A Eucaristia no IV Evangelho: significante e significado
Por Prof. José Luiz Gonzaga do Prado
1.
Introdução
R. E. Brown
observa com perspicácia que, no lugar da instituição da Eucaristia da Tradição paulino-sinótica,
o IV Evangelho traz o Lava-Pés [1]. O Evangelho segundo João não registra na última
Ceia a tradição da instituição da Eucaristia, comum a Paulo e aos sinóticos. No
lugar da Eucaristia põe o Lava-Pés. Em vez de oferecer o pão partido e o cálice
partilhado, no IV Evangelho, Jesus se ajoelha aos pés de cada um, de toalha na cintura
e bacia nas mãos. Em vez de dizer: “Fazei isto em memória de mim!”, diz: “Fazei
do jeito que eu fiz!” Em vez de mandar repetir o rito, manda reproduzir a atitude.
Significa que a comunidade joanina dava mais valor ao significado do que ao significante,
queria mais fazer valer o compromisso do que repetir o rito. E podemos nos perguntar
o que significa “que se faça a mesma coisa que ele fez naquela Ceia derradeira”?
1.
A Tradição
paulino-sinótica
Paulo e os
sinóticos, ao relatar a instituição da Eucaristia, estariam mais preocupados com
o significante do que com o significado? Estariam pretendendo preservar o rito,
a celebração, menos que a vida?
Sabemos que
João é uns 35 anos mais recente que a Primeira aos Coríntios, cerca de 20 anos mais
recente que Marcos e de 5 a 10 anos posterior a Lucas e Mateus. Quando o IV Evangelho
foi escrito, a celebração da Eucaristia, o “Partir do Pão” como Lucas aprecia chamar,
já se estaria tornando mera formalidade? Já teria caído na rotina? Ter-se-ia esvaziado
de sentido?
Não se pode
negar que alguma “burocratização” da Ceia do Senhor já viesse ocorrendo. A mais
antiga narrativa da Instituição (1Cor 11,23-26) visa exatamente a obviar essa “burocratização”.
O “pão da igualdade”, pouco mais de 20 anos depois de Jesus, vinha sendo ocasião
de se exibirem desigualdades: “enquanto um passa fome o outro fica embriagado” (1Cor
11,21).
Dois terços
da população de Corinto eram feitos de escravos e o mesmo, senão proporção ainda
maior de escravos, devia ocorrer nas comunidades cristãs da cidade (1Cor 1,26).
E a “Ceia do Senhor” estava sendo ocasião para uns poucos ricos, letrados e bem-nascidos
humilharem o grosso da comunidade, os escravos, os pobres (1Cor 11,22). Aquilo já
não era mais a Ceia do Senhor (1Cor 11,20) [2].
Celebrar a
Ceia do Senhor é lembrar sua morte humilhante — é contradição os ricos dela se servirem
para humilhar “os que nada têm”. Celebrar a Ceia do Senhor é comemorar a entrega
que ele fez da própria vida — é contradição não saber esperar pelos pobres, recusar-se
a partilhar com eles, pensar só em si. Celebrar a Ceia do Senhor é partilhar a mesa
comum, que só pode nascer da humildade e da doação, e que “condena” este mundo desigual,
(1Cor 11,32) “até que ele venha” instaurar o mundo novo.
Os sinóticos,
cerca de vinte ou mais anos após Paulo, insistiram mais do que ele no significado
escatológico da Ceia, na plenitude do Reino; e também insistiram no sangue, a morte
violenta em favor dos discípulos e da multidão. Além disso, fazem a ligação da Ceia
com a Páscoa, mostrando Jesus como o Cordeiro cujo sangue tinge as portas dos fiéis,
libertando-os da escravidão. Toda essa teologia nasceu, certamente, de uma necessidade
prática. Mostra os significados que uma possível “burocratização” da “partilha do
pão” corria o risco de pôr a perder.
Se no início
da Tradição paulino-sinótica já ocorriam desvios e mal-entendidos, pode-se crer
que um pouco mais tarde, quando o IV Evangelho foi escrito, esses mal-entendidos
se tivessem acentuado.
