XII-
REFLETINDO
COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *)
"REBORN DOLLS" E O RECENTE FENÔMENO DOS BEBÊS
ULTRARREALISTAS: DE VOLTA AO ADMIRÁVEL MUNDO NOVO
[Parte III]
"O excesso nunca é só sobre o boneco. É sobre
o que foi perdido ou nunca chegou" [Rodrigo Alcântara]
Obs.: esta terceira parte
complementa e finaliza a primeira e a segunda, de mesmo título.
Exploramos, nesta terceira
parte, cinco novos cenários de uso das criações Reborn, cada um deles portador
de ambivalência terapêutica e psicopatológica. Esses contextos revelam não
apenas a criatividade e a complexidade emocional humana, mas também a propensão
a recaídas inconscientes, deslocamentos afetivos inadequados, ou mesmo
construções fantasiosas resistentes ao princípio de realidade. O que pode ser
instrumento de arte, ensino ou cura, pode também servir como mecanismo de
defesa regressivo, ritualização compulsiva, ou congelamento simbólico da dor. A
seguir, os tópicos de seis a dez, que complementam e finalizam nossa reflexão.
[06] Arte e colecionismo,
mas também fetichismo infantilizado: o universo dos bonecos Reborn atrai
artistas e colecionadores do mundo inteiro, que veem nas peças produzidas
verdadeiras obras de arte e de expressão artística. Cada detalhe - veias
pintadas à mão, fios de cabelo implantados um a um, expressão facial delicada e
ultrarreal - é fruto de um minucioso trabalho artesanal que exige paciência,
técnica e sensibilidade. Para muitos, colecionar bonecos Reborn é tanto uma
forma de valorizar o talento artístico quanto manter viva uma estética que
homenageia a infância em sua dimensão lúdica. Mas também aqui é preciso
cuidado. O que começa como arte, hobby e até mesmo profissão pode se tornar uma
prática fetichista, onde o apelo visual pelo boneco ultrapassa a admiração
artística e invade o campo da substituição emocional disfuncional. Em casos
mais graves, pode haver uma recusa de enfrentamento da realidade em favor de um
mundo idealizado, promovendo alienação e infantilização patológica das emoções.
[07] Terapia ocupacional e
"homeworks", mas também compulsão como rota de fuga: em determinados
contextos terapêuticos os cuidados diários com um bebê Reborn - dar banho,
trocar roupas, colocar para “dormir” - podem funcionar como
"homeworks" - tarefas de casa - que ajudam na organização psíquica,
promovem a disciplina e reforçam o senso de responsabilidade. Essa prática pode
ser altamente benéfica, por exemplo, em processos de reabilitação emocional após
determinada perda ocorrida ao longo da vida. Lamentavelmente, porém, o cuidado
para com o Reborn pode evoluir para uma autêntica compulsão por meras rotinas
simuladas, em que a pessoa mergulha num ciclo de cuidados repetitivos que já
não servem à terapia, mas funcionam como rota de fuga ou de esquiva da
realidade. A vida concreta, com suas exigências e vínculos humanos autênticos,
pode acabar sendo progressivamente substituída por um roteiro estéril e
ilusório, situação que requer cuidado e atenção por parte de um profissional
qualificado.
[08] Recuperação de traumas
sexuais e dessensibilização progressiva, mas também revivência emocional do ato
traumático: em casos de abuso sexual ou mesmo de estupro, especialmente na
infância ou adolescência, o uso de bonecos pode integrar práticas terapêuticas
voltadas ao processo de "dessensibilização progressiva", técnica
utilizada visando à diminuição gradativa dos estímulos que provocam repulsa,
medo, pânico ou dissociação, seguida da reaquisição da confiança, da coragem e
do equilíbrio emocional. O boneco Reborn - com formas masculinas e até mesmo
com características simbólicas do agressor - pode ser utilizado como mediador
silencioso da dor, permitindo que o paciente recupere, aos poucos, a sensação
de controle sobre o corpo, o afeto e a própria narrativa. Mas a aproximação
progressiva do Reborn pode também resultar em revivescência do trauma - uma
espécie de "vitimização secundária" - quando seu uso não é
adequadamente mediado por um profissional. Ou seja: ao invés de simbolizar a
superação, o Reborn pode tornar-se um elemento ou elo fixador entre o trauma e
a recordação do abuso. Em vez de distanciamento gradual, o que acaba ocorrendo
é um aprisionamento emocional disfarçado de enfrentamento. O Reborn, nesse contexto,
deixa de ser ferramenta de elaboração e passa a atuar como âncora psíquica,
impedindo o real processamento da violência traumática vivida.
