SOLENIDADE DE SANTA
MARIA, MÃE DE DEUS
Por Johan Konings, sj(*)
Nascido
de mulher, nascido sob a Lei
I. Introdução geral
Celebramos a oitava de
Natal, a solenidade da Santa Mãe de Deus. Até a reforma litúrgica do Concílio
Vaticano II, era chamada festa da Circuncisão de Nosso Senhor. O evangelho
relata que Jesus recebeu a circuncisão, acompanhada da imposição do nome, como
prescreve a tradição de Israel. Esse rito significava a integração do “nascido
de mulher” na comunidade judaica, como ressalta a segunda leitura. A inserção
de Jesus na humanidade e no povo passa pelo útero de Maria. Jesus nasce de mãe
judia e submetido à Lei judaica.
Como, no século IV, foi escolhido o dia 25 de dezembro para
celebrar o Natal, a oitava coincide com o ano-novo romano, fixado em 1º de
janeiro por Júlio Cesar. Assim, a festa de hoje coincide com o início do ano
civil, atualmente celebrado como dia da paz mundial. Neste contexto, cabe bem a
primeira leitura, que evoca a bênção do ano-novo israelita (Nm 6,27), reforçada
pelo salmo responsorial. Aliás, o próprio nome que Jesus recebe sugere que ele
é a bênção: yeshua, “o Senhor
salva”. Maria deu Jesus à humanidade como um presente de Deus (cf. 4º domingo
do Advento), e Deus faz “brilhar sua face” sobre o povo e sobre a humanidade no
nome de Jesus. (No dia 3 de janeiro há uma celebração própria do Santíssimo
Nome de Jesus.)
Recentemente, a solenidade de hoje foi posta sob o patrocínio de
Maria, “Mãe de Deus”, lembrando o título de Theotokos, “Genitora (Mãe) de Deus”, que lhe foi dado
pelo Concílio de Éfeso em 431 d.C. Decerto Deus não tem mãe, mas escolheu Maria
como mãe para o Filho que em tudo realiza a obra de Deus. Santificou em Maria a
maternidade quando o Filho assumiu a humanidade. A maternidade é, como a
humanidade, capax Dei, capaz de
receber Deus. Deus é tão grande, que conhece também o mistério da maternidade,
e por dentro! Para captar isso, talvez tenhamos de modificar um pouco nosso
conceito de Deus.
Deus não ama em geral,
abstratamente, mas por meio de pessoas e comunidades concretas. Só aquilo que é
concreto pode ser realidade. Assim como Maria foi, no seio do povo de Israel, o
caminho concreto para o Salvador, comunidades concretas serão portadoras de
Cristo, salvação de Deus para o mundo hoje. Por isso, Maria é protótipo da
Igreja e das comunidades eclesiais.
II. Comentário dos textos bíblicos
1. I leitura (Nm 6,22-27)
A 1ª leitura é a bênção do
sacerdote de Israel sobre o povo. Na manhã da criação, Deus abençoou os seres
humanos e os animais, dando-lhes alimento e força de vida (Gn 1,28-30). A
bênção de Deus é um augúrio de paz para a natureza e o ser humano. Para quem se
coloca diante dessa bênção, Deus deixa brilhar “a luz de sua face”, sua
graciosa presença. Só Deus pode realmente abençoar, benzer, “dizer bem”; os
humanos abençoam invocando o nome de Deus. Em continuidade com este pensamento,
o salmo responsorial expressa um pedido de bênção (Sl 67[66],2-3.5-6.8).
2. II leitura (Gl 4,4-7)
A 2ª leitura é tomada da
carta de Paulo aos Gálatas, que é a “carta” (no sentido de documento) da
liberdade cristã. Cristo veio para nos tornar livres (Gl 5,1). “Nascido de
mulher, nascido sob a Lei” (Gl 4,4), viveu entre nós sob o regime passageiro
que vigorava no Antigo Testamento. Vivendo conosco sob o regime da Lei,
ensinou-nos a perceber e interpretar a Lei como dom do Pai e não como
escravidão, à diferença dos contemporâneos de Paulo. Estes queriam impô-la como
um jugo aos cristãos da Galácia, que nem sequer eram judeus de origem. Já não
somos escravos, diz Paulo, mas filhos; portanto, livres. O Filho de Deus
tornou-se nosso irmão, nele temos o Espírito que, em nosso coração, ora: “Abba,
Pai” (4,6 – provavelmente uma alusão ao pai-nosso rezado nas comunidades, cf.
Mt 6,9-13; Lc 11,2-4).
Comemorando a vinda de
Cristo, pensamos especialmente na “mulher” que o integrou em nossa comunidade
(Gl 4,4). “Nascido de mulher” é uma maneira bíblica para designar o ser humano
(cf. Mt 11,11; Lc 7,28).
3. Evangelho (Lc 2,16-21)
O evangelho de hoje
menciona dois temas: a adoração dos pastores junto ao presépio de Belém e a
circuncisão de Jesus no oitavo dia, acompanhada da imposição de seu nome. O
primeiro tema já foi focalizado no evangelho da missa da aurora no Natal, e na
mesma linha podemos destacar, na festa da Mãe de Deus, que “Maria guardava
todos estes fatos e meditava sobre eles no seu coração”.
Nossa atenção, porém, vai
para o segundo tema, a circuncisão com a imposição do nome, que se harmoniza
com o da 2ª leitura. Jesus sujeita-se à antiga Lei (cf. 2ª leitura) e recebe o
nome dado pelo anjo, ou seja, por Deus mesmo (Lc 1,31-33; Mt 1,21; cf. Hb
1,4-5): “O Senhor salva”. Jesus é o salvador enviado por Deus à humanidade.
