Consciência negra é um termo que ganhou notoriedade na década de 1970, no Brasil, em razão da luta de movimentos sociais que atuavam pela igualdade racial, como o Movimento Negro Unido. O termo é, ao mesmo tempo, uma referência e uma homenagem à cultura ancestral do povo de origem africana, que foi trazido à força e duramente escravizado por séculos no Brasil. É o símbolo da luta, da resistência e a consciência de que a negritude não é inferior e que o negro tem seu valor e seu lugar na sociedade.
O que é consciência negra?
Muitas pessoas, erroneamente, dizem que
não se deve celebrar a consciência negra, e sim a consciência humana. Isso, no
entanto, é uma ideia que pode até ter surgido com boas intenções, mas acabou
prestando um desserviço à luta
contra o racismo e a favor da igualdade racial. Historicamente a sociedade
sustentou-se por meio de uma relação desigual entre pessoas por vários fatores.
Os principais fatores de desigualdade são:
·
gênero;
·
cor
da pele;
·
sexualidade;
·
condição
socioeconômica.
Tradicionalmente os espaços de poder da sociedade são reservados a homens héteros,
cisgênero, brancos e ricos. Mesmo nas chamadas microrrelações, nas pequenas
relações de poder cotidianas, a tendência é que:
· o
homem tenha mais poder e privilégio social em relação à mulher;
· os
héteros também o têm em relação à população LGBTQ+;
· os
brancos também possuem esse privilégio e esse poder desproporcional em relação
à população preta.
Isso evidencia, a partir de uma leitura
materialista da história, que as relações sociais são desiguais e que é preciso corrigir essa
distorção para que a sociedade evolua.
Para levar a riqueza da
cultura africana ao povo afrodescendente de países colonizados por europeus (e
também para os próprios povos africanos, que ainda sofrem as consequências do
colonialismo de exploração em seu continente), o poeta e escritor martinicano
Aimé Césaire criou o termo negritude, que se tornou uma corrente literária e um
movimento cultural. A ideia é a de que há uma essência cultural (a negritude)
em todos os descendentes de africanos que sofreram a diáspora forçada por
europeus. A ideia de uma consciência negra não surge, exatamente, a partir do
conceito de negritude, mas tem muito a ver.
Para unificar o povo preto em torno de sua luta contra
séculos de escravização e após a abolição da escravatura no Brasil,
passou-se a pensar em uma forma de unir a população preta e conscientizá-la de sua cultura, da
luta diária das pessoas pretas e do valor de ser preto. O objetivo é ainda parecido com o da
negritude, mas vai além, pois indica às pessoas pretas que, apesar de elas não
ocuparem muitos lugares de destaque na sociedade dominada por pessoas brancas,
elas merecem destaque por sua intensa luta.
A consciência negra é isto: um misto de
conscientização da importância do preto na sociedade, do reconhecimento do
valor, da cultura e da luta de pessoas pretas que não se calaram e levantaram a
cabeça contra o racismo. Apesar do protagonismo negro nessa consciência — que
mais do que uma ideia ou conceito, é uma espécie de prática que dá “movimento”
aos movimentos sociais —, podemos esperar que, a partir do choque com
a consciência negra, as pessoas brancas repensem suas práticas.
Criação da consciência negra
O cérebro humano tem uma imensa capacidade plástica de se adaptar às situações e de moldá-las para que elas estejam de acordo com aquilo que o ser humano quer. Assim, o ser humano possui algo que talvez lhe seja único dentre os outros animais: consciência. O animal tem senciência, uma capacidade de se perceber no mundo a partir dos sentidos do corpo, da autoimagem, das necessidades corpóreas e até de sentimentos. No entanto, o ser humano se percebe como um ser no mundo que pode modificá-lo e que pensa na sua existência. Isso é o que a consciência nos garante: pensar a nossa existência e, com isso, nos fazemos enquanto seres viventes.
Para filósofos existencialistas, a nossa
existência precede a nossa essência. Isso significa que é ao viver que nos
criamos. Também é
nesse movimento vital que criamos a nossa consciência, que é aquela capacidade de pensar na
existência e se perceber como um ser no mundo e capaz de modificar o mundo.
Tudo isso compõe uma complexa rede de significações que nos molda enquanto
seres e não é simples de ser percebida.
