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BANQUETE MESSIÂNICO
No meio da sequência de Mc surgem de repente cinco evangelhos tomados de Jo. A razão é que o episódio da multiplicação dos pães encontra-se muito mais elaborado em Jo, e também o fato de Mc ser mais breve que os outros evangelhos, deixando espaço para alguns trechos de Jo que, senão, ficariam sem lugar na liturgia dominical. A versão joanina da multiplicação do pão (evangelho) é semelhante à de Mc, coloca, porém, os acentos de modo diferente. Enquanto Mc lembra a situação do povo no êxodo (os grupos de 50 e 100 etc.), Jo acrescenta alguns detalhes que evocam a atuação do profeta Eliseu (cf. 1ª leitura): os pães “de cevada”, o “rapaz” (cf. Giezi em 2Rs 4,39).
Com isso se relaciona a reação do povo no fim: Jesus é “o profeta que deve vir ao mundo” (Elias, a quem Eliseu é intimamente associado) (Jo 6,14). Também a distribuição dos papéis é diferente. Enquanto em Mc os discípulos tomam a iniciativa de pensar em comida e Jesus os instrui para que eles mesmos deem de comer ao povo (Mc 6,37; desde 6,7 estamos em contexto de “aprendizagem”), Jo coloca a iniciativa soberanamente nas mãos de Jesus; a gente até acha que ele nem quis pregar, somente multiplicar pão (6,5-6). Em Mc, o mistério do Cristo é velado e os discípulos, incompreensivos. Em Jo, Cristo radia uma luz divina e os discípulos são testemunhas – igualmente incompreensivas – de uma revelação de seu mistério em forma de um “sinal” (como João chama os milagres). Mistério que já se faz pressentir pela palavrinha “Donde (compraremos pão)?” (6,5), que, para o leitor iniciado no mistério de Jesus, já sugere a resposta: “de Deus”. É o que o “Discurso do Pão da Vida” (cf. próximos domingos) mostrará. O Jesus de Mc esconde para as categorias judaicas a natureza de sua missão, porque são inadequadas para a compreender; o de João revela para o cristão a glória de Deus. Mas o resultado é o mesmo: quem fica com as categorias antigas, fica por fora.
No fim do episódio, Jo descreve com insistência a quantia de restos que sobraram, sublinhando mais uma vez a revelação da obra de Deus em Jesus Cristo: nada (e ninguém) se pode perder (cf. 6,12, cf. 6,38). Depois, mostra o outro lado da medalha; povo reconhece em Jesus o profeta que repete as façanhas de Eliseu e Elias, o profeta escatológico que deve vir ao mundo (cf. Ml 3,1.23; Dt 18,15); mas não reconhece categoria divina. Quer prender Jesus nas categorias messiânicas tradicionais: proclamá-lo rei. Mais tarde, ficará claro em que sentido Jesus é rei (Jo 18, 33-37). Mas, neste momento, Jesus não pode aceitar o messianismo do povo; retira-se na solidão (6,14-15, cf. semelhante recusa do messianismo judeu em Mc 8,27-33).
A 2ªleitura ajuda para sentir o ambiente de reunião escatológica que marca a multiplicação dos pães, realização do banquete escatológico anunciado em Is 25,6-8. Pois esse banquete é para todos os povos – universalismo realizado de maneira plena na unidade da Igreja, sucintamente resumida por Paulo em Ef 4,4-6: um só Corpo, um só Espírito, uma só esperança, um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai, sete (!) elementos que fazem da Igreja uma unidade divina. Para os leitores da carta, essa unidade era, muitas vezes, problemática. Nós estamos acostumados a dizer que a Igreja é una, e ficamos cegos para as reais divisões que existem no seu seio; estamos “ideologicamente proibidos” de enxergá-las (não pelo Papa, mas por nosso próprio comodismo). Contudo, será bom checar a realização dessa unidade. E melhor ainda, meditar sobre as qualidades que servem de base para essa unidade: a humildade, a mansidão, a paciência, o mútuo suportar-se na caridade. Não parecem qualidades subversivas, mas são: a subversão da bondade irresistível, desarmada e desarmante, o “vínculo da paz”, que garante a unidade do Espírito. Não entrar no jogo das oposições intermináveis, mas, a partir de um lúcido reconhecimento das divisões existentes, superá-las, pela erradicação firme e paciente de suas causas mais profundas (portanto, não por um cômodo encobrimento da realidade). Eis aí o caminho para a verdadeira unidade universal dos irmãos, para que juntos possam sentar-se à mesa do banquete do Senhor.
