I-
REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA( *
)
"SE A PEDRA ANGULAR DA FÉ CRISTÃ
É A RESSURREIÇÃO, POR QUAL RAZÃO A CRUZ TEM SIDO NOSSO PRINCIPAL MODELO DE IDENTIFICAÇÃO?"
[Parte I]
"Não me torno cristão, porque não
vejo nos cristãos rostos de ressuscitados"
[Atribuída a F. Nietzsche]
Durante quarenta dias
você que é cristão vem sendo convidado e estimulado a fazer jejum, abstinência,
sacrifícios e orações, bem como a participar de "vias sacras",
procissões com o Senhor Morto, e outras devoções cristãs, tudo isso como
"preparação" para o "Tríduo Pascal", e depois para celebrar
aquela que é considerada a principal festa religiosa dos cristãos: a
"Páscoa".
"SE A PEDRA ANGULAR DA FÉ CRISTÃ É A RESSURREIÇÃO,
POR QUAL RAZÃO A CRUZ TEM SIDO NOSSO PRINCIPAL MODELO DE IDENTIFICAÇÃO?"
[Parte II]
"E se Cristo não ressuscitou,
é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé"[1Cor. 15:14]
Diferentemente de boa
parte da Europa, na América, sobretudo na América Latina, a espiritualidade
cristã - notadamente a católica - coloca ênfase na "Paixão e Morte de
Jesus Cristo", ou seja, na Cruz. Em parte, esse foco e essa identificação
podem ser explicados pelo contexto social de extrema pobreza, miséria, dor e
sofrimento experimentados pela grande maioria dos povos latino-americanos,
resultado - não única e exclusivamente, é claro - tanto do processo de
colonização levado a cabo sobretudo pelos europeus, quanto do longo período de
"escravização" imposto notadamente aos povos de origem africana,
ocorrendo a partir desse contexto, e por essa razão, uma forte identificação
com o "Cristo Jesus Sofredor", que também experimentou a injustiça, a
perseguição, a dor e o sofrimento extremos, culminando com a morte de cruz,
"carregando sobre si a dor e o sofrimento do mundo", como desde cedo
se aprende. De acordo com Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, essa
"genealogia" seria bem mais longa, remontando ao início do
Cristianismo estruturado pela Igreja enquanto Instituição, e não exatamente com
Jesus Cristo. Célebre é, nesse sentido, sua afirmação de que "o verdadeiro
Cristianismo morreu na Cruz". No século vinte, muitos teólogos
latino-americanos - sobretudo com a chamada "Teologia da Libertação"
- enfatizaram ainda mais essa imagem de Jesus Cristo como o "sofredor
solidário para com os pobres, marginalizados e oprimidos", reforçando
ainda mais esse aspecto da espiritualidade cristã. Porém é preciso estar
atento: o foco ou ênfase principal dessa mesma Teologia, não recai e muito
menos permanece na dor, no sofrimento e
na cruz. Nem diferente do que é geralmente ensinado por alguns setores da
teologia tradicional mais ortodoxa, em sua proposta original a chamada Teologia
da Libertação não reforça uma espiritualidade centrada na Paixão e Morte de
Jesus Cristo. Na verdade ela busca superar qualquer visão passiva e meramente
compassiva da dor e do sofrimento, enfatizando a Ressurreição como força de
mudança e de transformação social já no aqui e no agora da história humana.
Isso evidentemente contrasta com a espiritualidade popular impulsionada pela
teologia tradicional mais ortodoxa, ambas fortemente apegadas à imagem de um
Cristo vitimado e sofredor, bem caracterizado nas procissões, nas Vias Sacras,
na veneração da Cruz, na imagem do Senhor Morto e crucificado, e nas práticas
devocionais de um modo geral. A Teologia da Libertação busca deslocar esse foco
para uma visão mais ativa e comprometida da fé, onde Cristo Ressuscitado é
aquele que "encarna" e impulsiona a luta por justiça e libertação já
no aqui e no agora da realidade humana, sem entretanto negar categoricamente
uma eventual continuidade da vida terrena a ter lugar numa dimensão futura
pós-morte. Teólogos como Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff, por exemplo, veem a
Ressurreição não "apenas" como um evento futuro e futurístico, mas
como um acontecimento que incorpora mudanças e transformações ao longo do aqui
e do agora da história. Uma Ressurreição "revolucionária"? Se assim
for entendido, que seja! Revolucionária, mas não necessariamente
"subversiva", como querem muitos. O que não se pode negar é que, se
não o maior, Jesus Cristo foi com certeza um dos maiores revolucionários que a
história já conheceu.
