XIII-
SANTO
AGOSTINHO: ‘CREIO NA IGREJA UNA E SANTA”
1. Do Oriente ao Ocidente
Na meditação introdutória, da
semana passada, refletimos sobre o significado da Quaresma como um tempo para
irmos com Jesus até o deserto, em jejum de alimentos, palavras e imagens, para
aprender a superar as tentações e, sobretudo, crescer na intimidade com Deus.
Nas quatro pregações que
restam, dando continuidade à reflexão iniciada na Quaresma de 2012 com os
Padres gregos, frequentaremos agora a escola dos quatro grandes doutores da
Igreja latina: Agostinho, Ambrósio, Leão Magno e Gregório Magno; para ver o que
cada um nos diz, hoje, sobre a verdade da fé que mais particularmente defendeu:
respectivamente, a natureza da Igreja, a presença real de Cristo na Eucaristia,
o dogma cristológico de Calcedônia e a inteligência espiritual das Escrituras.
O objetivo é redescobrir, por
trás desses grandes Padres, a riqueza, a beleza e a felicidade de crer; passar,
como diz São Paulo, “de fé em fé” (Rm 1,17), de uma fé acreditada para uma fé
vivida. Teremos, assim, um aumento do “volume” de fé dentro da Igreja para
constituir depois a força maior do seu anúncio ao mundo.
O título do ciclo vem de um
pensamento caro aos teólogos medievais: “Nós”, dizia Bernardo de Chartres,
“somos como anões sentados em ombros de gigantes, de modo a vermos mais coisas
e mais longe do que eles, não pela agudeza do nosso olhar nem pela altura do
nosso corpo, mas porque somos carregados para o alto e elevados por eles a uma
altura gigantesca” (1). Este pensamento encontrou expressão artística em certas
estátuas e vitrais de catedrais góticas da Idade Média, em que são
representados personagens de estatura imponente, que carregam, sentados sobre
seus ombros, homens pequenos, quase anões. Os gigantes eram para eles, como são
para nós, os Padres da Igreja.
Depois das lições de Atanásio,
Basílio de Cesareia, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa, respectivamente
sobre a divindade de Cristo, sobre o Espírito Santo, sobre a Trindade e sobre o
conhecimento de Deus, podia-se ter a impressão de que restasse muito pouco a
ser feito pelos Padres latinos na edificação do dogma cristão. Um olhar
superficial para a história da teologia nos convence imediatamente do
contrário.
Motivados pela cultura a que
pertenciam, favorecidos pela sua forte têmpera especulativa e condicionados
pelas heresias que eram forçados a combater (arianismo, apolinarismo,
nestorianismo, monofisismo), os Padres gregos tinham se concentrado
principalmente nos aspectos ontológicos do dogma: a divindade de Cristo, as
suas duas naturezas e o modo da sua união, a unidade e a trindade de Deus. Os
temas mais caros a Paulo, a justificação, a relação entre lei e evangelho, a
Igreja como corpo de Cristo, foram deixados à margem da sua atenção ou tratados
en passant. Aos seus escopos respondia muito melhor João, com a sua ênfase na
encarnação, do que Paulo, que põe no centro de tudo o mistério pascal, isto é,
o agir, mais do que o ser de Cristo.
A índole dos latinos, mais
inclinada, excetuando-se Agostinho, a se ocupar de problemas específicos,
jurídicos e organizacionais, do que de questões especulativas, unida ao
surgimento de novas heresias, como o donatismo e o pelagianismo, estimulará uma
reflexão nova e original sobre os temas paulinos da graça, da Igreja, dos sacramentos
e das Escrituras. São os tempos sobre os quais queremos refletir nesta pregação
quaresmal.
2. O que é a Igreja?
Comecemos a nossa resenha pelo
maior dos padres latinos, Agostinho. O doutor de Hipona deixou a sua marca em
quase todas as áreas da teologia, mas especialmente em duas: a da graça e a da
Igreja; a primeira, fruto da sua luta contra o pelagianismo; a segunda, de sua
luta contra o donatismo.
