sexta-feira, 6 de junho de 2025

XIV- REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *) "AMOR E PAIXÃO DIRECIONANDO NOSSAS VIDAS: POR QUE NEM SEMPRE DEVEMOS OUVIR A VOZ DO NOSSO CORAÇÃO?"

 

 

XIV-      REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *)

 

"AMOR E PAIXÃO DIRECIONANDO NOSSAS VIDAS: POR QUE NEM SEMPRE DEVEMOS OUVIR A VOZ DO NOSSO CORAÇÃO?"

            "Estou amando loucamente, a namoradinha  de  um amigo  meu.  Sei  que estou errado,  mas  nem  mesmo  sei  como isso  aconteceu..."

               [Erasmo Carlos e Roberto Carlos]

 

Amar loucamente a namorada de um amigo, em princípio não deveria ser considerado um comportamento reprovável ou errado, como sugeriram e cantaram dois dos maiores expoentes da saudosa "Jovem Guarda", Erasmo e Roberto Carlos. O fato de a princesa, filha do rei, já estar "comprometida", nos vários sentidos que essa palavra possa comportar, de nenhum modo inabilita o interesse de outros pretendentes "à jóia da coroa". Agora, se o monarca concorda ou não com isso, essa já é outra história. Os fatos atestam que ao longo dos tempos muitas cabeças rolaram, tornando manifesta essa discordância, o que  provavelmente acabou dando origem - lançando mão da chamada "licença poética" - ao conhecido ditado: "por um belo traseiro, a gente até perde a cabeça". Retornando ao que interessa, e procurando esclarecer melhor: do ponto de vista da ética psicológica, não há razão alguma para que o desejo, a vontade ou o interesse sejam interditados, mesmo quando direcionados para alguém já comprometido. Dir-se-á que a ciência psicológica não é a mais idônea para definir padrões e critérios éticos. Tudo bem. Ainda assim, pelo não e pelo sim, ignorar seu entendimento a respeito não parece uma atitude muito sensata. Até porque, "a priori", não existe uma lista de hierarquia de competências definindo com clareza a qual das ciências humanas cabe essa responsabilidade ou compete essa função, excetuando-se, claro, a própria Ética. À Filosofia há de se conceder um "à parte", tendo em vista que ela sempre se intitulou como a "ciência-mãe" de todas as demais ciências, mesmo cônscia de que sobre toda "auto-intitulação" paira sempre uma grave suspeita. Acresce-se a isso o fato de que, sob responsabilidade da Ética, estão apenas os fundamentos, os valores e os princípios de natureza mais universal, e não as leis, regras e normas mais específicas, que acabam ficando sob os cuidados e o domínio da Moral. Respeitados, portanto, os princípios éticos, a cada ciência, incluindo, claro, a Psicologia, é reconhecido certo grau de liberdade e de autonomia para definir suas próprias leis, regras e normas. De mais a mais, sabemos que nem sempre a regra ou a norma definida como válida e adequada por uma ciência, é assumida e validada por uma outra. Certas ciências podem operar com um "minimum ethicum", enquanto outras com um "maximum". Hans Kelsen diria que o Direito opera com nenhuma ética; daí sua polêmica Teoria Pura do Direito. Portanto, ao afirmarem que "amar loucamente" a namoradinha de um amigo é errado, Erasmo e Roberto podem estar absolutamente certos. No que concerne à presente reflexão, entretanto, a pública confissão desse erro interessa-nos não tanto pela sua conotação moral, e sim pela sua extensão psicológica acompanhada de suas eventuais consequências. Nesse sentido, talvez valha a pena recorrer a um novo parágrafo.