[09] Ensino e Educação, mas
também reforço de papéis estereotipados: o uso de Reborns em atividades
pedagógicas e em programas de prevenção à gravidez precoce pode oferecer
experiências educativas concretas e interessantes. Alunos compreendem, por meio
da vivência prática simulada, as responsabilidades envolvidas no cuidado de um
recém-nascido. Isso estimula empatia, autocontrole e reflexão crítica sobre
maternidade e a maternagem. Nos Cursos de Medicina, por exemplo, até certo
ponto e medida o Reborn pode substituir o corpo humano como objeto de estudo e
de intervenção. No primeiro caso mencionado, é preciso cuidado: o uso do Reborn
pode reforçar papéis de gênero estereotipados e normativos, especialmente
quando a experiência é imposta quase exclusivamente a meninas. Em vez de
promover o pensamento crítico, sua utilização pode induzir uma
"naturalização" precoce da maternidade como destino inevitável,
enfraquecendo a pluralidade de trajetórias e escolhas possíveis para a vida
adulta.
[10] Instrumento de alívio e
conforto, mas também dependência emocional simbiótica: a interação com um bebê
Reborn pode proporcionar alívio imediato de angústias, servir de consolo para a
solidão e evocar sensações de cuidado mútuo. Em contextos de sofrimento
psíquico, a presença silenciosa e sempre disponível do Reborn pode atuar como
um "acolhedor simbólico" temporariamente válido e útil. Na contramão
dessa funcionalidade, o vínculo com o Reborn pode gerar também uma dependência
simbiótica perigosa, em que o objeto passa a ser tratado como extensão do
próprio eu. A pessoa começa a regular suas emoções exclusivamente por meio da
presença do Reborn, enfraquecendo assim suas habilidades de autorregulação, de
busca de ajuda real e de vínculo com pessoas humanas. Nesses casos, o boneco
não alivia - e menos ainda “cura” - o vazio emocional, mas apenas o disfarça,
reforça e perpetua. Sempre que possível, a orientação de um profissional deve
ser considerada.
À guisa de conclusão: dois
diferentes tipos de reducionismo constituem os erros mais frequentes na análise
do fenômeno Reborn: primeiro, reduzir a complexidade do seu uso ao “bebê
Reborn”; segundo, reduzir o uso desse mesmo bebê à sua dimensão patológica,
ignorando dimensões terapêuticas, afetivas e simbólicas igualmente legítimas. A
existência dos bonecos e bebês Reborn no cenário contemporâneo revela muito
mais que uma tendência estética ou uma excentricidade do mercado de brinquedos.
Eles funcionam como alternativas simbólicas válidas de projeção e sublimação,
onde diferentes pessoas, com distintas necessidades, inscrevem suas angústias,
carências, afetos e desejos - conscientes ou não. São telas em branco e, ao
mesmo tempo, espelhos. E é justamente nessa ambiguidade que reside sua força
terapêutica ou seu risco patológico.
Ao longo das três partes
aqui desenvolvidas, vimos que os Reborns podem ser aliados preciosos no
enfrentamento da dor, da perda e da solidão. Porém, seu uso sem mediação
crítica ou acompanhamento profissional corre o sério risco de se converter em
ritual de fuga, reforço da negação ou cristalização de traumas. A plasticidade
emocional do ser humano é com certeza uma de suas maiores riquezas, mas também
pode ser o terreno fértil para confusões simbólicas e amarras emocionais
travestidas de cuidado.
Cabe, portanto, a nós,
enquanto terapeutas, educadores, pesquisadores ou simples observadores -
mantermos o olhar atento e sensível, evitando tanto o desprezo irônico quanto a
adesão destituída de análise crítica. Os Reborns não são apenas bonecos; são
sintomas, símbolos e sinais. Como toda forma simbólica, precisa ser escutada,
não silenciada - e sobretudo, integrada de forma lúcida à paisagem emocional da
vida real. Como nos lembra certo ditado chinês, "é preciso ter cuidado
para não se botar fora a criança junto com a água suja".
(
* ) Texto enviado pelo autor, via Whatsapp, de Vitória (ES).
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