sexta-feira, 13 de junho de 2025

XIII- REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *)

 

XIII-      REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *)

 

"GLAMOURIZAÇÃO VERSUS ESPEZINHAÇÃO: UM COMPARATIVO ENTRE O FENÔMENO BARBIE E O FENÔMENO REBORN"

"As coisas  não são   boas  ou  belas  e por  isso  nos atraem,  mas  porque  nos atraem, nós as consideramos  belas  ou  boas"   [Artur Schopenhouer]

 

 "Enquanto você se  esforça  pra  ser um  sujeito  normal,  e fazer  tudo igual... Eu do meu

 lado  aprendendo  a  ser  louco,  um maluco  total,  na loucura real...”[Raul Seixas]

 

Há fenômenos que parecem corriqueiros e inofensivos à primeira vista, mas que com o passar do tempo vão incorporando representações sociais tão contraditórias, e permeadas de julgamento, que passam a falar muito mais sobre quem os analisa e julga, do que sobre aqueles que os vivenciam na concretude do cotidiano. O fenômeno Barbie e o fenômeno reborn, a nosso ver, podem ser considerados exemplos emblemáticos dessa flagrante ambiguidade - "incoerência" também não ficaria nada mal. A boneca Barbie foi, e em parte ainda continua sendo, um ícone midiático, símbolo de feminilidade idealizada, objeto de consumo, e protótipo de fantasia libertadora para diferentes gerações. Em outro extremo encontra-se a boneca reborn, um fenômeno bem mais recente, que de fascínio e glamour tem pouco ou nada, sobrevivendo muito mais como uma espécie de "refugiada" à sombra do preconceito e da ignorância de quem pouco ou quase nada conhece sobre a complexidade da problemática. Dois fenômenos diferentes, mas semelhantes em muitos aspectos, que propiciam uma discussão sem dúvida interessante e pertinente sobre a saúde mental e emocional não só de quem faz uso do reborn, mas antes, e sobretudo, da  nossa cultura e da nossa sociedade. Como muito bem observou Alex Careli, "aqueles que conservam a sua paz interior, em meio ao tumulto da vida moderna, estão imunizados contra doenças nervosas". Para certo número de pessoas, talvez esteja na hora de fazer uma visita ao seu orientador espiritual.

A boneca Barbie permaneceu "no topo", como objeto de consumo, por longo tempo, a partir de sua criação em 1959. Foi pensada e concebida principalmente para meninas, com o intuito de oferecer uma boneca que representasse uma mulher adulta, independente e de alta performance, com múltiplas profissões, estilos e possibilidades. Transformada em um ícone da cultura pop, começou a despertar o interesse de adolescentes, jovens e adultos, especialmente mulheres, muitos dos quais começaram a colecioná-la, com interesse voltado sobretudo para edições de luxo ou datas comemorativas. Como tudo que é transformado em fenômeno precisa passar pelo crivo da classe dos eruditos, rapidamente se tornou tema de estudos acadêmicos, dissertações, exposições de arte e moda, filmes, e outros espaços culturais. Hoje existem comunidades de colecionadores no mundo inteiro, com peças e exemplares que chegam a valer pequenas fortunas. Uma única Barbie, decorada com diamantes, foi arrematada por cerca de oitenta e cinco mil dólares, enquanto a coleção da alemã Bettina Dorfmann, com mais de dezoito mil Barbies, já foi avaliada em mais de trezentos mil, falando ainda em dólares.

Curiosamente, porém, a partir de um determinado momento a boneca passou a ser alvo de críticas, rejeição  e perseguição. Padrões irreais de beleza, excesso de superficialidade, ícone a serviço do consumismo, influência negativa sobre a autoestima de crianças e adolescentes - sobretudo aqueles das classes menos favorecidas - estavam entre as principais razões dessa autêntica "crucificação". O documentário “Barbie Nation: An Unauthorized Tour” - "Nação Barbie: um tour não autorizado" - não autorizado pela Mattel, produtora da boneca, evidentemente -  lançado em 1998, apresenta fãs em delírio, transgressões, performances, comentários críticos, e sobretudo protestos veementes por parte de feministas mais esclarecidas e conscientes. Entre os principais "desvios de personalidade", a boneca era acusada de representar um padrão de beleza único, de personificar um modelo de feminilidade artificial, de reforçar estereótipos de gênero, de ser símbolo de um patriarcado disfarçado de feminilidade glamourosa, e outros pecados não menos capitais.