"Amar loucamente": se a representação social que se tem da "paixão", pode ser resumida nessa expressão, fica claro, sobretudo para o assim chamado senso comum, que amor e paixão não se distinguem senão pela intensidade; ou seja, são afetos ou sentimentos de uma única e mesma natureza. Ao nosso ver, entretanto, essa crença é errônea e completamente equivocada. O mais lamentável é saber que, de forma mais ou menos implícita e subliminar, ela tem servido de base de sustentação não só para o idealismo romântico, que enaltece e por vezes endeusa a paixão trágica, como também para a "crendice" popular, para quem a loucura passional - estar perdidamente apaixonado não significa senão isso, loucura passional - seria a maior prova de amor que alguém possa oferecer a outro alguém. Esta segunda parte da nossa reflexão procura identificar as principais características do amor, por um lado, e da paixão, por outro, esperando contribuir para que assim você possa distinguir com suficiente clareza as diferenças por vezes gritantes que impossibilitam lidar com esses dois afetos ou sentimentos como sendo de uma mesma e única natureza, diferenciados apenas pela intensidade. Isso porém não basta: o mais importante é compreender que se há um desses afetos que deva ser enaltecido ou exaltado, este com certeza é o amor. São Paulo compreendeu muito bem isso, e o expressou com maestria e rara beleza em uma de suas principais cartas, a Primeira aos Coríntios. Com a paixão, ao contrário, o que se precisa ter mesmo é prudência e cuidado. E se no seu caso ela já está beirando as raias da loucura, esse cuidado precisa ser redobrado ou mesmo triplicado; o próximo passo poderá ser o da perdição. Vejamos, portanto, as diferenças fundamentais esses dois afetos ou sentimentos. A ordem apontada, como não poderia deixar de ser, é um tanto aleatória e arbitrária. Fique à vontade para proceder às alterações ou inversões que julgar conveniente.

Uma primeira diferença fundamental entre amor e paixão está no fato de que a paixão tem o foco centrado no "eu" e no "ego", enquanto o amor tem o foco centrado no "nós" e no "outro". Assim, por exemplo, quando alguém declara em tom de aparente elogio e exaltação: "você é toda a minha vida!", expressão típica de pessoas que se dizem apaixonadas, é o eu - "minha vida" - e não o outro - "você" - que está ocupando o centro dessa exuberante declaração de amor; corrigindo, dessa exuberante declaração de paixão. O "ego", e não o "alter', continua sendo o ator principal a ocupar a cena; o "alter", ou o outro, não passa de um mero coadjuvante. Uma é a mensagem explícita, manifesta, bem outra é a mensagem  implícita ou latente. O que você está ouvindo é apenas e tão somente aquilo que você "gostaria de ouvir", e não de fato o que o outro quer e tem a lhe comunicar. Esta é uma das razões da célebre advertência de Freud, de que o terapeuta deve estar atento não tanto ao discurso explícito e manifesto do cliente, mas ao seu discurso implícito e latente. No caso da mencionada declaração, como tanto o ego de quem recebe quanto o de quem a profere se sentem "massageados" e  inflamados, têm-se ao fim e ao cabo dois egos profundamente gratificados; você acaba de ser literalmente "fisgado". O amor autêntico, por outro lado, se recusa a ser esse objeto capaz de preencher ou satisfazer totalmente a vida de quem quer que seja - ninguém nasce para isso - bem como não espera e muito menos exige que o outro arque com tamanho compromisso ou obrigação. Vínculos alicerçados na necessidade só se justificam quando dizem respeito a coisas e objetos; jamais a pessoas e seres humanos, pressupondo-se, claro, que se esteja amparado por um regime de liberdade e de igualdade de direitos. Se não for esse o caso, estamos falando de opressão e "escravização". Portanto, quando ouvir essa expressão - "você é toda a minha vida!" - ou algo equivalente, claro, melhor ligar rapidamente o sinal de alerta; você poderá estar prestes a ser apanhado - o processo de escravização vem depois - numa delicada arapuca, construída com sutis palavras, muita lábia, e uma forte dose de paixão.

