ser a mais longa, é a mais importante das suas cartas, devido à profundidade
da reflexão teológica desenvolvida. Estima-se que foi escrita entre os anos 57
e 58 d.C., na cidade de Corinto, quando ele ainda não tinha sequer visitado
Roma. No entanto, o apóstolo conhecia a comunidade de lá, pois recebia
informações de seus colaboradores de missão e de lideranças locais, tanto por
correspondência quanto por contato pessoal, pois a geografia e a infraestrutura
do Império Romano favoreciam bastante a comunicação e a circulação de pessoas e
ideias. Paulo se serviu dessa situação, utilizando-a em prol da evangelização
mediante a constituição de verdadeira rede de comunidades, de modo que, mesmo
sem estar presente em todas, conhecia as necessidades de cada uma.
O tema central da carta
é a justificação pela fé em Jesus Cristo, em contraposição ao princípio de que
a salvação dependia essencialmente do cumprimento das obras da Lei, como
defendiam os grupos de tendência judaizante, infiltrados na comunidade. Desse
modo, o trecho proclamado na liturgia deste dia pode ser considerado verdadeira
síntese da obra. Nele, o autor reafirma solenemente o que foi desenvolvido nos
capítulos anteriores – fomos justificados pela fé em Jesus Cristo (v. 1) – e
apresenta as consequências imediatas dessa nova realidade, descrevendo a vida
cristã em perspectiva trinitária. A fé em Jesus é o ponto de partida, e o
primeiro fruto da justificação obtida pela sua mediação é a paz com Deus, o que
gera confiança e esperança, pois indica uma condição de plena liberdade do ser
humano (v. 2). Diante disso, as tribulações já não afetam a esperança, mas a
fortalecem, ao prová-la, tornando-a mais constante e paciente (v. 3-4). De fato,
quanto mais provada, mais forte a esperança se torna, por isso ela não
decepciona (v. 5a).
Contudo, além das
tribulações que a provam, o motivo principal da solidez da esperança é o
derramamento do amor de Deus em nosso coração pelo Espírito Santo (v. 5). Com
isso, percebe-se que a vida do cristão é toda revestida do agir trinitário. As
três divinas pessoas atuam juntas, deixando suas marcas no ser humano,
aperfeiçoando continuamente a semelhança criadora. Ademais, como resposta ao
agir trinitário em nós, também nos cabe viver trinitariamente, conduzindo nossa
existência com fé, esperança e amor, as virtudes teologais que são reflexo da
Trindade em nossa vida.
3. Evangelho (Jo 16,12-15)
Após dois domingos de
alternância, o Evangelho volta a ser tirado do longo discurso de despedida de
Jesus em João (Jo 13,31-16,33), chamado convencionalmente de “testamento de
Jesus”, devido ao estilo literário e à relevância teológica que possui.
Pertence ao contexto da última ceia, ambientada em Jerusalém. O evangelista
aproveita a ocasião para apresentar verdadeira síntese e recapitulação dos
elementos essenciais da mensagem de Jesus. Por isso, retrata-o ensinando e
conferindo suas últimas recomendações aos discípulos, o que culmina no anúncio
do envio do Espírito Santo, em comunhão com o Pai. Em forma de promessa, Jesus
faz esse anúncio por cinco vezes (Jo 14,16-17; 14,26; 15,26; 16,7-8; 16,13) ao
longo do discurso, o que ressalta a importância do Espírito Santo para a vida
da comunidade cristã em todos os tempos. O trecho lido na liturgia contém o
quinto e último anúncio.
Ao chegar à última ceia,
Jesus tinha plena consciência do que estava para acontecer, sabia da sua morte
iminente. Da mesma forma, tinha consciência de já ter ensinado tudo aos seus
discípulos, dando-lhes a conhecer todo o seu programa e a essência da sua
pessoa, incluindo sua intimidade com o Pai, a ponto de afirmar-lhes: “Já não
vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor, mas vos chamo
de amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer” (Jo 15,15).
Por certo, ser discípulo de Jesus é entrar no seu círculo de intimidade mais
profunda, tornando-se seu amigo, assimilando seus ensinamentos e pondo-os em
prática, configurando-se a ele no estilo de vida.
Contudo, Jesus sabia
também que os discípulos ainda não tinham assimilado tudo; logo, não estavam
prontos para continuar a missão confiada, após sua partida deste mundo para o
Pai. Portanto, quando ele afirma que ainda tem muitas coisas a dizer (v. 12),
não se refere a ensinamentos novos, mas à capacidade de compreensão dos
discípulos. Até porque a chave para compreender e interpretar sua mensagem é o
mistério da cruz e ressurreição, o que ainda não tinha acontecido. Diante
disso, ele anuncia o envio do Espírito Santo, pela quinta vez no discurso, a
fim de conduzir os discípulos à plena verdade (v. 13). A verdade plena é ele
mesmo, a totalidade da sua pessoa e mensagem. Por conseguinte, é preciso
deixar-se conduzir pelo Espírito Santo para conhecer plenamente Jesus e sua mensagem,
tendo a capacidade de atualizá-la diante de novas situações e fatos da
história. É assim que ele se sente glorificado (v. 14).
Jesus conclui seu
anúncio do envio do Espírito Santo com a reafirmação de sua comunhão com o Pai
e com o próprio Espírito, revelando a íntima unidade dos três (v. 15). Nisso, o
texto revela-se altamente trinitário, mesmo sem propor qualquer definição do
mistério. O Espírito é responsável por anunciar à comunidade tudo o que recebe
de Jesus; e tudo o que Jesus concede ao Espírito recebeu do Pai. Logo, a
presença perene de Jesus na comunidade, por meio do Espírito, é também presença
do Pai. É essa relação que torna sempre novo e atual tudo o que Jesus viveu e
ensinou. Deixar-se conduzir pelo Espírito Santo é entrar também nessa comunhão
profunda com o Pai e o Filho.
III. Pistas para reflexão
Esta solenidade não é
ocasião para tentar explicar o mistério da Santíssima Trindade. É importante
ressaltar, com base nas leituras, que Deus se deixa conhecer pela sua forma de
atuar no mundo, sobretudo em favor da humanidade. Em todas as leituras,
prevalece a imagem de um Deus que se relaciona, que é comunhão em si mesmo e se
abre à comunhão com o universo inteiro. Da imagem que temos de Deus depende
nossa relação com ele, por isso é importante percebê-lo próximo, criando laços.
Que a certeza da comunhão trinitária estimule a vida fraterna, a solidariedade
e o amor em nossas comunidades.
Pe. Francisco Cornélio*
*é presbítero da diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em
Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum
(Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – Insaf
(Recife) e bacharel em Teologia pela Universidade Católica de Salvador-BA. É
professor de Teologia no Centro Universitário UniCatólica do
RN. francornelio@gmail.com
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/15-de-junho-santissima-trindade-2/
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