Por Jean Poul Hansen(*)
Introdução
A palavra
“leigo” (em grego laïkós, e em latim laicus) deriva da palavra grega laós, que quer dizer “povo”. No entanto,
o termo teve sempre uma conotação negativa: “leigo” é aquele que não sabe, que não
domina determinado conhecimento, que não tem o conhecimento ou a habilidade necessária
para determinada arte ou ciência, que não possui conhecimento aprofundado sobre
determinada área do saber. Pode ser tomado como sinônimo de ignorante. Foi usado
assim, sobretudo na Idade Média, para diferenciar o povo, muitas vezes iletrado,
sem acesso à cultura, de uma elite cultural e muitas vezes clerical. Na modernidade,
o termo se estendeu ao nível geral, sendo usado em praticamente todas as áreas humanas
com este sentido pejorativo.
Foi o Concílio
Vaticano II (1962-1965) – sem dúvida, o maior evento eclesial do século XX – que,
entre outras tantas questões, superou essa compreensão negativa e estabeleceu um
conceito positivo de “leigos”, designando-os da seguinte forma na Constituição Dogmática
sobre a Igreja, Lumen Gentium:
Todos os cristãos
que não são membros da sagrada Ordem ou do estado religioso reconhecido pela Igreja,
isto é, os fiéis que, incorporados em Cristo pelo batismo, constituídos em Povo
de Deus e tornados participantes, a seu modo, da função sacerdotal, profética e
real de Cristo, exercem, pela parte que lhes toca, a missão de todo o Povo cristão
na Igreja e no mundo (LG 31).
O ponto de
partida é ainda negativo, ou seja, a negação do estado clerical e religioso, mas
logo em seguida aparecem o batismo e o povo de Deus, os dois grandes fundamentos
da teologia conciliar e pós-conciliar do laicato.
- Nas Sagradas Escrituras, a
raiz
As Sagradas Escrituras, contudo, não conhecem essa palavra nem esse conceito, muito embora a sua raiz, laós (povo), esteja muito presente em toda a Bíblia, especialmente no Primeiro Testamento (cf. Ex 6,6-7; Dt 7,6-10; 29,12; 2Sm 14,13; Jr 7,23). Também no Segundo Testamento, em que normalmente pretenderíamos encontrar a palavra e o conceito de “leigo”, eles não aparecem.
Durante os
dois primeiros séculos, as comunidades cristãs viveram sua experiência de fé como
um povo eleito, todo ele consagrado e santificado em Jesus Cristo (cf. 1Cor 11,1),
dirigindo-se uns aos outros como “santos” (cf. At 9,13; Rm 1,7; 15,25.31; 2Cor 1,1;
Ef 1,4; 1Ts 5,27), pois se sabiam todos “eleitos”, igualmente “herdeiros da promessa”
(cf. Gl 3,19; At 20,32) e chamados a exercer um sacerdócio real, oferecendo a Deus
um culto verdadeiro no Espírito (cf. 1Pd 2,9).
Encontramos,
nessa época, uma diferenciação de dons e carismas, a serviço do crescimento da comunidade
e da missão. Há clara distinção de funções e de tarefas – apóstolos, colaboradores,
líderes locais e membros da comunidade etc. –, sem que isso realize uma diferenciação
hierárquica na comunidade (cf. FAIVRE, 2001, p. 25-27). As cartas autênticas de
Paulo são disso um testemunho, pois nelas não aparece uma hierarquia definida, visto
que, na sua redação, ainda não se tinha institucionalizado o carisma.
- Na Igreja primitiva, o primado da unidade
O primeiro
a usar a palavra “leigo” foi são Clemente de Roma (35-97 d.C.), por volta dos anos
90 d.C., não para distinguir nem para hierarquizar os ministérios no movimento cristão,
mas simplesmente para designar as pessoas que não chegaram ao conhecimento espiritual,
ou seja, à vida nova em Cristo, e pensam que sua salvação vem da observância dos
preceitos e do culto da antiga aliança. São Clemente Romano fala de “homens leigos
sujeitos a preceitos leigos”.
