XIII-
REFLETINDO
COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *)
"GLAMOURIZAÇÃO VERSUS ESPEZINHAÇÃO: UM COMPARATIVO ENTRE
O FENÔMENO BARBIE E O FENÔMENO REBORN"
"As coisas
não são boas ou
belas e por isso
nos atraem, mas porque
nos atraem, nós as consideramos
belas ou boas"
[Artur Schopenhouer]
"Enquanto você se esforça
pra ser um sujeito
normal, e fazer tudo igual... Eu do meu
lado
aprendendo a ser
louco, um maluco total,
na loucura real...”[Raul Seixas]
Há fenômenos que
parecem corriqueiros e inofensivos à primeira vista, mas que com o passar do
tempo vão incorporando representações sociais tão contraditórias, e permeadas
de julgamento, que passam a falar muito mais sobre quem os analisa e julga, do
que sobre aqueles que os vivenciam na concretude do cotidiano. O fenômeno
Barbie e o fenômeno reborn, a nosso ver, podem ser considerados exemplos
emblemáticos dessa flagrante ambiguidade - "incoerência" também não
ficaria nada mal. A boneca Barbie foi, e em parte ainda continua sendo, um
ícone midiático, símbolo de feminilidade idealizada, objeto de consumo, e
protótipo de fantasia libertadora para diferentes gerações. Em outro extremo
encontra-se a boneca reborn, um fenômeno bem mais recente, que de fascínio e
glamour tem pouco ou nada, sobrevivendo muito mais como uma espécie de "refugiada"
à sombra do preconceito e da ignorância de quem pouco ou quase nada conhece
sobre a complexidade da problemática. Dois fenômenos diferentes, mas
semelhantes em muitos aspectos, que propiciam uma discussão sem dúvida
interessante e pertinente sobre a saúde mental e emocional não só de quem faz
uso do reborn, mas antes, e sobretudo, da
nossa cultura e da nossa sociedade. Como muito bem observou Alex Careli,
"aqueles que conservam a sua paz interior, em meio ao tumulto da vida
moderna, estão imunizados contra doenças nervosas". Para certo número de
pessoas, talvez esteja na hora de fazer uma visita ao seu orientador
espiritual.
A boneca Barbie
permaneceu "no topo", como objeto de consumo, por longo tempo, a
partir de sua criação em 1959. Foi pensada e concebida principalmente para
meninas, com o intuito de oferecer uma boneca que representasse uma mulher
adulta, independente e de alta performance, com múltiplas profissões, estilos e
possibilidades. Transformada em um ícone da cultura pop, começou a despertar o
interesse de adolescentes, jovens e adultos, especialmente mulheres, muitos dos
quais começaram a colecioná-la, com interesse voltado sobretudo para edições de
luxo ou datas comemorativas. Como tudo que é transformado em fenômeno precisa
passar pelo crivo da classe dos eruditos, rapidamente se tornou tema de estudos
acadêmicos, dissertações, exposições de arte e moda, filmes, e outros espaços
culturais. Hoje existem comunidades de colecionadores no mundo inteiro, com
peças e exemplares que chegam a valer pequenas fortunas. Uma única Barbie,
decorada com diamantes, foi arrematada por cerca de oitenta e cinco mil
dólares, enquanto a coleção da alemã Bettina Dorfmann, com mais de dezoito mil
Barbies, já foi avaliada em mais de trezentos mil, falando ainda em dólares.
Curiosamente, porém,
a partir de um determinado momento a boneca passou a ser alvo de críticas,
rejeição e perseguição. Padrões irreais
de beleza, excesso de superficialidade, ícone a serviço do consumismo, influência
negativa sobre a autoestima de crianças e adolescentes - sobretudo aqueles das
classes menos favorecidas - estavam entre as principais razões dessa autêntica
"crucificação". O documentário “Barbie Nation: An Unauthorized Tour”
- "Nação Barbie: um tour não autorizado" - não autorizado pela
Mattel, produtora da boneca, evidentemente -
lançado em 1998, apresenta fãs em delírio, transgressões, performances,
comentários críticos, e sobretudo protestos veementes por parte de feministas
mais esclarecidas e conscientes. Entre os principais "desvios de
personalidade", a boneca era acusada de representar um padrão de beleza
único, de personificar um modelo de feminilidade artificial, de reforçar
estereótipos de gênero, de ser símbolo de um patriarcado disfarçado de
feminilidade glamourosa, e outros pecados não menos capitais.