O interesse pela doutrina de
Santo Agostinho sobre a graça prevaleceu, do século XVI em diante, tanto no
âmbito protestante (ao qual estão ligados Lutero, com a doutrina da
justificação, e Calvino, com a da predestinação), quanto no campo católico, por
causa das controvérsias levantadas por Jansen e Baio (2). Já o interesse pelas
suas doutrinas eclesiais prevalece em nossos dias, porque o Concílio Vaticano
II fez da Igreja o seu tema central e porque o movimento ecumênico tem na ideia
de Igreja a questão crucial a ser resolvida. Procurando ajuda e inspiração nos
Padres da Fé para o hoje da fé, vamos nos ocupar desta segunda área de
interesse de Santo Agostinho, que é a Igreja.
A Igreja não era um assunto
desconhecido para os Padres gregos nem para os escritores latinos anteriores a
Agostinho (Cipriano, Hilário, Ambrósio), mas as suas afirmações se limitavam
principalmente a repetir e comentar afirmações e imagens das Escrituras. A
Igreja é o novo povo de Deus; a ela é prometida a indefectibilidade; ela é “a
coluna e a base da verdade”; o Espírito Santo é o seu mestre supremo; a Igreja
é “católica” porque se estende a todos os povos, ensina todos os dogmas e
possui todos os carismas; na esteira de Paulo, fala-se da Igreja como do
mistério da nossa incorporação a Cristo por meio do batismo e do dom do
Espírito Santo; ela nasceu do lado aberto de Cristo na cruz, como Eva do lado
de Adão adormecido (3).
Tudo isso, porém, era dito
ocasionalmente; a Igreja ainda não tinha entrado em discussão. Quem será
forçado a tratar dela é justamente Agostinho, que, durante quase toda a vida,
teve de lutar contra o cisma dos donatistas. Talvez ninguém se lembrasse hoje
daquela seita norte-africana se ela não tivesse sido a ocasião de origem do que
hoje chamamos de eclesiologia, ou seja, um discurso refletido sobre o que é a
Igreja no desígnio de Deus, a sua natureza e o seu funcionamento.
Por volta de 311, um certo
Donato, bispo da Numídia, se recusou a receber novamente na comunhão eclesial
aqueles que durante a perseguição de Diocleciano tinham entregado os livros
sagrados às autoridades estatais, renegando a fé para salvar a vida. Em 311,
foi eleito bispo de Cartago um certo Ceciliano, acusado, erradamente segundo os
católicos, de ter traído a fé durante a perseguição de Diocleciano. Opôs-se a
esta nomeação um grupo de setenta bispos do norte africano, liderados por
Donato. Eles depuseram Ceciliano e elegeram em seu lugar Donato. Excomungado
pelo papa Milcíades em 313, ele permaneceu no seu posto, provocando um cisma
que criou no norte da África uma Igreja paralela à católica, mantida até a
invasão dos vândalos, um século depois.
Durante a polêmica, eles
tentaram justificar a sua posição com argumentos teológicos. Foi para
refutá-los que Agostinho desenvolveu, pouco a pouco, a sua doutrina da Igreja.
Isto aconteceu em dois contextos diferentes: nas obras escritas diretamente
contra os donatistas e nos seus comentários à Escritura e discursos ao povo. É
importante distinguir entre esses dois contextos porque, conforme cada um,
Agostinho insistirá mais em alguns aspectos da Igreja do que em outros e só a
partir do conjunto é que pode ser entendida a sua doutrina completa. Vamos ver,
portanto, brevemente, quais são as conclusões a que o santo chega em cada um
dos dois contextos, a começar pelo diretamente antidonatista.
a. A Igreja, comunhão dos
sacramentos e sociedade dos santos. O cisma donatista partiu de uma convicção:
não pode transmitir a graça um ministro que não a possui; os sacramentos
administrados desta forma seriam desprovidos de qualquer efeito. Este
argumento, que no início foi aplicado à ordenação do bispo Ceciliano, acabou
estendido rapidamente aos outros sacramentos, em particular ao batismo. Com
isto, os donatistas justificavam a sua separação dos católicos e a prática de
rebatizar quem vinha das suas fileiras.