Os fiéis em
Cristo foram homens e mulheres que, compartilhando lado a lado as condições ordinárias
da vida das pessoas do seu tempo, caminhavam como povo chamado à santidade, inseridos
na vida social, na qual, conscientes de serem escolhidos por Deus para tornar realidade
seu projeto de amor no meio do mundo, anunciavam e testemunhavam o evangelho, vivendo
como discípulos no seguimento de Jesus Cristo e testemunhando sua centralidade na
própria vida.
A conversão
não supunha para eles, regra geral, o abandono de suas famílias, de seu estado de
vida, de suas ocupações profissionais etc. Sua vida no meio do mundo, isso sim,
era paradoxal (cf. LÓPEZ, 2012, p. 54-70), como testemunha a Carta a Diogneto (V
e VI):
Os cristãos,
de fato, não se distinguem dos outros homens, nem por sua terra, nem por sua língua
ou costumes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam língua estranha,
nem têm algum modo especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por eles, graças
ao talento e a especulação de homens curiosos, nem professam, como outros, algum
ensinamento humano. Pelo contrário, vivendo em casas gregas e bárbaras, conforme
a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento
e ao resto, testemunham um modo de vida admirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem
na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam
tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é pátria deles, e em toda pátria
são estrangeiros. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos.
Põem a mesa em comum, mas não o leito; estão na carne, mas não vivem segundo a carne;
moram na terra, mas têm sua cidadania no céu; obedecem às leis estabelecidas, mas
com sua vida ultrapassam as leis; amam a todos e são perseguidos por todos; são
desconhecidos e, apesar disso, condenados; são mortos e, deste modo, lhes é dada
a vida; são pobres e enriquecem a muitos; carecem de tudo e têm abundância de tudo;
são desprezados e, no desprezo, tornam-se glorificados; são amaldiçoados e, depois,
proclamados justos; são injuriados, e bendizem; são maltratados, e honram; fazem
o bem, e são punidos como malfeitores; são condenados, e se alegram como se recebessem
a vida. Pelos judeus são combatidos como estrangeiros, pelos gregos são perseguidos,
e aqueles que os odeiam não saberiam dizer o motivo do ódio.
Em poucas
palavras, assim como a alma está no corpo, assim estão os cristãos no mundo. A alma
está espalhada por todas as partes do corpo, e os cristãos estão em todas as partes
do mundo. A alma habita no corpo, mas não procede do corpo; os cristãos habitam
no mundo, mas não são do mundo. A alma invisível está contida num corpo visível;
os cristãos são vistos no mundo, mas sua religião é invisível. A carne odeia e combate
a alma, embora não tenha recebido nenhuma ofensa dela, porque esta a impede de gozar
dos prazeres; embora não tenha recebido injustiça dos cristãos, o mundo os odeia,
porque estes se opõem aos prazeres. A alma ama a carne e os membros que a odeiam;
também os cristãos amam aqueles que os odeiam. A alma está contida no corpo, mas
é ela que sustenta o corpo; também os cristãos estão no mundo como numa prisão,
mas são eles que sustentam o mundo. A alma imortal habita em uma tenda mortal; também
os cristãos habitam como estrangeiros em moradas que se corrompem, esperando a incorruptibilidade
nos céus. Maltratada em comidas e bebidas, a alma torna-se melhor; também os cristãos,
maltratados, a cada dia mais se multiplicam. Tal é o posto que Deus lhes determinou,
e não lhes é lícito dele desertar.
Os cristãos
estiveram, portanto, inseridos em sua realidade, trabalhando, convivendo nos lugares
públicos e habituais, mantendo quanto possível o mesmo jeito e modo de ganhar a
vida, e evitando apenas os espetáculos do circo e as obscenidades do teatro (cf.
Tertuliano, Apologética, 38,4).
A ambiguidade da história, a presença nela de realidades e estruturas de pecado,
não foram ocasião de fuga para os primeiros cristãos, senão de fazer-se presentes
no meio dela como sal e luz (cf. Mt 5,13-16). E foi essa inserção, ademais, o próprio
método de evangelização.
- Na cristandade, cresce a diferenciação e se torna separação
Se algo caracteriza
a Igreja primitiva é a escassa diferenciação entre “leigos” e “clérigos”, o que
fica patente quando constatamos que a presença dos leigos na organização institucional
ocupa um papel relevante na comunidade eclesial e, depois do ano 313 d.C., nas próprias
estruturas do Império. Leigos conscientes de que o ponto de partida é o batismo.