Do livro “Liturgia Dominical”, de Johan Konings, SJ, Editora Vozes
Mensagem
O
pão da multidão e a voz da Igreja
Em certa sociedade é comum ouvir-se críticas à ação social da Igreja e, muito mais, às suas declarações sobre a política econômica. Julga-se que a Igreja não deve tocar em assuntos “temporais”, mas ocupar-se com o “espiritual”. Mas a violência, a impunidade, a falta de saúde e educação, a fome de grande parte da população não dizem respeito ao Reino de Deus que Jesus veio anunciar e inaugurar e que a Igreja pretende atualizar?
No domingo passado, Mc descreveu a chegada de Jesus diante da multidão: compadeceu-se deles, porque eram como ovelhas sem pastor. E começou a ensinar, com a consequência de que, no fim do dia, teve de alimentar a multidão. Hoje, para descrever esse gesto, a liturgia prefere dar a palavra ao evangelista João (evangelho), porque nos domingos seguintes vai continuar o “sermão do Pão da Vida”, que não está em Mc.
A maneira em que João apresenta a multiplicação dos pães salienta que Jesus não agiu surpreendido pelas circunstâncias (a hora avançada), mas porque ele quis apresentar pão ao povo ao povo (Jo 6,5-6) – para depois mostrar qual é o verdadeiro “pão”. Se em Mc Jesus manda os discípulos distribuir o pão (exemplo para a Igreja), João diz que Jesus mesmo o distribui, para acentuar que o pão é o dom de Jesus. E, no fim, João menciona que o povo quer proclamar Jesus rei (messias), mas Jesus se retira, sozinho, na região montanhosa (Jo 6,14-15).
Este último traço é muito significativo. Jesus não veio propriamente para distribuir cestas básicas e ser eleito prefeito, para resolver os problemas materiais do povo. Isso é apenas um “sinal” que acompanha sua missão. Para resolver problemas materiais do povo há meios à disposição, desde que as pessoas ajam com responsabilidade e justiça. Mas para que isso aconteça, é preciso algo mais fundamental: que conheçam o Deus de amor e justiça que se revela em Jesus. E é para isso que Jesus vai pronunciar o sermão do Pão da vida, como veremos nos próximos domingos.
A preocupação social da Igreja deve pautar-se por essa linha. Para resolver os problemas econômicos e sociais não é preciso vir o Filho de Deus ao mundo. Os meios estão aí. O Brasil é rico; é só ter pessoas justas, sensíveis às necessidades do povo, para bem gerenciar essa riqueza. Mas a missão da Igreja é em primeiro lugar colocar os responsáveis diante da vontade de Deus, como Jesus fez. E criar uma comunidade em que as pessoas vivam como Jesus ensinou.
Isso não significa pregar ingenuamente a “boa vontade”, sem fazer nada que obrigue as pessoas a pô-la em prática. Somos todos filhos de Adão, portadores de pecado desde a origem. Quem diz que não tem pecado fala mentira (1Jo 1,8-10). A boa vontade de usar bem os meios econômicos segundo a justiça social precisa de leis que funcionem, de mecanismos econômicos e de “estruturas” que os reproduzam, para amarrar essa boa vontade e realizações concretas. Não é o papel da Igreja inventar e implantar tais mecanismos, assim como Jesus não se transformou em fornecedor de pão e de bem-estar. Mas a Igreja tem de mostrar o rosto de Deus, que é Pai de todos e deseja que nos tratemos como irmãos. E para isso ela não pode deixar de apontar quais são as responsabilidades concretas.
Do livro “Liturgia Dominical”, de Johan Konings, SJ, Editora Vozes
https://diocesejacarezinho.org/2015/07/17o-domingo-do-tempo-comum-ano-b/
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