E não é de
se admirar também que, com o correr dos séculos, em função das disputas teológicas,
a humanidade, a humilhação, a entrega da própria vida por parte de Jesus tenham
sido praticamente excluídas da reflexão eucarística, em favor da presença divina,
da adoração, da exaltação, do triunfo, a ponto de se usar a Procissão de Corpus
Christi para dar prestígio aos figurões do lugar, mesmo para humilhação e em detrimento
do povo, como ocorreu nos “Grandes Triunfos Eucarísticos” de Diamantina e de Vila
Rica [3]. Pena que a tradição ficou com o triunfo, enquanto a Tradição era a da
entrega da própria vida, a da morte humilhante, a da partilha do pão, na qual “ensaiamos
a festa e a alegria, fazendo comunhão”!
2.
A teologia
eucarística de João
Se o IV Evangelho
não fala da Instituição da Eucaristia, não quer dizer que não fale do seu significado.
Pelo contrário, é o evangelho que mais aprofunda a teologia eucarística. A ponto
de alguns dos doze (que estariam representando as comunidades de Tradição paulino-sinótica,
que Brown chama de Igrejas Apostólicas[4]), chegarem
a vacilar. Ao que parece essas Comunidades ou Igrejas sentiram alguma dificuldade
para aceitar a teologia eucarística da Comunidade do Discípulo Amado. Mas aceitaram:
“A quem iremos, Senhor, só tu tens palavras de vida eterna!” — diz Pedro, seu representante
máximo.
A linguagem
figurada, simbólica, ou de duplo
sentido, é uma das características mais marcantes do IV Evangelho a ponto de Oscar
Cullmann tê-la como sua chave interpretativa[5]. Assim, para deixar o
leitor mais atento ao sentido figurado das palavras de Jesus, o IV Evangelho costuma
usar o seguinte artifício: Um personagem (ou grupo deles) entende literalmente o
que Jesus diz e faz uma pergunta tola, ridícula, interpretando suas palavras do
modo mais grosseiro possível. Assim é que Nicodemos pergunta se será preciso ficar
pequenino e entrar no ventre da mãe para “nascer de novo”. A mulher samaritana pede
que lhe dê da água que vira fonte interior, para que ela não precise mais buscar
água. O Evangelista quer dizer ao leitor: “Não seja ridículo como eles!”.
No capítulo
da Eucaristia[6] são os judeus que fazem a pergunta tola: “Como é que este
homem vai nos dar sua carne para comer?”. Não pensaram no que significaria o comer
a carne de Jesus, perguntaram como aquilo poderia funcionar na sua maneira de ver
física e grosseira. Jesus não responde à questão do como, insiste no significado
e nas consequências do comer sua carne e beber seu sangue, alimentar-se
da sua doação cotidiana e da sua cruz. Eles entenderam e disseram: “É dura demais
esta palavra! Quem a pode suportar?”.
Será que não
nos temos preocupado mais em dar uma resposta aos judeus do que em descobrir o que
significa “comer a carne e beber o sangue”? A teologia de João não está no como, mas no significado. A pergunta sobre o
“como” é tola, ridícula. Só serve para mostrar que a palavra de Jesus não se deve
entender em sentido literal.
3.
Vocabulário
joanino
Para entender
o sentido das frases precisamos primeiro entender o significado das palavras. E,
muitas vezes, as mesmas palavras têm significados diferentes em bocas ou em textos
diferentes.
***
Comer
e beber, no sentido literal
têm, evidentemente, em todos os tempos e lugares o mesmo significado. No sentido
figurado, porém, o significado pode ser totalmente diverso com quase a mesma evidência.
Na história
dos Primórdios, comer da “árvore do conhecimento do bem e do mal” significa experimentar
o gosto de ser igual a Deus, de ser o próprio critério, de ser absoluto.
No Apocalipse,
comer carne imolada aos ídolos significa praticar a idolatria, especialmente o culto
ao Imperador.
Em 1 Cor e
em Rm, Paulo discute o significado diferente que pode ter para mim e para o outro
o comer das carnes imoladas aos ídolos.
1Cor 10,14-21
explica bem o significado do comer do altar como participação no sacrifício, e comer,
entrar em comunhão, com o Corpo de Cristo, a comunidade.
Fora do capítulo
6, João só fala em comer 2 vezes: Primeiro no final do episódio da Samaritana, quando
os discípulos dizem: “Come, mestre!”. E ele: “Tenho para comer um alimento que vocês
não sabem!”. É “realizar a vontade do Pai, terminar a obra”. E ele diz “está terminado”,
só quando “inclina a cabeça e comunica o espírito”. O alimento que Jesus come é,
pois, realizar o projeto do Pai, é dar a própria vida e comunicar o espírito, ou
seja, a capacidade de também dar a própria vida.