Duas décadas e meia mais tarde, em 2023, o filme "Barbie" promove uma autocrítica da própria Mattel, multinacional norte-americana criadora da boneca. O curioso dessa crítica - lado mais pertinente à presente reflexão -  está no fato de que o filme passa a mensagem de que a boneca em si não deveria ser considerada nem e heroína nem vilã de sua própria história, mas sim, um reflexo de nossos dilemas e ambiguidades  culturais e sociais. Em outras palavras, Barbie não passaria de um objeto simbólico em busca de autenticidade, propósito, "humanidade" e legitimação, uma jornada emocional semelhante àquela empreendida pelo menino-androide David, no conto de Brian Aldiss, cujo principal objetivo era se tornar humano, esperando assim ser amado e "readotado" por sua mãe humana. O filme tece também uma crítica ao "empoderamento" de certos brinquedos e criações artificiais dotados de conteúdo simbólico, controverso e até mesmo subversivo. Historicamente , portanto, a representação social da boneca Barbie passou por uma expressiva transformação, no período que vai desde seu lançamento até os dias atuais. Hoje ela é menos uma fantasia idealizada e mais um convite ao debate e à discussão. Isso não significa que todos, gregos e troianos, tenham passado a apreciar e validar a "nova" Barbie, menos glamourizada e um tanto mais "humanizada"; tudo indica, na verdade, que o que realmente aconteceu foi um amadurecimento da crítica e um aprofundamento da discussão.

Na contramão do fenômeno Barbie, bonecas - e sobretudo bebês reborn - têm sido recebidos com inquietação, espanto, ridicularização, e até mesmo retaliação. A pergunta que nos parece pertinente é: por quais razões, guardadas e respeitadas as devidas proporções, fenômenos simbólicos extremamente semelhantes, sobretudo no tocante à capacidade de suscitar apego, cuidado e investimento emocional, são tratados de forma tão discrepante? Estaria no fato de que bonecas-bebês reborn remetem à intimidade, à maternidade simbólica, ao toque e à entrega afetiva, em um tempo e em uma sociedade que, vazia de afeto e resistente a vínculos profundos, ao presenciar cenas desse tipo se sinta de tal forma desconfortável, a ponto de categorizá-las como anormais e patológicas? Contribuiria também para isso o fato de que, enquanto a boneca Barbie aponta para um mundo exterior, repleto de possibilidades,  sucesso, status e realização, criações reborn, ao contrário, são espelhos do nosso mundo interior, refletindo nossas carências, nossos vazios, nossas memórias e nossas ausências? Quando uma mulher adquire uma boneca Barbie, e a seguir uma outra, e outra mais, e as expõe com orgulho em uma estante da sala ou do quarto, ou compartilha e exibe sua coleção, para muitos esse comportamento é considerado nostálgico, lúdico, afetuoso e até comovente. Mas quando essa mesma mulher adquire uma única boneca reborn, veste-a com delicadeza, embala no colo, conversa com ela e dela cuida com devoção, a reação muda drasticamente para espanto, piada, intolerância e incompreensão.

Um vínculo quando não compreendido, legitimado e validado, acaba se tornando sinônimo de estranhamento, perda de lucidez e maluquez, como escreveu e cantou Raul Seixas. Vivemos em uma sociedade que, estranhamente, começa a estranhar a própria afetividade. Que clama por contato, contanto que se possa permanecer no anonimato, que anseia pelo abraço, mas resiste ao vínculo percebido como ameaça, que se apaixona pela ficção mas entra em pânico ao ter que encarar a realidade. Queremos palco, seguidores, visualização, desde que nos seja permitido ocultar a dor, a perda, o desejo não realizado e a ternura que nos vem sendo sequestrada.