Em resposta, Agostinho
desenvolve um princípio que se tornará uma conquista perene da teologia e que
lança as bases de um futuro tratado de sacramentis: a distinção entre potestas
e ministerium, ou seja, entre a causa da graça e o seu ministro. A graça
conferida pelos sacramentos é obra exclusiva de Deus e de Cristo; o ministro
não passa de um instrumento: “Pedro batiza, é Cristo quem batiza; João batiza,
é Cristo quem batiza; Judas batiza, é Cristo quem batiza”. A validade e
eficácia dos sacramentos não é impedida pelo ministro indigno: uma verdade da
qual, bem sabemos, o povo cristão precisa se lembrar também hoje…
Neutralizada, assim, a
principal arma do adversário, Agostinho pode elaborar a sua grandiosa visão da
Igreja mediante algumas distinções fundamentais. A primeira é entre a Igreja
presente ou terrestre e a Igreja celestial ou futura. Só esta segunda será uma
Igreja de todos santos e apenas santos; a Igreja do tempo presente será sempre
o campo em que se misturam o trigo e o joio, a rede que recolhe peixes bons e
peixes ruins, ou seja, santos e pecadores.
Dentro da Igreja em seu estágio
terreno, Agostinho opera outra distinção: entre a comunhão dos sacramentos
(communio sacramentorum) e a sociedade dos santos (societas sanctorum). A
primeira une visivelmente entre si todos aqueles que participam dos mesmos sinais
externos: os sacramentos, a Escritura, a autoridade; a segunda une entre si
todos e apenas aqueles que, além dos sinais, também têm em comum a realidade
escondida nos sinais (res sacramentorum), que é o Espírito Santo, a graça, a
caridade.
Dado que na terra sempre será
impossível saber com certeza quem possui o Espírito Santo e a graça, e, mais
ainda, se eles perseverarão nesse estado até o fim, Agostinho acaba
identificando a verdadeira e definitiva comunidade dos santos com a Igreja
celeste dos predestinados. “Quantas ovelhas que hoje estão dentro estarão fora,
e quantos lobos que hoje estão fora estarão dentro!” (5).
A novidade, neste ponto, mesmo
no tocante a Cipriano, é que, enquanto este fazia consistir a unidade da Igreja
em algo externo e visível, na concórdia de todos os bispos entre si, Agostinho
a faz consistir em algo interno: o Espírito Santo. A unidade da Igreja é
operada, assim, pelo mesmo que opera a unidade na Trindade: “O Pai e o Filho
quiseram que estivéssemos unidos entre nós e com eles por meio do mesmo vínculo
que os une, o amor, que é o Espírito Santo” (6). Ele executa na Igreja a mesma
função que exerce a alma em nosso corpo natural: ser o seu princípio vital e
unificador. “O que a alma é para o corpo humano, o Espírito Santo é para o
Corpo de Cristo, que é a Igreja” (7).
A plena pertença à Igreja exige
as duas coisas juntas, a comunhão visível dos sinais sacramentais e a comunhão
invisível da graça. Esta, no entanto, admite graus, e por isso não quer dizer
que se deva estar necessariamente dentro ou fora. Pode-se estar em parte dentro
e em parte fora. Há uma pertença exterior, ou sinais sacramentais, em que se
situam os cismáticos donatistas e os próprios maus católicos, e uma comunhão
plena e total. A primeira consiste em ter o sinal externo da graça
(sacramentum), sem receber, porém, a realidade interior produzida por eles (res
sacramenti), ou em recebê-la, mas para a própria condenação, não para a própria
salvação, como no caso do batismo administrado pelos cismáticos ou da Eucaristia
recebida indignamente pelos católicos.
b. A Igreja Corpo de Cristo
animado pelo Espírito Santo. Nos escritos exegéticos e nos discursos ao povo,
encontramos esses mesmos princípios básicos da eclesiologia; mas menos
pressionado pela controvérsia e falando, por assim dizer, em família, Agostinho
pode insistir mais em aspectos interiores e espirituais da Igreja, mais caros a
ele. Neles, a Igreja é apresentada, com tons muitas vezes elevados e comovidos,
como o corpo de Cristo (ainda falta o adjetivo “místico”, que será adicionado
mais tarde), animado pelo Espírito Santo, tão afim ao corpo eucarístico a ponto
de, às vezes, igualar-se quase totalmente a ele. Ouçamos o que ouviram os seus
fiéis, numa festa de Pentecostes, sobre esta questão:
“Se queres entender o corpo de
Cristo, ouve o Apóstolo que diz aos fiéis: Vós sois o corpo de Cristo e os seus
membros (1 Co 12,27). Se vós sois o corpo e os membros de Cristo, na mesa do
Senhor está o vosso mistério: recebei o vosso mistério. Ao que sois, respondeis
‘amém’ e, ao respondê-lo, o confirmais. É dito a vós: ‘o corpo de Cristo’, e
respondeis: ‘amém’. Sê membro do corpo de Cristo, para o teu amém ser
verdadeiro… Sede o que vedes e recebei o que sois” (8).