Duas décadas e meia
mais tarde, em 2023, o filme "Barbie" promove uma autocrítica da
própria Mattel, multinacional norte-americana criadora da boneca. O curioso
dessa crítica - lado mais pertinente à presente reflexão - está no fato de que o filme passa a mensagem
de que a boneca em si não deveria ser considerada nem e heroína nem vilã de sua
própria história, mas sim, um reflexo de nossos dilemas e ambiguidades culturais e sociais. Em outras palavras,
Barbie não passaria de um objeto simbólico em busca de autenticidade,
propósito, "humanidade" e legitimação, uma jornada emocional
semelhante àquela empreendida pelo menino-androide David, no conto de Brian
Aldiss, cujo principal objetivo era se tornar humano, esperando assim ser amado
e "readotado" por sua mãe humana. O filme tece também uma crítica ao
"empoderamento" de certos brinquedos e criações artificiais dotados
de conteúdo simbólico, controverso e até mesmo subversivo. Historicamente ,
portanto, a representação social da boneca Barbie passou por uma expressiva
transformação, no período que vai desde seu lançamento até os dias atuais. Hoje
ela é menos uma fantasia idealizada e mais um convite ao debate e à discussão.
Isso não significa que todos, gregos e troianos, tenham passado a apreciar e
validar a "nova" Barbie, menos glamourizada e um tanto mais
"humanizada"; tudo indica, na verdade, que o que realmente aconteceu
foi um amadurecimento da crítica e um aprofundamento da discussão.
Na contramão do
fenômeno Barbie, bonecas - e sobretudo bebês reborn - têm sido recebidos com
inquietação, espanto, ridicularização, e até mesmo retaliação. A pergunta que
nos parece pertinente é: por quais razões, guardadas e respeitadas as devidas
proporções, fenômenos simbólicos extremamente semelhantes, sobretudo no tocante
à capacidade de suscitar apego, cuidado e investimento emocional, são tratados
de forma tão discrepante? Estaria no fato de que bonecas-bebês reborn remetem à
intimidade, à maternidade simbólica, ao toque e à entrega afetiva, em um tempo
e em uma sociedade que, vazia de afeto e resistente a vínculos profundos, ao
presenciar cenas desse tipo se sinta de tal forma desconfortável, a ponto de
categorizá-las como anormais e patológicas? Contribuiria também para isso o fato
de que, enquanto a boneca Barbie aponta para um mundo exterior, repleto de
possibilidades, sucesso, status e
realização, criações reborn, ao contrário, são espelhos do nosso mundo
interior, refletindo nossas carências, nossos vazios, nossas memórias e nossas
ausências? Quando uma mulher adquire uma boneca Barbie, e a seguir uma outra, e
outra mais, e as expõe com orgulho em uma estante da sala ou do quarto, ou
compartilha e exibe sua coleção, para muitos esse comportamento é considerado
nostálgico, lúdico, afetuoso e até comovente. Mas quando essa mesma mulher
adquire uma única boneca reborn, veste-a com delicadeza, embala no colo,
conversa com ela e dela cuida com devoção, a reação muda drasticamente para
espanto, piada, intolerância e incompreensão.
Um vínculo quando não
compreendido, legitimado e validado, acaba se tornando sinônimo de
estranhamento, perda de lucidez e maluquez, como escreveu e cantou Raul Seixas.
Vivemos em uma sociedade que, estranhamente, começa a estranhar a própria
afetividade. Que clama por contato, contanto que se possa permanecer no
anonimato, que anseia pelo abraço, mas resiste ao vínculo percebido como
ameaça, que se apaixona pela ficção mas entra em pânico ao ter que encarar a
realidade. Queremos palco, seguidores, visualização, desde que nos seja
permitido ocultar a dor, a perda, o desejo não realizado e a ternura que nos
vem sendo sequestrada.
