XIV-
REFLETINDO
COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *)
"AMOR E PAIXÃO DIRECIONANDO NOSSAS
VIDAS: POR QUE NEM SEMPRE DEVEMOS OUVIR A VOZ DO NOSSO CORAÇÃO?"
"Estou amando loucamente, a
namoradinha de um amigo
meu. Sei que estou errado, mas
nem mesmo sei
como isso aconteceu..."
[Erasmo Carlos e Roberto Carlos]
Amar loucamente a
namorada de um amigo, em princípio não deveria ser considerado um comportamento
reprovável ou errado, como sugeriram e cantaram dois dos maiores expoentes da
saudosa "Jovem Guarda", Erasmo e Roberto Carlos. O fato de a
princesa, filha do rei, já estar "comprometida", nos vários sentidos
que essa palavra possa comportar, de nenhum modo inabilita o interesse de
outros pretendentes "à jóia da coroa". Agora, se o monarca concorda
ou não com isso, essa já é outra história. Os fatos atestam que ao longo dos
tempos muitas cabeças rolaram, tornando manifesta essa discordância, o que provavelmente acabou dando origem - lançando
mão da chamada "licença poética" - ao conhecido ditado: "por um
belo traseiro, a gente até perde a cabeça". Retornando ao que interessa, e
procurando esclarecer melhor: do ponto de vista da ética psicológica, não há
razão alguma para que o desejo, a vontade ou o interesse sejam interditados,
mesmo quando direcionados para alguém já comprometido. Dir-se-á que a ciência
psicológica não é a mais idônea para definir padrões e critérios éticos. Tudo
bem. Ainda assim, pelo não e pelo sim, ignorar seu entendimento a respeito não parece
uma atitude muito sensata. Até porque, "a priori", não existe uma
lista de hierarquia de competências definindo com clareza a qual das ciências
humanas cabe essa responsabilidade ou compete essa função, excetuando-se,
claro, a própria Ética. À Filosofia há de se conceder um "à parte",
tendo em vista que ela sempre se intitulou como a "ciência-mãe" de
todas as demais ciências, mesmo cônscia de que sobre toda
"auto-intitulação" paira sempre uma grave suspeita. Acresce-se a isso
o fato de que, sob responsabilidade da Ética, estão apenas os fundamentos, os
valores e os princípios de natureza mais universal, e não as leis, regras e
normas mais específicas, que acabam ficando sob os cuidados e o domínio da
Moral. Respeitados, portanto, os princípios éticos, a cada ciência, incluindo,
claro, a Psicologia, é reconhecido certo grau de liberdade e de autonomia para
definir suas próprias leis, regras e normas. De mais a mais, sabemos que nem
sempre a regra ou a norma definida como válida e adequada por uma ciência, é
assumida e validada por uma outra. Certas ciências podem operar com um
"minimum ethicum", enquanto outras com um "maximum". Hans
Kelsen diria que o Direito opera com nenhuma ética; daí sua polêmica Teoria
Pura do Direito. Portanto, ao afirmarem que "amar loucamente" a
namoradinha de um amigo é errado, Erasmo e Roberto podem estar absolutamente
certos. No que concerne à presente reflexão, entretanto, a pública confissão
desse erro interessa-nos não tanto pela sua conotação moral, e sim pela sua extensão
psicológica acompanhada de suas eventuais consequências. Nesse sentido, talvez
valha a pena recorrer a um novo parágrafo.