O nexo entre os dois corpos de
Cristo se fundamenta, para Agostinho, na singular correspondência simbólica
entre o devir de um e o formar-se da outra. O pão da Eucaristia é obtido da
massa de muitos grãos de trigo e o vinho de uma multidão de bagos de uva: assim
a Igreja é formada por muitas pessoas, reunidas e amalgamadas pela caridade que
é o Espírito Santo (9). Como o trigo espalhado pelas colinas foi primeiro
colhido, depois moído, misturado com água e assado no forno, assim os fiéis
esparsos pelo mundo foram reunidos pela palavra de Deus, moídos pelas penitências
e exorcismos que precedem o batismo, imersos na água do batismo e passados pelo
fogo do Espírito. Mesmo em relação à Igreja, deve-se dizer que o sacramento
“significando causat”: significando a união de várias pessoas em uma, a
Eucaristia a realiza, a causa. Neste sentido, podemos dizer que “a Eucaristia
faz a Igreja”.
3. Atualidade da eclesiologia de Agostinho
Vamos agora ver como as ideias
de Agostinho sobre a Igreja podem ajudar a iluminar os problemas que ela
enfrenta em nosso tempo. Quero me concentrar em especial na importância da
eclesiologia de Agostinho para o diálogo ecumênico. Uma circunstância torna
esta escolha particularmente oportuna. O mundo cristão se prepara para celebrar
o quinto centenário da Reforma Protestante. Já começaram a circular declarações
e documentos conjuntos em vista do evento (10). É vital, para toda a Igreja,
não estragarmos esta ocasião permanecendo prisioneiros do passado, tentando
apurar, talvez com maior objetividade e serenidade, as razões e as culpas de um
e de outro, mas sim darmos um salto de qualidade, como ocorre na eclusa de um
rio ou de um canal, que permite que os navios continuem a sua navegação num
patamar mais elevado.
A situação do mundo, da Igreja
e da teologia mudou desde aquela época. Trata-se de recomeçar a partir da
pessoa de Jesus, de ajudar humildemente os nossos contemporâneos a descobrir a
pessoa de Cristo. Devemos nos remeter ao tempo dos apóstolos. Eles tinham
diante de si um mundo pré-cristão; nós temos diante de nós um mundo em grande
parte pós-cristão. Quando Paulo quis resumir em uma frase a essência da
mensagem cristã, ele não disse “Anunciamos esta ou aquela doutrina”, mas “Nós
proclamamos Cristo, e Cristo crucificado” (1 Cor 1, 23). E ainda: “Nós
proclamamos Jesus Cristo, o Senhor” (2 Cor 4,5).
Isto não significa ignorar o
grande enriquecimento teológico e espiritual produzido pela Reforma, nem querer
retornar ao ponto de antes; significa, em vez disso, deixar que toda a
cristandade se beneficie das suas conquistas, uma vez libertadas de certas
forçações devidas ao clima polêmico do momento e às posteriores controvérsias.
A justificação gratuita pela fé, por exemplo, deveria ser anunciada hoje, e com
mais força do que nunca, mas não em oposição às boas obras, o que é uma questão
superada, e sim em oposição à pretensão do homem moderno de se salvar sozinho,
sem necessidade nem de Deus nem de Cristo. Se vivesse hoje, sou convencido que
isto seria o modo com o qual Lutero predicasse a justificação por fé.
Vamos ver como a teologia de
Agostinho pode nos ajudar neste esforço para superar as barreiras seculares. O
caminho a percorrer hoje, em certo sentido, segue na direção oposta à que foi
tomada por ele contra os donatistas. Na época, era preciso ir da comunhão dos
sacramentos à comunhão na graça do Espírito Santo e na caridade, mas hoje temos
que ir da comunhão espiritual da caridade à plena comunhão, inclusive nos
sacramentos, entre os quais, em primeiro lugar, a Eucaristia.