Agora que você já
está a par dos principais aspectos históricos, teológicos e eclesiológicos que
contribuíram para que a espiritualidade cristã católica dos povos
latino-americanos seja fortemente marcada e identificada com o "lenho da
Cruz", como proclama repetidamente o refrão na noite da "Vigília
Pascal", talvez seja interessante analisarmos alguns aspectos psicológicos
que podem estar por trás dessa tendência
de identificação "cruciforme", que de certo modo parece transitar um
tanto na contramão do que seria mais lógico, ou seja, uma identificação com o
triunfo e a glória da Ressurreição. São Paulo - possivelmente o maior teólogo
do Cristianismo - é contundente em seu discurso aos cristãos de Corínto:
"se Cristo não ressuscitou é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa
fé." Essa categórica afirmação destaca com cristalina nitidez, para Paulo,
a centralidade da Ressurreição no Cristianismo. Para ele, sem a Ressurreição a
fé cristã perderia seu sentido, e provavelmente sua razão de ser, de ser
ensinada, e de ser propagada, pois Cristo não teria passado de um líder
religioso morto numa cruz, sem ter vencido o pecado e prevalecido sobre a
morte. Mas não sejamos ingênuos. De acordo com Deepak Chopra, a transformação
de Saulo, o perseguidor dos cristãos, em Paulo, o maior responsável por dar
forma ao cristianismo, ocorrida por intermédio de uma das conversões mais
drásticas e repentinas que a história já conheceu, foi a grande responsável por
fazer com que a nova religião - o Cristianismo - se espalhasse como um rastilho
de pólvora. Mas como isso teria sido possível, pergunta Chopra, num tempo em
que a perseguição se mostrava extremamente eficaz em manter os mais fracos
tiranizados, fosse por um curto ou longo período de tempo? Sua explicação para
esse verdadeiro paradoxo, é que o Cristianismo tinha uma arma secreta: a
conexão estabelecida entre martírio e milagre, que teria tido início justamente
a partir do acontecimento que passou a ser "paradigmático" ocorrido
com Jesus. Depois de ter passado por toda sorte de perseguição, dor e
sofrimento, culminando com um ato de violência extrema que foi sua crucificação
e morte numa cruz, esse mesmo acontecimento
acabaria sendo coroado com um milagre extremo: sua ressurreição. Ainda
de acordo com Deepak Chopra, São Paulo teve um papel central no processo de
consolidação dessa conexão. Assim como Voltaire afirmará mais tarde, que se
Deus não existisse, seria necessário criá-lo, São Paulo insistia que todo
verdadeiro cristão precisava acreditar literalmente no fato da ressurreição.
Dessa forma, sofrer, ser perseguido, caluniado, levado aos tribunais, e se
preciso for, morrer "por causa" e "em nome" de Jesus,
passava dali em diante a ser um sacrifício que garantia a subida ao céu. Talvez
não seja mera coincidência o fato de que, derivada do Cristianismo, essa mesma
crença é professada também pelo Islamismo. São chamadas "religiões do
Livro". Prometem a salvação numa vida após a morte, o que em última instância "coloca o
mundo físico tão abaixo do mundo espiritual, que invocar a morte em nome de
Deus é uma virtude", afirma Chopra. Esses dois fenômenos em particular -
os milagres e o martírio - dominaram, de acordo com ele, a igreja cristã
primitiva, e vêm atravessando séculos e gerações. A afirmação Paulina de que
"se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa fé", do ponto de vista da
evidência lógica pode não provar absolutamente nada; mas era, com certeza,
absolutamente necessária.
A guisa de conclusão:
evitei propositalmente trazer Nietzsche - exceto por breves e esporádicas
citações - para o "corpo" da presente reflexão, por acreditar,
sinceramente, que são poucos os espíritos que estão preparados para dialogar
com seu pensamento, sem se sentirem no mínimo desconfortáveis, para não dizer
ofendidos. De acordo com o mestre oriental OSHO, para entender Nietzsche é
preciso que se esteja à altura de Nietzsche! e certamente não são muitos os que
estão. Os ideólogos do Nazismo, incluindo seu mentor principal, Adolph Hitler,
com certeza não estavam. E por não estarem, transformaram "vontade de
poder" em "vontade de domínio", "super homem" em
"raça pura", "energia e força" em "violência gratuita",
e assim por diante; deu no que deu. A análise crítica de Nietzsche voltada para
o "cristianismo eclesiológico" é sem dúvida muito mais profunda - e
até certo ponto, muito mais pesada - que a exposição praticamente
"descritiva" de Deepak Chopra, esta com certeza muito mais facilmente
"digerível". Pessoalmente me coloco a milhares de quilômetros-luz de
ambos. Ainda assim minhas modestas e esparsas reflexões costumam ser acolhidas
de diferentes formas pelos mais diferentes "espíritos", que
teimosamente ainda insistem em continuar compartilhando de meus escritos.
Nas pegadas de um dos
meus mestres preferidos, Rubem Alves, reafirmo um princípio que considero
sagrado: não brinco com religião e muito menos com a fé de quem quer que seja.
Compartilho, sim, parte daquela que considero ser "minha caminhada espiritual
pessoal", na esperança de poder contribuir de alguma forma para que outros
também se sintam não só estimulados a empreender a sua própria caminhada, como
também compartilhar ao menos parte de seus "achados". A dar crédito
às palavras do mesmo Chopra, aquele e aquelas que ele chama de
"buscadores" constituem a irmandade ou fraternidade mais antiga que
se conhece. "Buscar", talvez não seja mais que uma resposta a um
"chamado"; portanto se insere muito mais na ordem do "dom"
e da "graça". "Compartilhar", por outro lado, talvez não
passe de um gesto que brote naturalmente da alegria do "encontro", e
senão do encontro, que parece jamais acontecer, de cada passo que se julga ter
avançado em sua direção. O mais importante é jamais nos esquecermos de que cada
um de nós tem o seu próprio "TAO", o seu próprio caminho e seu
processo pessoal, como muito bem nos lembra Elie Wiesel: "há mil portões
que conduzem ao pomar da verdade mística. Cada ser humano tem seu próprio
portão. Nunca devemos cometer o erro de tentar entrar por um portão que não
seja o nosso".
[L.S.M.: Páscoa de 2025]
( * ) Texto enviado
por whatsApp de Vitória (ES )
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