"Amar
loucamente": se a representação social que se tem da "paixão",
pode ser resumida nessa expressão, fica claro, sobretudo para o assim chamado
senso comum, que amor e paixão não se distinguem senão pela intensidade; ou
seja, são afetos ou sentimentos de uma única e mesma natureza. Ao nosso ver,
entretanto, essa crença é errônea e completamente equivocada. O mais lamentável
é saber que, de forma mais ou menos implícita e subliminar, ela tem servido de
base de sustentação não só para o idealismo romântico, que enaltece e por vezes
endeusa a paixão trágica, como também para a "crendice" popular, para
quem a loucura passional - estar perdidamente apaixonado não significa senão
isso, loucura passional - seria a maior prova de amor que alguém possa oferecer
a outro alguém. Esta segunda parte da nossa reflexão procura identificar as
principais características do amor, por um lado, e da paixão, por outro,
esperando contribuir para que assim você possa distinguir com suficiente
clareza as diferenças por vezes gritantes que impossibilitam lidar com esses
dois afetos ou sentimentos como sendo de uma mesma e única natureza,
diferenciados apenas pela intensidade. Isso porém não basta: o mais importante
é compreender que se há um desses afetos que deva ser enaltecido ou exaltado,
este com certeza é o amor. São Paulo compreendeu muito bem isso, e o expressou
com maestria e rara beleza em uma de suas principais cartas, a Primeira aos
Coríntios. Com a paixão, ao contrário, o que se precisa ter mesmo é prudência e
cuidado. E se no seu caso ela já está beirando as raias da loucura, esse
cuidado precisa ser redobrado ou mesmo triplicado; o próximo passo poderá ser o
da perdição. Vejamos, portanto, as diferenças fundamentais esses dois afetos ou
sentimentos. A ordem apontada, como não poderia deixar de ser, é um tanto
aleatória e arbitrária. Fique à vontade para proceder às alterações ou
inversões que julgar conveniente.
Uma primeira diferença
fundamental entre amor e paixão está no fato de que a paixão tem o foco
centrado no "eu" e no "ego", enquanto o amor tem o foco
centrado no "nós" e no "outro". Assim, por exemplo, quando
alguém declara em tom de aparente elogio e exaltação: "você é toda a minha
vida!", expressão típica de pessoas que se dizem apaixonadas, é o eu -
"minha vida" - e não o outro - "você" - que está ocupando o
centro dessa exuberante declaração de amor; corrigindo, dessa exuberante
declaração de paixão. O "ego", e não o "alter', continua sendo o
ator principal a ocupar a cena; o "alter", ou o outro, não passa de
um mero coadjuvante. Uma é a mensagem explícita, manifesta, bem outra é a
mensagem implícita ou latente. O que
você está ouvindo é apenas e tão somente aquilo que você "gostaria de
ouvir", e não de fato o que o outro quer e tem a lhe comunicar. Esta é uma
das razões da célebre advertência de Freud, de que o terapeuta deve estar
atento não tanto ao discurso explícito e manifesto do cliente, mas ao seu
discurso implícito e latente. No caso da mencionada declaração, como tanto o
ego de quem recebe quanto o de quem a profere se sentem "massageados"
e inflamados, têm-se ao fim e ao cabo
dois egos profundamente gratificados; você acaba de ser literalmente
"fisgado". O amor autêntico, por outro lado, se recusa a ser esse
objeto capaz de preencher ou satisfazer totalmente a vida de quem quer que seja
- ninguém nasce para isso - bem como não espera e muito menos exige que o outro
arque com tamanho compromisso ou obrigação. Vínculos alicerçados na necessidade
só se justificam quando dizem respeito a coisas e objetos; jamais a pessoas e
seres humanos, pressupondo-se, claro, que se esteja amparado por um regime de
liberdade e de igualdade de direitos. Se não for esse o caso, estamos falando
de opressão e "escravização". Portanto, quando ouvir essa expressão -
"você é toda a minha vida!" - ou algo equivalente, claro, melhor
ligar rapidamente o sinal de alerta; você poderá estar prestes a ser apanhado -
o processo de escravização vem depois - numa delicada arapuca, construída com
sutis palavras, muita lábia, e uma forte dose de paixão.
Uma segunda diferença
fundamental entre amor e paixão diz respeito aos diferentes "mundos"
habitados por pessoas que amam de fato, e pessoas que se dizem perdidamente
apaixonadas por alguém. Enquanto mundo físico, compartilha-se, claro, o mesmo
planeta, o mesmo território e o mesmo chão; tudo muda drasticamente de figura
quando se trata do "mundo" mental e afetivo-emocional. Aqui a paixão
se transforma numa autêntica "droga", em razão da altíssima
dependência que ela costuma provocar naqueles que ela arrasta consigo. Enquanto
pessoas que simplesmente amam, sem se deixarem ser arrastadas pelas pelo fogo -
entenda-se "malhas" - da paixão, vivem a maior parte do tempo no
chamado "mundo real", lá vez por outra visitando o mundo da fantasia
e da imaginação, pessoas governadas pela
paixão, ao contrário, vivem praticamente o tempo todo no mundo do
"faz de conta", e apenas vez por outra - e a contra-gosto - se
dispõem a visitar o mundo real a fim de "pagar as contas", que por
vezes não são poucas e são de causar espanto. Nessa hora se compreende bem que
aquela estratégica e oportunista cena de "bajulação" camuflada de
amor - "você é toda a minha vida!" - pouco ou nada tinha de romântico
e menos ainda de metafórico. Exatamente por isso, quem vive de paixão vive
desesperadamente temeroso e ansioso com a possibilidade do término da relação.