Ele é o início do ser cristão, ou como afirmou são Jerônimo (347-420 d.C.), de maneira
breve, mas eloquente: “O batismo é o sacerdócio do leigo” (Dialogus contra luciferianos, n. 4).
Podemos dizer
que a igualdade de todos os fiéis perante Deus é um dos princípios basilares da
sociedade cristã. A diferenciação que lentamente ocorreu, durante os séculos I e
II, com o aparecimento de estruturas organizativas na comunidade, respondia à necessidade
de propor um intermediário visível entre Deus e as pessoas, donde surgiria uma classe
particular e eleita, o clero. Isso só acontece claramente no século III. É só a
partir de santo Ireneu (130-202 d.C.) que se pode falar de uma diferenciação hierárquica
entre clero, no qual se agrupam os ministérios, e leigos (cf. LÓPEZ, 2012, p. 44-46).
Não nos esqueçamos
de que foi a partir do século IV que se estabeleceu o uso de lugares diferenciados
na celebração litúrgica para o clero e o povo. Este detalhe foi testemunhado pelo
Codex Theodosianus,
um século mais tarde, ao determinar que os clérigos fossem postos na abside ou capela-mor
e os fiéis, na nave da igreja, denominada “o lugar de oração do povo” (Codex Theodosianus, 9,45). Nessa época,
clérigos e leigos se vestiam da mesma maneira e, ademais, levavam um mesmo estilo
de vida, sendo também habitual ao clero o trabalho manual. Nem sequer a recomendação
paulina da continência (cf. 1Cor 7,1-2.7-9.32-35) se havia transformado ainda na
lei canônica do celibato.
A mudança
das relações internas da comunidade, com a institucionalização da hierarquia sacerdotal
e com a desigual participação na vida litúrgica, produziu variadas reações. A mais
ferrenha foi a do Montanismo, um grupo de cristãos que vivia separado da Igreja
e se denominavam “pneumáticos” (inspirados pelo sopro do Espírito), em oposição
aos demais cristãos, considerados “psíquicos” (ou racionalistas). A resistência
que o Montanismo impunha à instituição eclesiástica tornava-o perturbador à hierarquia,
uma vez que o movimento respondia às necessidades e anseios de largas camadas cristãs,
desiludidas ante o retardamento da parúsia,
razão de sua rápida expansão. Também Orígenes (185-253 d.C.) sentiu na pele essas
mudanças, pois ele, que era leigo e professor de Teologia em Alexandria e sempre
pregara nas eucaristias diante dos bispos que as presidiam, acabou sendo proibido
de pregar. Larga controvérsia se estabeleceu, até que, no século V, são Leão Magno
(400-461 d.C.) colocou um ponto final na questão, afirmando:
Ninguém, seja
monge ou leigo, atreva-se a atribuir-se o direito de ensinar e de pregar […]. Não
se deve permitir que ninguém que não pertença à Ordem Sacerdotal se atribua a prerrogativa
de pregar, sendo conveniente que, na Igreja de Deus, todas as coisas sejam ordenadas
(LÓPEZ, 2012, p. 95).
Estava assim
estabelecida a distinção e a distância entre clérigos e leigos, acentuada por um
laicato medieval desprovido de acesso à cultura, o que provocou e reforçou a ausência
dos leigos na tarefa da difusão da fé. Só o Concílio Vaticano II, no século XX,
é que veio redimir e redimensionar, com sua eclesiologia de comunhão, o papel do
leigo na Igreja, preconizado pelo aflorar da Ação Católica durante o pontificado
de Pio XII (1939-1958) e pelos contemporâneos movimentos bíblico, litúrgico e ecumênico,
os quais o Concílio retomou para fazer ressurgir uma imagem de Igreja menos hierárquica,
descrita como Corpo Místico, comunhão de pessoas. Isso se expressará de maneira
especial com a imagem bíblica da Igreja povo de Deus, termo que, em padres tão significativos
como são João Crisóstomo (349-407 d.C.), é referido como laós.