A distinção entre os dois
níveis de realização da verdadeira Igreja, o externo, dos sinais, e o interno,
da graça, permite que Agostinho formule um princípio que seria impensável antes
dele: “Pode haver algo na Igreja católica que não seja católico, e fora da
Igreja católica algo católico” (11). Os dois aspectos da Igreja, o visível e
institucional e o invisível e espiritual, não podem ser separados. Isso é
verdade e foi reiterado por Pio XII na Mystici corporis e pelo Concílio
Vaticano II na Lumen Gentium, mas, devido às separações históricas e ao pecado
humano, até que se realize a sua correspondência plena, não podemos dar mais
importância à comunidade institucional do que à espiritual.
Para mim, isto levanta uma
séria indagação. Posso eu, como católico, me sentir mais em comunhão com a
multidão dos que, tendo sido batizados na minha própria Igreja, se
desinteressam completamente de Cristo e da Igreja, ou se interessam por ela
apenas para falar mal, do que me sinto em comunhão com as fileiras daqueles
que, apesar de pertencer a outras confissões cristãs, acreditam nas mesmas
verdades fundamentais em que eu creio, amam Jesus Cristo até dar a vida por
ele, difundem o Evangelho, se esforçam para aliviar a pobreza no mundo e
possuem os mesmos dons do Espírito Santo que nós? As perseguições, tão
frequentes hoje em certas partes do mundo, não fazem distinção: os
perseguidores não queimam igrejas nem matam pessoas porque elas são católicas
ou protestantes, mas porque são cristãs. Para eles, nós já somos “uma coisa
só”!
Esta, obviamente, é uma
pergunta que deveria ser feita também pelos cristãos das outras igrejas a
propósito dos católicos, e, graças a Deus, é precisamente isto o que está
acontecendo de uma forma oculta, porém maior do que as notícias nos deixam
vislumbrar. Um dia, tenho certeza, ficaremos admirados, ou outros ficarão, por
não termos notado antes o que o Espírito Santo estava realizando entre os
cristãos do nosso tempo, à margem da oficialidade. Fora da Igreja católica há
muitíssimos cristãos que olham para ela com olhos novos e começam a reconhecer
nela as suas próprias raízes.
A intuição mais nova e fecunda
de Agostinho sobre a Igreja, como vimos, foi a de identificar o princípio
essencial da sua unidade no Espírito, mais do que na comunhão horizontal dos
bispos uns com os outros e dos bispos com o papa de Roma. Como a unidade do
corpo humano é dada pela alma que vivifica e move todos os seus membros, assim
é a unidade do corpo de Cristo. Esta unidade é um fato místico, mais do que uma
realidade que se expressa social e visivelmente em perspectiva externa. É o
reflexo da unidade perfeita que existe entre o Pai e o Filho por obra do
Espírito. Foi Jesus quem fixou de uma vez para sempre este fundamento místico
da unidade quando disse: “Que todos sejam um, como nós somos um” (Jo 17, 22). A
unidade essencial na doutrina e na disciplina será o fruto desta unidade
mística e espiritual, nunca a sua causa.
Os passos mais concretos para a
unidade não são dados, portanto, em torno de uma mesa ou nas declarações
conjuntas (embora tudo isto seja importante); são dados quando os crentes de
diferentes confissões proclamam juntos, em acordo fraterno, o Senhor Jesus,
compartilhando cada um o próprio carisma e reconhecendo-se irmãos em Cristo.
4. Membros do corpo de Cristo, movidos pelo Espírito!
Em seus discursos ao povo,
Agostinho nunca expõe as suas ideias sobre a Igreja sem apresentar
imediatamente as consequências práticas para a vida cotidiana dos fiéis. E é
isto o que nós também queremos fazer antes de concluir a nossa meditação, como
se nos colocássemos entre as fileiras dos seus ouvintes de então.