O raciocínio é simples e ao mesmo tempo doentio: "ruim com ele/a - o
"con"sorte - pior sem ele/a - a "má"sorte. Quem ama, claro,
também pode não desejar o fim do relacionamento; mas tampouco o teme ou perde
noites de sono pensando no assunto. A paixão que conhece o fim tende a ficar
sem tapete e sem chão; o amor autêntico e verdadeiro, "se" e mesmo
quando colocado na mesmíssima situação, não provoca e tampouco permite a
desintegração; nem de si mesmo e nem do outro. Se você não dorme direito,
excessivamente preocupado com o término do seu relacionamento, provavelmente
não está amando de verdade; pode estar apenas desesperadamente - o que equivale
a dizer, "doentiamente" - apaixonado.
Uma terceira diferença
fundamental entre esses dois afetos, amor e paixão, diz respeito, claro, à
intensidade dos mesmos. A propósito, uma pergunta - fique à vontade para
incluir seu atual vinculo, se for o caso: quando foi a última vez em que você
se apaixonou? Surpreendeu-se com a pergunta, respondendo que não se lembra, ou
quem sabe esboçando um sorriso maroto e continuando a consultar a memória? Se
sim, não se decepcione e muito menos se desespere. Nos vínculos amorosos que
conseguem ultrapassar entre cinco e dez anos aproximadamente, mantendo um
razoável grau de qualidade, pode-se presumir, com altíssimo grau de probabilidade,
que a paixão há muito cedeu seu lugar ao amor. Relacionamentos e vínculos
amorosos costumam ter início quase sempre impulsionados por paixão intensa, que
muito rapidamente se transforma em amor romântico, para finalmente se
transformar em um amor pouco ou nada romântico, porém estável, sereno e
equilibrado. Isso porque, de acordo com Lou Marinoff, "...dividir a vida com alguém não é, de
modo algum, a mesma coisa que as fantasias tecidas por contos de fadas e filmes
românticos. Mesmo um casal que combine muitíssimo bem, não vive simplesmente
feliz para sempre, ainda que os dois se esforcem. [...]. É inevitável que mais
cedo ou mais tarde a realidade e a banalidade da vida acabem se intrometendo, e
é preciso administrar muitos problemas para que o amor dure...". Veja que
Marinoff não diz "para que a paixão perdure", e sim para que o amor
dure. Se perdurar o amor, já é difícil,
imagine-se então a paixão. Portanto não há absolutamente nada de anormal se o
seu relacionamento pouco ou nada se assemelha a uma paixão intensa e ardente,
tipo alta tensão, como provavelmente deve ter sido aquela que os levou ao
início do relacionamento. A rigor, é muito provável que a grande maioria das
pessoas não se casem "por amor", como geralmente se pressupõe e se
afirma, e sim por paixão. Na verdade, muitos sequer sabem exatamente o que
significa esse tipo específico de amor; são necessários anos, muita estrada
percorrida, e muita poeira engolida, para que se possa vir a sabê-lo. Sem nos
esquecer que um considerável número de pessoas não se casam nem por uma coisa
nem por outra. Mas esses merecem uma reflexão à parte. São vínculos que não
unem pessoas, e sim, status, fama, contas bancárias, famílias, interesses, e
sabe-se lá Deus o que mais; tudo, claro, sob o manto "sagrado" da
paixão. É verdade que em tempos líquidos como o que estamos vivendo, tampouco o
amor é garantia de um vínculo duradouro e permanente; a diferença em relação à
paixão é que ela nunca foi e nunca será.