Conclusão
O Concílio
Vaticano II, na perspectiva de sua eclesiologia de comunhão e do resgate do conceito
fundamental de povo de Deus, é o primeiro concílio, na bimilenar história da Igreja,
a dedicar-se ao tema da atividade apostólica dos cristãos leigos e o faz com a publicação
do decreto Apostolicam Actuositatem,
na última sessão conciliar, em 18 de novembro de 1965. Como não podia ser diferente,
subjaz ao decreto uma concepção do leigo como destinatário da ação da Igreja.
Após o Sínodo
de 1987, João Paulo II foi o primeiro papa da história da Igreja a publicar um documento
pontifício sobre os leigos. Vinha a público, em 30 de dezembro de 1988, a Exortação
Apostólica Pós-Sinodal Christifideles
Laici, sobre a vocação e missão do cristão leigo na Igreja e no mundo,
uma tentativa de retomar, aprofundar e até mesmo redirecionar o caminho conciliar.
Dez anos passados, a Congregação para a Doutrina da Fé emitiu uma Instrução acerca de algumas questões sobre a colaboração
dos fiéis leigos no sagrado ministério dos sacerdotes. O título já deixa
notar o claro incômodo causado por algumas Igrejas locais que investiram no protagonismo
laical, outrora solicitado e instigado.
Foi então
a vez de os bispos do Brasil entrarem em cena e indicarem, de modo claro, qual era
o direcionamento para a “missão e ministérios dos cristãos leigos e leigas na Igreja
e no mundo”, título dado ao Documento 62 da CNBB, aprovado na sua 37ª Assembleia
Geral, em abril de 1999. Aqui o conceito de leigo já não é de destinatário, mas
surge como interlocutor da Igreja, ou seja, alguém que está em condições de dialogar.
Passados 18
anos, os bispos do Brasil empenharam-se numa atualização daquele documento e publicaram,
em 2017, o Documento 105, Cristãos
leigos e leigas na Igreja e na sociedade, sal da terra e luz do mundo,
claro avanço no conceito em questão, pois agora nossos bispos chamam os cristãos
leigos e leigas a serem sujeitos plenos da Igreja. Para tanto, convocou-se um Ano
Nacional do Laicato, de 26 de novembro de 2017 a 25 de novembro de 2018, com o objetivo
de investir na formação destes que são a incontável maioria do povo de Deus, os
leigos e leigas, para que tenham clara sua identidade, vocação e missão, na Igreja
e na sociedade. Esta configura o seu primeiro e prioritário âmbito de ação, naquela
se realiza sua segunda tarefa, em colaboração com a missão dos pastores.
Estamos diante
de uma grande oportunidade para tomar consciência do enorme processo que passa por
nós e continua no amadurecimento da compreensão do projeto de Deus, revelado em
Jesus Cristo, projeto que vai tomando corpo em nós, pastores e fiéis, clero e laicato,
quando juntos nos empenhamos na mesma tarefa de edificar o Reino de Deus em nosso
mundo carente do fermento, do sal e da luz do evangelho.
Bibliografia
FAIVRE, Alexandre. Los
primeros laicos: cuando la Iglesia nascía al mondo. Burgos: Monte Carmelo,
2001.
GONZÁLEZ, Miguel Anxo Pena. La edad patrística y la configuración
de una espiritualidad laical. In: LÓPEZ, Elisa Estévez (org.). Hombres y mujeres de espíritu en el siglo XXI.
Salamanca: Universidad Pontificia, 2012.
LÓPEZ, Elisa Estévez. Los primeros cristianos como modelo de espiritualidad
laical. In: ______. Hombres y
mujeres de espíritu en el siglo XXI. Salamanca: Universidad Pontificia,
2012.
______. Hombres
y mujeres de espíritu en el siglo XXI. Salamanca: Universidad Pontificia,
2012, p. 95.
(*)Jean Poul Hansen
Pe. Jean Poul Hansen pertence ao clero da Diocese da Campanha (MG). Estudou Teologia no Instituto Teológico Interdiocesano São José, em Pouso Alegre (MG). É mestre em Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade de Salamanca, na Espanha, docente na Faculdade Católica de Pouso Alegre (Facapa), coordenador diocesano de pastoral e assessor da Pastoral Catequética na sua diocese. É também membro da equipe de redação da Revista ECOando e pároco da Paróquia Nossa Senhora da Conceição, em Careaçu (MG). E-mail: hpj76@hotmail.com
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