Uma segunda diferença fundamental entre amor e paixão diz respeito aos diferentes "mundos" habitados por pessoas que amam de fato, e pessoas que se dizem perdidamente apaixonadas por alguém. Enquanto mundo físico, compartilha-se, claro, o mesmo planeta, o mesmo território e o mesmo chão; tudo muda drasticamente de figura quando se trata do "mundo" mental e afetivo-emocional. Aqui a paixão se transforma numa autêntica "droga", em razão da altíssima dependência que ela costuma provocar naqueles que ela arrasta consigo. Enquanto pessoas que simplesmente amam, sem se deixarem ser arrastadas pelas pelo fogo - entenda-se "malhas" - da paixão, vivem a maior parte do tempo no chamado "mundo real", lá vez por outra visitando o mundo da fantasia e da imaginação, pessoas governadas pela  paixão, ao contrário, vivem praticamente o tempo todo no mundo do "faz de conta", e apenas vez por outra - e a contra-gosto - se dispõem a visitar o mundo real a fim de "pagar as contas", que por vezes não são poucas e são de causar espanto. Nessa hora se compreende bem que aquela estratégica e oportunista cena de "bajulação" camuflada de amor - "você é toda a minha vida!" - pouco ou nada tinha de romântico e menos ainda de metafórico. Exatamente por isso, quem vive de paixão vive desesperadamente temeroso e ansioso com a possibilidade do término da relação. O raciocínio é simples e ao mesmo tempo doentio: "ruim com ele/a - o "con"sorte - pior sem ele/a - a "má"sorte. Quem ama, claro, também pode não desejar o fim do relacionamento; mas tampouco o teme ou perde noites de sono pensando no assunto. A paixão que conhece o fim tende a ficar sem tapete e sem chão; o amor autêntico e verdadeiro, "se" e mesmo quando colocado na mesmíssima situação, não provoca e tampouco permite a desintegração; nem de si mesmo e nem do outro. Se você não dorme direito, excessivamente preocupado com o término do seu relacionamento, provavelmente não está amando de verdade; pode estar apenas desesperadamente - o que equivale a dizer, "doentiamente" - apaixonado.

Uma terceira diferença fundamental entre esses dois afetos, amor e paixão, diz respeito, claro, à intensidade dos mesmos. A propósito, uma pergunta - fique à vontade para incluir seu atual vinculo, se for o caso: quando foi a última vez em que você se apaixonou? Surpreendeu-se com a pergunta, respondendo que não se lembra, ou quem sabe esboçando um sorriso maroto e continuando a consultar a memória? Se sim, não se decepcione e muito menos se desespere. Nos vínculos amorosos que conseguem ultrapassar entre cinco e dez anos aproximadamente, mantendo um razoável grau de qualidade, pode-se presumir, com altíssimo grau de probabilidade, que a paixão há muito cedeu seu lugar ao amor. Relacionamentos e vínculos amorosos costumam ter início quase sempre impulsionados por paixão intensa, que muito rapidamente se transforma em amor romântico, para finalmente se transformar em um amor pouco ou nada romântico, porém estável, sereno e equilibrado. Isso porque, de acordo com Lou Marinoff,  "...dividir a vida com alguém não é, de modo algum, a mesma coisa que as fantasias tecidas por contos de fadas e filmes românticos. Mesmo um casal que combine muitíssimo bem, não vive simplesmente feliz para sempre, ainda que os dois se esforcem. [...]. É inevitável que mais cedo ou mais tarde a realidade e a banalidade da vida acabem se intrometendo, e é preciso administrar muitos problemas para que o amor dure...". Veja que Marinoff não diz "para que a paixão perdure", e sim para que o amor dure. Se perdurar o amor, já  é difícil, imagine-se então a paixão. Portanto não há absolutamente nada de anormal se o seu relacionamento pouco ou nada se assemelha a uma paixão intensa e ardente, tipo alta tensão, como provavelmente deve ter sido aquela que os levou ao início do relacionamento. A rigor, é muito provável que a grande maioria das pessoas não se casem "por amor", como geralmente se pressupõe e se afirma, e sim por paixão. Na verdade, muitos sequer sabem exatamente o que significa esse tipo específico de amor; são necessários anos, muita estrada percorrida, e muita poeira engolida, para que se possa vir a sabê-lo. Sem nos esquecer que um considerável número de pessoas não se casam nem por uma coisa nem por outra. Mas esses merecem uma reflexão à parte. São vínculos que não unem pessoas, e sim, status, fama, contas bancárias, famílias, interesses, e sabe-se lá Deus o que mais; tudo, claro, sob o manto "sagrado" da paixão. É verdade que em tempos líquidos como o que estamos vivendo, tampouco o amor é garantia de um vínculo duradouro e permanente; a diferença em relação à paixão é que ela nunca foi e nunca será.