Diametralmente oposto ao que ocorre com o fenômeno Barbie, o fenômeno Reborn nos coloca diante de um estranho e curioso paradoxo: quanto mais uma mulher trata um bebê reborn com humanidade, mais "des"humana e "des"umanizada ela é considerada. O afeto e o cuidado direcionados para uma boneca suscita em nós incômodo, inquietação e perturbação, mesmo quando possa estar representando uma alternativa de reorganização mental e reequilíbrio emocional. Com frequência experimentamos receio, desconforto e esquiva diante daquilo que não sabemos nomear, daquilo que não conseguimos compreender, e daquilo do qual relutamos em nos aproximar. Talvez isso se deva ao fato de que, ao ser cuidado, o reborn escancare uma triste realidade: a de que, em se tratando de afeto, estamos tentando tapar o sol com a peneira, um buraco na parede com uma mão de cal, "costurar" vazios e buracos emocionais com agulhas enferrujadas de relações tóxicas e vínculos rasos. O celular é sem dúvida um bom exemplo disso. Decepcionados conosco mesmos por esse fracasso, apontamos o dedo em direção àqueles que insistem em continuar tentando, enquanto racionalizamos feito raposas: "as uvas estão verdes"; nem vale a pena tentar apanhá-las".

À guisa de conclusão: ao colocar frente a frente o fenômeno Barbie e o fenômeno Reborn, percebemos que não se trata apenas de bonecas ou brinquedos simbólicos e artificiais. Aquilo que deveria nos escandalizar não é a presença de uma Barbie nos braços de uma jovem, ou de uma boneca reborn no colo de uma "mãe", e sim nossa extrema dificuldade de compreensão para con ador e o sofrimento do outro. Se nos dispusermos a construir uma sociedade mais acolhedora e inclusiva, e menos seletiva e exclusivista, mais compreensiva com a imperfeição e o limite, e menos asséptica e perfeccionista, mais humana e menos robotizada, entenderemos melhor a mensagem dirigida pelo grande humanista Albert Einstein aos alunos e professores japoneses: "Se refletirem seriamente sobre isso, encontrarão um sentido para a vida e para seu progresso. E o julgamento que fizerem sobre outras pessoas, outros homens e outras épocas, será mais verdadeiro"

Precisamos urgentemente aprender a acolher todas as formas legítimas e válidas de expressão simbólica que não agridam, não violentem, nem interfiram de forma negativa na vida de outras pessoas. Precisamos suspender julgamentos precipitados e reavaliar os filtros com os quais interpretamos o que é normal e o que é patológico. Um adulto que se emociona diante de uma Barbie provavelmente esteja tentando resgatar a coragem de sonhar, de se reinventar, de não desistir da própria "estética" da vida. Uma mulher que embala um reborn, provavelmente está tentando se conectar com um afeto que a vida não lhe permitiu viver como gostaria, ou que por um direito legítimo de sua escolha decidiu que não viveria. Acolher essas experiências simbólicas - ainda que nem sempre as consigamos compreender inteiramente - é um exercício de maturidade tanto emocional quanto relacional. É abrir espaço para experiências mais plurais e mais inclusivas em prol de um autêntico "ecumenismo emocional".

Todos trazemos dentro de nós uma criança que clama por afeto, que gostaria de ser embalada, olhada com ternura, chamada pelo nome, e depois, simplesmente, ser deixada adormecer em paz. Se Barbie representa o mundo que queremos conquistar, o reborn representa o mundo que ainda não conseguimos curar.  Entre o glamour suscitado por uma boneca Barbie, e o cuidado despertado por um bebê reborn, talvez esteja guardada a parte mais nobre da nossa humana natureza: o encantamento pela vida. Como nos recorda Oliver W. Holmes, "não paramos de brincar porque envelhecemos, envelhecemos porque paramos de brincar".

                    L.S.M.: Junho

( * ) Texto enviado pelo  autor via whatsapp, de Vitória (ES).

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