sábado, 19 de abril de 2025

REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA( * ) "SE A PEDRA ANGULAR DA FÉ CRISTÃ É A RESSURREIÇÃO, POR QUAL RAZÃO A CRUZ TEM SIDO NOSSO PRINCIPAL MODELO DE IDENTIFICAÇÃO?"

 

 

I-             REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA( * )

 

"SE A PEDRA ANGULAR DA FÉ CRISTÃ É A RESSURREIÇÃO, POR QUAL RAZÃO A CRUZ TEM SIDO NOSSO PRINCIPAL MODELO DE IDENTIFICAÇÃO?"

 

                      [Parte I]

             "Não  me  torno cristão, porque  não  vejo  nos cristãos rostos de  ressuscitados"

               [Atribuída a F. Nietzsche]

Durante quarenta dias você que é cristão vem sendo convidado e estimulado a fazer jejum, abstinência, sacrifícios e orações, bem como a participar de "vias sacras", procissões com o Senhor Morto, e outras devoções cristãs, tudo isso como "preparação" para o "Tríduo Pascal", e depois para celebrar aquela que é considerada a principal festa religiosa dos cristãos: a "Páscoa".

"SE A PEDRA ANGULAR DA FÉ CRISTÃ É A RESSURREIÇÃO, POR QUAL RAZÃO A CRUZ TEM SIDO NOSSO PRINCIPAL MODELO DE IDENTIFICAÇÃO?"

                   [Parte II]

              "E se Cristo não  ressuscitou,  é vã a nossa pregação,  e  também é vã a vossa fé"[1Cor. 15:14]

Diferentemente de boa parte da Europa, na América, sobretudo na América Latina, a espiritualidade cristã - notadamente a católica - coloca ênfase na "Paixão e Morte de Jesus Cristo", ou seja, na Cruz. Em parte, esse foco e essa identificação podem ser explicados pelo contexto social de extrema pobreza, miséria, dor e sofrimento experimentados pela grande maioria dos povos latino-americanos, resultado - não única e exclusivamente, é claro - tanto do processo de colonização levado a cabo sobretudo pelos europeus, quanto do longo período de "escravização" imposto notadamente aos povos de origem africana, ocorrendo a partir desse contexto, e por essa razão, uma forte identificação com o "Cristo Jesus Sofredor", que também experimentou a injustiça, a perseguição, a dor e o sofrimento extremos, culminando com a morte de cruz, "carregando sobre si a dor e o sofrimento do mundo", como desde cedo se aprende. De acordo com Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, essa "genealogia" seria bem mais longa, remontando ao início do Cristianismo estruturado pela Igreja enquanto Instituição, e não exatamente com Jesus Cristo. Célebre é, nesse sentido, sua afirmação de que "o verdadeiro Cristianismo morreu na Cruz". No século vinte, muitos teólogos latino-americanos - sobretudo com a chamada "Teologia da Libertação" - enfatizaram ainda mais essa imagem de Jesus Cristo como o "sofredor solidário para com os pobres, marginalizados e oprimidos", reforçando ainda mais esse aspecto da espiritualidade cristã. Porém é preciso estar atento: o foco ou ênfase principal dessa mesma Teologia, não recai e muito menos permanece na dor,  no sofrimento e na cruz. Nem diferente do que é geralmente ensinado por alguns setores da teologia tradicional mais ortodoxa, em sua proposta original a chamada Teologia da Libertação não reforça uma espiritualidade centrada na Paixão e Morte de Jesus Cristo. Na verdade ela busca superar qualquer visão passiva e meramente compassiva da dor e do sofrimento, enfatizando a Ressurreição como força de mudança e de transformação social já no aqui e no agora da história humana. Isso evidentemente contrasta com a espiritualidade popular impulsionada pela teologia tradicional mais ortodoxa, ambas fortemente apegadas à imagem de um Cristo vitimado e sofredor, bem caracterizado nas procissões, nas Vias Sacras, na veneração da Cruz, na imagem do Senhor Morto e crucificado, e nas práticas devocionais de um modo geral. A Teologia da Libertação busca deslocar esse foco para uma visão mais ativa e comprometida da fé, onde Cristo Ressuscitado é aquele que "encarna" e impulsiona a luta por justiça e libertação já no aqui e no agora da realidade humana, sem entretanto negar categoricamente uma eventual continuidade da vida terrena a ter lugar numa dimensão futura pós-morte. Teólogos como Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff, por exemplo, veem a Ressurreição não "apenas" como um evento futuro e futurístico, mas como um acontecimento que incorpora mudanças e transformações ao longo do aqui e do agora da história. Uma Ressurreição "revolucionária"? Se assim for entendido, que seja! Revolucionária, mas não necessariamente "subversiva", como querem muitos. O que não se pode negar é que, se não o maior, Jesus Cristo foi com certeza um dos maiores revolucionários que a história já conheceu.