Finalmente, para não alongar demais a nossa lista, uma quarta e última diferença fundamental entre amor e paixão diz respeito à possessividade. Obviamente não há como falar de possessividade sem encarar esse sentimento tão ambíguo e contraditório, chamado "ciúme". Não é raro que sentimentos humanos opostos compartilhem uma mesma - e às vezes, única - raíz etimológica. Esse é o caso da palavra "ciúme", sentimento que ora é associado ao amor verdadeiro e genuíno, ora à paixão doentia e descontrolada. "A diferença entre remédio e veneno, já afirmavam os antigos gregos, pode estar tanto na dosagem quanto na modalidade da aplicação. Esse princípio se aplica perfeitamente ao presente caso. No grego antigo, "zêlos" - "ciúme" em português - possuía uma conotação ambígua: podia significar tanto "zelo, entusiasmo e cuidado por um objeto ou uma pessoa, quanto "ciúme", raiva ou o ressentimento por ver esse mesmo objeto ou pessoa em mãos ou sob a mira do interesse de um outro. Tanto "zêlos" em grego, como posteriormente "zelus" em latim, e finalmente "ciúme" em português, têm como raiz o verbo grego "zéō", que significa literalmente "ferver", "entrar em ebulição", "arder", o que sem dúvida pode ser considerado uma  metáfora muito adequada para sentimentos intensos como  entusiasmo, desejo, ciúme, e por extensão, claro, a paixão. A "intensidade", torna-se aqui determinante para distinguir o ciúme saudável e desejável de quem ama, e por isso cuida, do ciúme doentio e repulsivo da paixão, que não ama senão a si mesma e por isso insiste em controlar e possuir o outro. A linha fronteiriça pode ser tênue, nem sempre perceptível no curto prazo, mas com o tempo as consequências e os resultados vão se tornando cada vez mais visíveis e detectáveis.

Termino apontando um "decálogo" de características fundamentais do amor e da paixão, mais próximas dos tempos tecnológicos que estamos vivendo. Reflita com calma, e avalie se seu vínculo amoroso atual está mais para amor maduro ou paixão doentia.

O amor oferece asas emocionais, a paixão coloca tornozeleiras eletrônicas.

O amor não vê problemas em compartilhar senhas, a paixão controla via GPS.

O amor aguarda tranquilamente no sofá ou na cama, a paixão espera ansiosa à porta.

O amor estende o braço, a paixão puxa pelo braço, por pouco não arrancando a mão.

O amor é panela de barro, fogo lento, a paixão é tipo miojo, fervura em três minutos.

O amor trata os defeitos com  humor e leveza, a paixão os coloca no débito em conta.

O amor é seriado de longo prazo, a paixão é novela de curta, curtíssima duração.

O amor é laço que aproxima, a paixão é nó que acorrenta.

O amor é livro aberto, a paixão é diário trancado à chave.

O amor é refúgio duradouro, a paixão é abrigo temporário.

Computou seus dados? Ok. Caso não tenha ficado satisfeito com o resultado, aí vai um consolo: amor e paixão não são sempre e necessariamente dois opostos que se excluem mutuamente, mas dois afetos que podem e devem se harmonizar mutuamente. Sem boa dose de paixão o amor se transforma em frio intenso, congelante, paralisante; sem associar-se ao amor a paixão permanece calor intenso, fogo que arde, labareda que consome. O equilíbrio na "dosagem" - lembra-se? - é o grande segredo, a chave de ouro. Parafraseando Einstein, "a paixão sem o amor é cega, o amor sem a paixão é paralítico". Concluindo com uma lição da experiência: sacrificar um amor fiel, ainda que rarefeito de paixão, por uma grande paixão rarefeita de amor, tem se mostrado mais perigoso e arriscado que sacrificar uma grande paixão rarefeita de amor, por um amor fiel, ainda que rarefeito de paixão. A escolha é sua.”

                    [L.S.M.: Maio de 2025]

(* ) Texto enviado por whatsapp, de Vitória (ES).

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