A imagem da Igreja como Corpo
de Cristo não é uma novidade de Agostinho. O que é novo nele são as conclusões
práticas para a vida dos crentes. Uma delas é que não temos mais razão para nos
olharmos com inveja e com ciúme. O que eu não tenho, mas os outros têm, também
é meu. Ouvimos o apóstolo elencar todos aqueles maravilhosos carismas:
apostolado, profecia, curas… e talvez nos entristeçamos pensando que não temos
nenhum deles. Mas, cuidado, alerta Agostinho: “Se tu amas, o que tens não é
pouco. Se de fato amas a unidade, tudo o que nela é possuído por alguém é
também possuído por ti! Expulsa a inveja e será teu o que é meu, e, se eu
expulsar a inveja, será meu o que tu possuis”.
Somente o olho, no corpo, tem a
capacidade de ver. Mas o olho, por acaso, enxerga apenas para si? Não é todo o
corpo que se beneficia da sua capacidade de ver? Só a mão age, mas ela age,
acaso, apenas para si mesma? Se uma pedra está prestes a atingir o olho, a mão
por acaso permanece imóvel, dizendo que o golpe, afinal, não é contra ela? O
mesmo acontece no corpo de Cristo: o que cada membro é e faz, Ele é e faz para
todos!
Eis por que a caridade é o
“caminho mais excelente” (1 Cor 12 , 31): ela me faz amar a igreja, ou a
comunidade em que vivo, e, na unidade, todos os carismas, e não apenas alguns,
são meus. E há mais: se amas a unidade mais do que eu a amo, o carisma que eu
possuo é mais teu do que meu. Suponhamos que eu tenha o carisma de evangelizar;
eu posso me comprazer ou me vangloriar dele, e, assim, me torno “um címbalo que
retine” (1 Cor 13,01); o meu carisma “de nada me aproveita”, ao passo que o
ouvinte não deixa de se beneficiar, apesar do meu pecado. A caridade multiplica
realmente os dons; ela faz do carisma de um, o carisma de todos.
“Fazes parte do corpo de
Cristo? Amas a unidade da Igreja?”, perguntava Agostinho aos seus fiéis.
“Então, quando um pagão te perguntar por que não falas todas as línguas, se
está escrito que aqueles que receberam o Espírito Santo falam todas as línguas,
responde sem hesitar: ‘É claro que falo todas as línguas! Eu pertenço ao corpo
da Igreja, que fala todas as línguas e em todas as línguas proclama as grandes
obras de Deus’” (13).
Quando formos capazes de
aplicar esta verdade não só às relações dentro da comunidade em que vivemos e à
nossa Igreja, mas também às relações entre uma Igreja cristã e a outra, naquele
dia a unidade dos cristãos será praticamente um fato consumado.
Acolhamos a exortação com que
Agostinho fecha muitos dos seus discursos sobre a Igreja: “Se quiserdes, pois,
experimentar o Espírito Santo, mantenha o amor, amai a verdade e alcançareis a
eternidade. Amém” (14).
[Tradução do original italiano
por ZENIT português]
(1) Bernardo de Chartres,
coment. João de Salisbury, Metalogicon, III, 4 (Corpus Chr. Cont. Med., 98,
p.116).
(2) A este âmbito da influência
de Agostinho é dedicado o livro de H. de Lubac, Augustinisme et théologie
moderne, Paris, Aubier 1965.
(3) Cf. J.N.D. Kelly, Early
Christian Doctrines, London 1968 chap. XV.
(4) Agostinho, Contra Epist.
Parmeniani II,15,34; cf. todo o Sermo 266.
(5) Agostinho, In Ioh. Evang.
45,12: “Quam multae oves foris, quam multi lupi intus!”.
(6) Agostinho, Discursos, 71,
12, 18 (PL 38,454).
(7) Agostinho, Sermo 267, 4 (PL
38, 1231).
(8) Agostinho, Sermo 272 (PL
38, 1247 em diante).
(9) Ibidem.
(10) Cf. documento conjunto
católico-luterano “Do conflito à comunhão”,
http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/chrstuni/lutheran-fed-docs/rc_pc_chrstuni_doc_2013_dal-conflitto-alla-comunione_it.html
(em italiano).
(11) Agostinho, De Baptismo,
VII, 39, 77.
(12) Agostinho, Tratados sobre
João, 32,8.
(13) Cf. Agostinho, Discursos,
269, 1.2 (PL 38, 1235 s.).
(14) Agostinho, Sermo 267, 4
(PL 38, 1231).
(21 de Março de 2014) © Innova
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