Finalmente, para não
alongar demais a nossa lista, uma quarta e última diferença fundamental entre
amor e paixão diz respeito à possessividade. Obviamente não há como falar de
possessividade sem encarar esse sentimento tão ambíguo e contraditório, chamado
"ciúme". Não é raro que sentimentos humanos opostos compartilhem uma
mesma - e às vezes, única - raíz etimológica. Esse é o caso da palavra
"ciúme", sentimento que ora é associado ao amor verdadeiro e genuíno,
ora à paixão doentia e descontrolada. "A diferença entre remédio e veneno,
já afirmavam os antigos gregos, pode estar tanto na dosagem quanto na
modalidade da aplicação. Esse princípio se aplica perfeitamente ao presente
caso. No grego antigo, "zêlos" - "ciúme" em português -
possuía uma conotação ambígua: podia significar tanto "zelo, entusiasmo e
cuidado por um objeto ou uma pessoa, quanto "ciúme", raiva ou o
ressentimento por ver esse mesmo objeto ou pessoa em mãos ou sob a mira do
interesse de um outro. Tanto "zêlos" em grego, como posteriormente
"zelus" em latim, e finalmente "ciúme" em português, têm
como raiz o verbo grego "zéō", que significa literalmente
"ferver", "entrar em ebulição", "arder", o que
sem dúvida pode ser considerado uma
metáfora muito adequada para sentimentos intensos como entusiasmo, desejo, ciúme, e por extensão,
claro, a paixão. A "intensidade", torna-se aqui determinante para
distinguir o ciúme saudável e desejável de quem ama, e por isso cuida, do ciúme
doentio e repulsivo da paixão, que não ama senão a si mesma e por isso insiste
em controlar e possuir o outro. A linha fronteiriça pode ser tênue, nem sempre
perceptível no curto prazo, mas com o tempo as consequências e os resultados
vão se tornando cada vez mais visíveis e detectáveis.
Termino apontando um
"decálogo" de características fundamentais do amor e da paixão, mais
próximas dos tempos tecnológicos que estamos vivendo. Reflita com calma, e
avalie se seu vínculo amoroso atual está mais para amor maduro ou paixão
doentia.
O amor oferece asas
emocionais, a paixão coloca tornozeleiras eletrônicas.
O amor não vê problemas
em compartilhar senhas, a paixão controla via GPS.
O amor aguarda
tranquilamente no sofá ou na cama, a paixão espera ansiosa à porta.
O amor estende o braço,
a paixão puxa pelo braço, por pouco não arrancando a mão.
O amor é panela de
barro, fogo lento, a paixão é tipo miojo, fervura em três minutos.
O amor trata os defeitos
com humor e leveza, a paixão os coloca
no débito em conta.
O amor é seriado de
longo prazo, a paixão é novela de curta, curtíssima duração.
O amor é laço que
aproxima, a paixão é nó que acorrenta.
O amor é livro aberto, a
paixão é diário trancado à chave.
O amor é refúgio
duradouro, a paixão é abrigo temporário.
Computou seus dados? Ok.
Caso não tenha ficado satisfeito com o resultado, aí vai um consolo: amor e
paixão não são sempre e necessariamente dois opostos que se excluem mutuamente,
mas dois afetos que podem e devem se harmonizar mutuamente. Sem boa dose de
paixão o amor se transforma em frio intenso, congelante, paralisante; sem
associar-se ao amor a paixão permanece calor intenso, fogo que arde, labareda
que consome. O equilíbrio na "dosagem" - lembra-se? - é o grande
segredo, a chave de ouro. Parafraseando Einstein, "a paixão sem o amor é
cega, o amor sem a paixão é paralítico". Concluindo com uma lição da
experiência: sacrificar um amor fiel, ainda que rarefeito de paixão, por uma
grande paixão rarefeita de amor, tem se mostrado mais perigoso e arriscado que
sacrificar uma grande paixão rarefeita de amor, por um amor fiel, ainda que
rarefeito de paixão. A escolha é sua.”
[L.S.M.: Maio de 2025]
(* ) Texto
enviado por whatsapp, de Vitória (ES).
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