E, depois,
no capítulo 18, diz que os judeus não quiseram entrar na casa de Pilatos a fim de
não se contaminarem para poderem “comer a Páscoa”. Aqui a ironia de João irrompe
com força: Vão assassinar um inocente (o verdadeiro cordeiro pascal), mas têm escrúpulos
de entrar na casa de um gentio para poder estar puros a fim de comer aquela páscoa
que virou mera formalidade. Aqui comer é participar da celebração, é praticar o
gesto ritual da Ceia Pascal agora destituída de sentido.
Podemos, então,
resumir o significado do comerem provar, experimentar, participar, entrar em comunhão
com o que o alimento significa e com os comensais, digerir, assimilar, cumprir a
missão de dar a própria vida.
***
Carne
e sangue não no sentido
literal, mas como indicação de um todo, é expressão semita bem semelhante à nossa
“carne e osso”. Carne é, porém, palavra-chave da teologia joanina. “E o Verbo se
fez carne”, segundo Bultmann (TheoL
des NT 46, p. 386), é o núcleo do IV Evangelho. Para Comblin deveríamos
traduzir “O Verbo se fez pobreza”.
O IV Evangelho
insiste na palavra sarx, que traduz o hebraico
basar, parecendo desconhecer
a palavra soma, preferida por
Paulo e pelos sinóticos, ao falarem da Eucaristia. Na linguagem bíblica, sarx, carne, muito mais que soma, corpo, carrega consigo a ideia
de fraqueza, de limitação, de pobreza em todos os sentidos, a ponto de Paulo, diferentemente
de João, dar-lhe a conotação negativa de “instintos egoístas” como traduz a Bíblia
Pastoral.
Sarx,
carne, de Jesus significa,
portanto, para João, o Jesus pobre, com fome, cansado, suado, mas ainda pronto a
servir, a dar atenção, a acudir quem dele precisa.
***
Comer
a carne é, pois, ingerir,
assimilar — não nos intestinos, como pensavam os judeus — mas na mente, na própria
vida, no próprio comportamento, a doação cotidiana de Jesus. O engolir uma hóstia
vale, se significa realmente pôr para dentro da gente o mesmo empenho humano, pobre
e sofrido de Jesus a serviço dos outros. Senão…
***
E o sangue? É derramado. É a morte violenta, a vida entregue,
que nos purifica do pecado (1Jo 1,7). Paulo e os sinóticos insistem nisso desde
que colocam a Ceia de Jesus no momento decisivo: ir em frente, encarar a morte que
lhe preparam, ou fugir dela? A decisão é por ir em frente, o que significa entregar-se
à morte violenta: “É o meu corpo entregue, é o meu sangue derramado!”. Gesto de
suprema coragem e valentia.
***
Beber
o sangue consequentemente
significa deixar escorrer para dentro da gente a coragem que Jesus teve ao dar o
passo decisivo, que o levaria à morte violenta. E significa, à medida que significa!
***
“É o espírito que dá a vida, a carne não vale nada” (6,63). Aqui
o Evangelista toma a palavra espírito, por oposição a carne, no sentido de interpretação
figurada, por oposição a interpretação literal: “As palavras que vos falei são espírito
e vida”, têm sentido figurado profundo e vital que alguns não aceitam, acham duro
demais. E a “carne” como interpretação literal das palavras de Jesus não estaria
significando exatamente uma “coisificação” da Eucaristia?
No geral do
IV Evangelho, porém, “espírito”, sobre o significado semita de força interior, significa
a força de amar a ponto de entregar a própria vida. Esse espírito Jesus o comunica
ao acabar de morrer (19,30), é simbolizado na água que, com o sangue, escorre de
seu peito aberto pela lança do ódio gratuito (19,34), e transforma-se numa fonte
interior a jorrar vida definitiva (4,14), rios de água viva, amor de dar o sangue,
produzindo mais amor de dar o sangue, a partir do último dia, quando Jesus é glorificado
na cruz (7,37-39)[7].
***
“Este pão
é minha carne para a vida do mundo”. Pensar-se-ia naturalmente
em vida para quem come e bebe, para quem assimila Jesus. Aqui, porém, Jesus fala
em vida para o mundo.
Estará o mundo
sob o domínio da morte? Que significa “vida para o mundo”? Uma resposta breve e
clara ouvi na homilia (conversa) numa comunidade rural: “Jesus dá o sangue e manda
a gente dar o sangue pelos outros, no nosso mundo cada um está querendo é chupar
o sangue do outro”. Isso nos leva à morte.