Diametralmente oposto
ao que ocorre com o fenômeno Barbie, o fenômeno Reborn nos coloca diante de um
estranho e curioso paradoxo: quanto mais uma mulher trata um bebê reborn com
humanidade, mais "des"humana e "des"umanizada ela é
considerada. O afeto e o cuidado direcionados para uma boneca suscita em nós
incômodo, inquietação e perturbação, mesmo quando possa estar representando uma
alternativa de reorganização mental e reequilíbrio emocional. Com frequência
experimentamos receio, desconforto e esquiva diante daquilo que não sabemos
nomear, daquilo que não conseguimos compreender, e daquilo do qual relutamos em
nos aproximar. Talvez isso se deva ao fato de que, ao ser cuidado, o reborn
escancare uma triste realidade: a de que, em se tratando de afeto, estamos
tentando tapar o sol com a peneira, um buraco na parede com uma mão de cal,
"costurar" vazios e buracos emocionais com agulhas enferrujadas de
relações tóxicas e vínculos rasos. O celular é sem dúvida um bom exemplo disso.
Decepcionados conosco mesmos por esse fracasso, apontamos o dedo em direção
àqueles que insistem em continuar tentando, enquanto racionalizamos feito
raposas: "as uvas estão verdes"; nem vale a pena tentar
apanhá-las".
À guisa de conclusão:
ao colocar frente a frente o fenômeno Barbie e o fenômeno Reborn, percebemos
que não se trata apenas de bonecas ou brinquedos simbólicos e artificiais.
Aquilo que deveria nos escandalizar não é a presença de uma Barbie nos braços
de uma jovem, ou de uma boneca reborn no colo de uma "mãe", e sim
nossa extrema dificuldade de compreensão para con ador e o sofrimento do outro.
Se nos dispusermos a construir uma sociedade mais acolhedora e inclusiva, e
menos seletiva e exclusivista, mais compreensiva com a imperfeição e o limite,
e menos asséptica e perfeccionista, mais humana e menos robotizada,
entenderemos melhor a mensagem dirigida pelo grande humanista Albert Einstein
aos alunos e professores japoneses: "Se refletirem seriamente sobre isso,
encontrarão um sentido para a vida e para seu progresso. E o julgamento que
fizerem sobre outras pessoas, outros homens e outras épocas, será mais
verdadeiro"
Precisamos
urgentemente aprender a acolher todas as formas legítimas e válidas de
expressão simbólica que não agridam, não violentem, nem interfiram de forma
negativa na vida de outras pessoas. Precisamos suspender julgamentos
precipitados e reavaliar os filtros com os quais interpretamos o que é normal e
o que é patológico. Um adulto que se emociona diante de uma Barbie
provavelmente esteja tentando resgatar a coragem de sonhar, de se reinventar,
de não desistir da própria "estética" da vida. Uma mulher que embala
um reborn, provavelmente está tentando se conectar com um afeto que a vida não
lhe permitiu viver como gostaria, ou que por um direito legítimo de sua escolha
decidiu que não viveria. Acolher essas experiências simbólicas - ainda que nem
sempre as consigamos compreender inteiramente - é um exercício de maturidade
tanto emocional quanto relacional. É abrir espaço para experiências mais
plurais e mais inclusivas em prol de um autêntico "ecumenismo
emocional".
Todos trazemos dentro
de nós uma criança que clama por afeto, que gostaria de ser embalada, olhada
com ternura, chamada pelo nome, e depois, simplesmente, ser deixada adormecer
em paz. Se Barbie representa o mundo que queremos conquistar, o reborn
representa o mundo que ainda não conseguimos curar. Entre o glamour suscitado por uma boneca
Barbie, e o cuidado despertado por um bebê reborn, talvez esteja guardada a
parte mais nobre da nossa humana natureza: o encantamento pela vida. Como nos
recorda Oliver W. Holmes, "não paramos de brincar porque envelhecemos,
envelhecemos porque paramos de brincar".
L.S.M.: Junho
( * ) Texto enviado
pelo autor via whatsapp, de Vitória
(ES).
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