Para que um indivíduo que sofre a
exploração contra a sua classe social, a exploração de seu trabalho,
perceba-se enquanto um ser explorado, ele precisa tomar consciência de que o
que é feito com ele não está certo. O mesmo vale para a mulher, que, para
perceber que a cultura que a colocou como um ser inferior, frágil (até mesmo um
objeto dos homens) é errada, precisa tomar consciência de que é a cultura que
está errada, e não ela mesma. Isso também se aplica para o preto: o racismo
estrutural é internalizado pelas pessoas que o sofrem, o que faz parecer normal
ser historicamente discriminado. No entanto, a criação da consciência negra na
pessoa faz com que ela perceba
que ela não está errada por ser quem ela é, mas é a sociedade que está
errada por discriminá-la.
Quando a pessoa preta (assim como a
mulher, a população LGBTQ+, deficientes e outras minorias historicamente
discriminadas) toma consciência de seu valor e sua importância, ela se
empodera. O movimento causal contrário também acontece: quanto mais a pessoa
negra é empoderada, mais ela toma consciência de seu valor. No entanto, essa
consciência negra não é criada a partir do nada no indivíduo. É necessário que
as pessoas empoderadas mostrem para as outras pessoas que elas também podem
criar essa consciência. É
necessário que a educação oferecida nas escolas seja de igualdade e que seja ensinada a valorização
da cultura negra. É necessário que sejam mostradas pessoas negras em espaços de
poder e de representatividade, como o herói preto e a heroína preta, o
presidente preto e a presidenta preta, etc.
É necessário desconstruir um papel d
e subalternidade que sempre foi atribuído à
população preta e mostrar cada vez mais nos espaços midiáticos os pretos e as
pretas empoderados, para que sirvam de inspiração para os outros que ainda não
se empoderaram.
História da consciência negra
No Brasil, a história da consciência negra culminou na criação do Dia Nacional da Consciência Negra, uma data que celebra a negritude e a luta da população preta de nosso país. No entanto, a história por trás disso é mais longa. Ainda no século XIX, negros alforriados e seus filhos, muitos dos quais tiveram a oportunidade de estudar (como o advogado e jornalista Luiz Gama, o patrono da abolição da escravatura no Brasil), impulsionaram o movimento abolicionista, que advogava pelo fim da escravidão em nosso país.
Intelectuais e políticos brancos também
endossaram o movimento. No dia
13 de maio de 1888,
não conseguindo mais resistir à pressão interna do movimento abolicionista e
nem à pressão externa promovida principalmente pela Inglaterra, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea,
abolindo a escravatura em nosso país.
A trajetória dos ex-escravos libertos não
foi fácil. Eles
não tiveram direito à terra nem a qualquer tipo de indenização. Começaram a
viver à margem da sociedade, iniciando a difícil trajetória da população preta
após a abolição em nosso país. Mesmo compondo uma comunidade em sua maioria
pobre e marginalizada, a
cultura negra, com suas ricas raízes africanas, continuou se desenvolvendo.
Em 1971, o professor, escritor,
pesquisador e militante negro Oliveira Silveira organizou um grupo de estudo e
apreciação da cultura e da literatura negra em Porto Alegre com outras pessoas
interessadas no assunto. O grupo propôs a criação de uma data comemorativa que simbolizasse a união e a luta
do povo negro. O dia 20 de novembro foi escolhido por ser o dia da morte de
Zumbi dos Palmares, personalidade considerada símbolo de luta e resistência
contra a escravidão.
O grupo sofreu certa perseguição, pois, na ocasião de seu nascimento, o Brasil vivia o auge dos chamados anos de chumbo da Ditadura Militar. No entanto, os movimentos sociais que atuavam em defesa da população negra cresciam cada vez mais em nosso país. Em 1978, inclusive, foi criado no Brasil o Movimento Negro Unido (MNU).
Em 1988 foi promulgada a atual Constituição
Federal de nosso país,
apelidada pelo deputado Ulysses Guimarães como Constituição Cidadã. Ela recebeu
esse carinhoso apelido por ser resultado de uma intensa consulta popular de
vários setores da sociedade, representados por deputados e por movimentos
sociais que puderam participar das sessões de criação e votação do texto
constitucional. Um dos princípios estabelecidos na constituição é a igualdade e o veto à discriminação por
qualquer motivo,
inclusive racial.
Em 1989 foi promulgada a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que dispõe contra o preconceito
racial, tornando a discriminação racial, de cor, de religião ou nacionalidade
um crime passível de punição penal.
Entre embates judiciais, leis e a luta dos movimentos, o sentimento de empoderamento e a necessidade de se celebrar a africanidade cresciam cada vez mais, aumentando a necessidade de se criar uma lei que determinasse a data proposta na década de 1970 como uma data comemorativa.
PORFíRIO, Francisco. "Consciência
negra"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/consciencia-negra.htm.
Acesso em 24 de setembro de 2021.
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