Ele é “o Cordeiro
que tira o pecado do mundo”, e o pecado do mundo é este “chupar o sangue”. Há uma
discussão de Jesus com os judeus, representantes da “ordem” deste mundo, na qual
muito se fala em pecado, filiação diabólica e em morte (capítulo 8). Ela é colocada
exatamente junto ao Tesouro do Templo, lugar onde Deus foi substituído pelo dinheiro,
sua proposta de vida, pela ganância. “Todos os que vieram antes de mim (os antigos
dirigentes) são assaltantes e ladrões… que só vêm para roubar, matar, destruir.
Eu vim para que tenham a vida e a tenham em plenitude” (10,8. 10).
***
“Vossos pais
comeram o maná no deserto, mas morreram… quem comer deste pão não
morrerá, viverá para sempre”. A referência ao mar, à montanha e à proximidade da
Páscoa, no início do capítulo 6, já colocara o episódio todo sob o perfil do êxodo.
O paralelo é claro, então: o maná não garantiu a entrada na Terra Prometida, pois
morreram no deserto, enquanto o comer este outro pão descido do céu, o assimilar
a doação sárquica de Jesus, dá
a vida definitiva. Quem não come e bebe, quem não ingere o “dar o sangue” de Jesus,
não tem vida em si mesmo (v. 54), não produz vida, produz morte. Mas quem come,
permanece com Jesus, adere a ele, faz como ele (v. 56), permanece no mesmo amor
dele (15,9) e assim produz vida e participa também da vida permanente que ele tem
com o Pai (v. 57). Ressuscita, passa da vida meramente biológica (bios) para outra categoria de vida
(zoé aiônion), vida,
duradoura, definitiva ou permanente.
5.
Conclusão
A Igreja do
IV Evangelho é, sem sombra de dúvidas, a menos institucional, a mais desestruturada
do Novo Testamento. Por isso mesmo, esse evangelho é o que mais insiste na radicalidade
dos significados e das propostas.
Na Ceia, que
não é pascal, pois o Cordeiro só será morto no dia seguinte, o lava-pés, que não
se institucionalizou, substitui a partilha do pão, que se institucionalizou. Aí
Jesus tira e depois retoma o manto, significando que entrega sua vida e a retoma
novamente. Mas ele amarra uma toalha à cintura como avental que nunca mais tira.
O serviço não termina no gesto de lavar os pés, isso também pode se “burocratizar”.
O servir continua até a cruz, até a morte.
Duas
pequenas perguntas:
1) Será que,
fazendo do Cristo eucarístico um Senhor triunfante, não estaremos fazendo o mesmo
que Simão Pedro (“Tu não me lavarás os pés nunca!”), que não admite um Cristo humilhado
e servidor, por receio de precisar “ter parte com ele”?
2) Os que se preparam para o ministério presbiteral: estarão tão ansiosos pela oportunidade de colocar-se a serviço do povo, ajoelhar-se a seus pés sujos a fim de lavá-los, como anseiam pelo momento de presidir com poder uma Celebração Eucarística?
______________________________
[1] As Igrejas dos Apóstolos, Paulus, S.
Paulo, 1986, p. 111.
[2] Notar a diferença de mentalidade
com relação à atual teologia eucarística: Para Paulo o que faz com que a Ceia do
Senhor não seja autêntica, não é a falta de ministro ordenado ou erro na “matéria”
ou na “forma”, é a falta de significado,
é a incoerência entre significante e significado.
[3] HOORNAERT, E., Formação do Catolicismo Brasileiro,
Vozes, Petrópolis, 1974, p. 97.
[4] BROWN, R.,A Comunidade do Discípulo Amado, Paulus,
S. Paulo, 1984, pp. 84-92.
[5] CULLMANN, O., Der Johaneische Gebrauch doppeldeutiger Ausdrücker
als Schlüssel zum Verständnis des viertes Evangeliums: TZ 4 (1948) 360-372.
[6] COMBLIN, J., A Força da Palavra, Vozes, Petrópolis,
1986, p. 25.
[7] Segundo J. Mateos e J. Barreto a expressão último dia, que ocorre pela primeira vez no capítulo 6, significa o último dia de Jesus, o dia da sua glorificação (morte), o sexto dia, dia da nova criação do homem, o dia mais solene da festa no trecho citado, e não o dia escatológico esperado por Marta para um futuro não admitido por Jesus (11,24-26).
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