Agora que você já está a par dos principais aspectos históricos, teológicos e eclesiológicos que contribuíram para que a espiritualidade cristã católica dos povos latino-americanos seja fortemente marcada e identificada com o "lenho da Cruz", como proclama repetidamente o refrão na noite da "Vigília Pascal", talvez seja interessante analisarmos alguns aspectos psicológicos que podem estar por trás dessa  tendência de identificação "cruciforme", que de certo modo parece transitar um tanto na contramão do que seria mais lógico, ou seja, uma identificação com o triunfo e a glória da Ressurreição. São Paulo - possivelmente o maior teólogo do Cristianismo - é contundente em seu discurso aos cristãos de Corínto: "se Cristo não ressuscitou é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé." Essa categórica afirmação destaca com cristalina nitidez, para Paulo, a centralidade da Ressurreição no Cristianismo. Para ele, sem a Ressurreição a fé cristã perderia seu sentido, e provavelmente sua razão de ser, de ser ensinada, e de ser propagada, pois Cristo não teria passado de um líder religioso morto numa cruz, sem ter vencido o pecado e prevalecido sobre a morte. Mas não sejamos ingênuos. De acordo com Deepak Chopra, a transformação de Saulo, o perseguidor dos cristãos, em Paulo, o maior responsável por dar forma ao cristianismo, ocorrida por intermédio de uma das conversões mais drásticas e repentinas que a história já conheceu, foi a grande responsável por fazer com que a nova religião - o Cristianismo - se espalhasse como um rastilho de pólvora. Mas como isso teria sido possível, pergunta Chopra, num tempo em que a perseguição se mostrava extremamente eficaz em manter os mais fracos tiranizados, fosse por um curto ou longo período de tempo? Sua explicação para esse verdadeiro paradoxo, é que o Cristianismo tinha uma arma secreta: a conexão estabelecida entre martírio e milagre, que teria tido início justamente a partir do acontecimento que passou a ser "paradigmático" ocorrido com Jesus. Depois de ter passado por toda sorte de perseguição, dor e sofrimento, culminando com um ato de violência extrema que foi sua crucificação e morte numa cruz, esse mesmo acontecimento  acabaria sendo coroado com um milagre extremo: sua ressurreição. Ainda de acordo com Deepak Chopra, São Paulo teve um papel central no processo de consolidação dessa conexão. Assim como Voltaire afirmará mais tarde, que se Deus não existisse, seria necessário criá-lo, São Paulo insistia que todo verdadeiro cristão precisava acreditar literalmente no fato da ressurreição. Dessa forma, sofrer, ser perseguido, caluniado, levado aos tribunais, e se preciso for, morrer "por causa" e "em nome" de Jesus, passava dali em diante a ser um sacrifício que garantia a subida ao céu. Talvez não seja mera coincidência o fato de que, derivada do Cristianismo, essa mesma crença é professada também pelo Islamismo. São chamadas "religiões do Livro". Prometem a salvação numa vida após a morte,  o que em última instância "coloca o mundo físico tão abaixo do mundo espiritual, que invocar a morte em nome de Deus é uma virtude", afirma Chopra. Esses dois fenômenos em particular - os milagres e o martírio - dominaram, de acordo com ele, a igreja cristã primitiva, e vêm atravessando séculos e gerações. A afirmação Paulina de que "se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa fé", do ponto de vista da evidência lógica pode não provar absolutamente nada; mas era, com certeza, absolutamente necessária.

A guisa de conclusão: evitei propositalmente trazer Nietzsche - exceto por breves e esporádicas citações - para o "corpo" da presente reflexão, por acreditar, sinceramente, que são poucos os espíritos que estão preparados para dialogar com seu pensamento, sem se sentirem no mínimo desconfortáveis, para não dizer ofendidos. De acordo com o mestre oriental OSHO, para entender Nietzsche é preciso que se esteja à altura de Nietzsche! e certamente não são muitos os que estão. Os ideólogos do Nazismo, incluindo seu mentor principal, Adolph Hitler, com certeza não estavam. E por não estarem, transformaram "vontade de poder" em "vontade de domínio", "super homem" em "raça pura", "energia e força" em "violência gratuita", e assim por diante; deu no que deu. A análise crítica de Nietzsche voltada para o "cristianismo eclesiológico" é sem dúvida muito mais profunda - e até certo ponto, muito mais pesada - que a exposição praticamente "descritiva" de Deepak Chopra, esta com certeza muito mais facilmente "digerível". Pessoalmente me coloco a milhares de quilômetros-luz de ambos. Ainda assim minhas modestas e esparsas reflexões costumam ser acolhidas de diferentes formas pelos mais diferentes "espíritos", que teimosamente ainda insistem em continuar compartilhando de meus escritos.

Nas pegadas de um dos meus mestres preferidos, Rubem Alves, reafirmo um princípio que considero sagrado: não brinco com religião e muito menos com a fé de quem quer que seja. Compartilho, sim, parte daquela que considero ser "minha caminhada espiritual pessoal", na esperança de poder contribuir de alguma forma para que outros também se sintam não só estimulados a empreender a sua própria caminhada, como também compartilhar ao menos parte de seus "achados". A dar crédito às palavras do mesmo Chopra, aquele e aquelas que ele chama de "buscadores" constituem a irmandade ou fraternidade mais antiga que se conhece. "Buscar", talvez não seja mais que uma resposta a um "chamado"; portanto se insere muito mais na ordem do "dom" e da "graça". "Compartilhar", por outro lado, talvez não passe de um gesto que brote naturalmente da alegria do "encontro", e senão do encontro, que parece jamais acontecer, de cada passo que se julga ter avançado em sua direção. O mais importante é jamais nos esquecermos de que cada um de nós tem o seu próprio "TAO", o seu próprio caminho e seu processo pessoal, como muito bem nos lembra Elie Wiesel: "há mil portões que conduzem ao pomar da verdade mística. Cada ser humano tem seu próprio portão. Nunca devemos cometer o erro de tentar entrar por um portão que não seja o nosso".

 

               [L.S.M.: Páscoa de 2025]

( * ) Texto enviado por whatsApp de Vitória (ES )

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