III. Dicas para reflexão
– O
nome e a cidadania de Jesus. Celebramos hoje a “cidadania” de
Jesus: seu nome, sua identidade, seu lugar na sociedade humana. A 2ª leitura
evoca duas dimensões da inserção de Jesus na sociedade humana: nasceu de mulher, membro da
família humana; e nasceu
sujeito à Lei, cidadão de uma comunidade política e religiosa.
Exatamente por assumir a lei de um povo concreto, ele é verdadeiro
representante da humanidade. Quem não pertence a nada não representa ninguém.
Porque concretamente foi judeu é que Jesus pôde ser o salvador da humanidade
toda. Integrado na comunidade judaica pela circuncisão, no oitavo dia recebe o
nome de Jesus, escolhido por Deus mesmo. Muita gente, quando escolhe o nome do
filho, projeta nisso uma expectativa. Maria e José não escolheram o nome.
Alinharam-se com Deus, que projeta seu próprio plano de salvação no nome de
Jesus: “O Senhor salva”. O nome de Jesus assinala a participação pessoal de
Deus na história da comunidade humana e política. Por isso, assim como o
sacerdote Aarão abençoava os israelitas invocando o nome do Senhor Deus,
podemos benzer a nós e a todos com o nome de Jesus (1ª leitura).
Deus respeita a Lei que
ele mesmo comunicou ao povo. Seu Filho nasceu sob a Lei e foi circuncidado
conforme a Lei. As estruturas políticas e sociais do povo, quando condizentes
com a vontade de Deus, são instrumento para Deus se tornar presente em nossa
história. Deus mostrou isso em Jesus. E quando as leis e estruturas são
manipuladas a ponto de se tornarem injustas, o Filho de Deus as assume para
transformá-las no sentido do seu amor. Por isso, Jesus morreu por causa da Lei
injustamente aplicada a ele.
– Maria,
“porta do céu”. Em Jesus, Deus quis ter uma mãe. A inserção de
Deus em nossa história passa pela ternura materna. Sem esta não se pode
construir a história conforme o projeto de Deus. Assim, Deus, na “sua” história
salvífica, santificou uma dimensão especificamente feminina. Nas ladainhas
chamamos Maria “Porta do Céu”. Porta para nós subirmos e para Deus descer.
Jesus nasceu de mulher e
sob a Lei, de mãe humana e dentro de uma sociedade humana. Foi acolhido na
sociedade judaica pela circuncisão e pela imposição do nome, como teria
acontecido a qualquer indivíduo do sexo masculino entre nós que tivesse nascido
naquela sociedade. Maria é, portanto, mãe do verdadeiro homem e judeu Jesus de
Nazaré, mas nós a celebramos hoje como Mãe de Deus. Esse título deve ser
entendido como “Genitora (é assim que o Concílio de Éfeso a chama) do Filho de
Deus”. Este Filho foi igual a nós em tudo, menos no pecado, e viveu e sofreu na
carne de maneira verdadeiramente humana (cf. Hb 4,15; 5,7-8). Duas décadas
depois de Éfeso, o Concílio de Calcedônia o chamou “verdadeiramente Deus e
verdadeiramente homem”. É por ser mãe de Jesus humanamente que Maria é chamada
mãe de Deus, pois a humanidade e a divindade em Jesus não se podem separar.
Dando Jesus ao mundo, Maria faz Deus nascer no meio do povo. Ela é o ponto de
inserção de Deus na humanidade. Toda mulher-mãe é ponto de inserção de vida
nova no meio do povo. Em Maria, essa vida nova é vida divina. Deus se insere no
povo por meio da maternidade que ele mesmo criou.
Assim como Maria se tornou
“Porta do Céu”, a comunidade humana é chamada a tornar-se acesso de Deus ao
mundo e do mundo a Deus. A vida do povo, sua “lei”, suas tradições, cultura e
estruturas políticas e sociais devem ser um caminho de Deus e para Deus, não um
obstáculo. Por isso é preciso transformar a vida humana e as estruturas da
sociedade quando não servem para Deus e não condizem com a dignidade que Deus
lhes conferiu pelo nascimento de Jesus de mulher e sob a Lei.
– Jesus
de Maria, bênção do povo. Para os cristãos, o novo ano
litúrgico já começou no 1o domingo do
Advento, mas no dia 1o de janeiro os cristãos
participam como cidadãos do ano-novo civil com a festa de Maria, Mãe do Deus
salvador, Jesus Cristo. Queremos felicitar de modo especial a Mãe da família
dos cristãos – pois, ao visitarmos hoje a casa de nossos amigos, não
cumprimentamos primeiro a dona da casa?
A Igreja marcar este dia com a festa de Maria, Mãe de Deus, é um
voto de paz e bênção para o mundo! A bênção maior da parte de Deus: o seu
Filho, Jesus. Os nossos votos de paz e bênção devem ser a extensão da bênção
que é Jesus e que Maria fez chegar até nós. Desejamos paz e bênção aos nossos
amigos em Jesus. Então, nossos votos serão profundamente cristãos, não apenas
fórmula social. Desejaremos aos nossos semelhantes aquilo que veio até nós em
Jesus: o amor de Deus na doação da vida para os irmãos. É isso que se deve
desejar neste dia mundial da paz. Somente onde
reinam os sentimentos de Jesus pode existir a paz que vem de Deus.
Johan Konings, sj
Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde
leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia
Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente é professor de
Exegese Bíblica na Faje, em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos
seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), evangelhos
(especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre outras obras, publicou:
Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia
dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C.
E-mail: konings@faculdadejesuita.edu.br
Fonte:
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/1o-de-janeiro-santa-maria-mae-de-deus-2/
Nenhum comentário:
Postar um comentário