Sugestões agostinianas para a
instrução
José Joaquim Pereira Melo(*)
Walmir Ruis Salinas(**)
O ponto
de partida de quem busca a instrução ou o ensinamento, é a procura
da
compreensão do significado de um determinado objeto. Por isso, antes de expor sobre
como instruir, o teólogo colocou como indispensável para a compreensão, a necessidade
de se crer. Santo Agostinho, tomando emprestadas as palavras do profeta Isaias,
afirmou: “[...] se não crerdes não entendereis” (SANTO AGOSTINHO, 1995, p. 79).
Para ele, a fórmula completa para o entendimento está em crer e
buscar em
Deus o entendimento, pois n’Ele reside a verdade.
Ao se
buscar o entendimento de algo, há de se levar em consideração três
fatores:
o sujeito que irá intermediar o entendimento, o objeto de entendimento e aquele
que alcançará o entendimento.
O
primeiro fator, isto é, o sujeito que articula o entendimento, foi muito
lembrado
por Santo Agostinho em suas instruções de oratória, principalmente as dirigidas
ao orador cristão. Em A Doutrina Cristã ele apresentou três metas
essenciais
para que o orador consiga se expressar com sabedoria e eloqüência, “[...] que
consistem em fazer-se escutar com atenção, com prazer e com docilidade” (SANTO
AGOSTINHO, 2002, p. 268).
Ao mesmo tempo em que ele aponta
o caminho para o sucesso do bom
orador,
também se mostra preocupado com aquele que ouve. Por esse motivo
enfatiza
que não basta ter a atenção daquele que ouve, é preciso despertar nele o prazer
para aquilo que ouve.
Nas
sugestões dadas por Santo Agostinho para a prática do instruir, em
momento
algum ele aponta o caminho da força para que se tenha a atenção do
ouvinte,
seja ele aluno ou um fiel. O que ele sugere é de que a aprendizagem se dê “[...]
em uma atmosfera de amor” (WILLS, 1999, p. 47). É a busca pela empatia, e não
pelo amedrontamento, na tentativa de se alcançar a aprendizagem.
Para ter
sucesso, no intento de cativar o ouvinte e despertar nele o prazer em
aprender,
cabe ao mestre mostrar satisfação com aquilo que faz:
O fato é
que somos ouvidos com maior prazer quando a nós mesmos
agrada o
nosso trabalho: o fio da nossa educação é tocado pela
alegria e
desenvolve-se mais fácil e mais inteligível. [...] A grande
preocupação
reside na maneira de narrar, para que aquele que
catequiza,
quem quer que seja o faça com alegria. (SANTO
AGOSTINHO,
1973, p. 37).
Esse tipo
de conduta do orador ocasionaria uma espécie de simbiose, onde
as partes
sairiam satisfeitas e realizadas naquilo a que se propuseram alcançar. O segredo
estava na troca da truculência da violência pela atração desencadeada pelo prazer
da ação educativa.
Para
chegar a esse padrão de comportamento para com seu ouvinte,
professor
e pregador deveriam ter sempre em mente de que Cristo é o Mestre, e a caridade
deveria ser norteadora da ação instrutiva e desencadeadora do amor entre as
partes envolvidas no processo do ensino e da aprendizagem (SANTO AGOSTINHO,
1987).
Herança da tradição paulina, a
caridade simboliza a alteridade em seu sentido mais amplo, que é do homem novo
que busca “[...] dar-se,
empenhar-se,
prodigar-se até ao sacrifício pelos próprios semelhantes” (SCIACCA, 1966, p.
223). Nesse novo contexto, o homem abre mão de suas aspirações de promoção
pessoal e volta-se para seu semelhante com um amor incondicional, capaz de
suplantar qualquer desânimo ou reserva por parte do instrutor (SANTO AGOSTINHO,
1973).
Para
Hannah Arendt, o conceito de caridade em Santo Agostinho transcende
o
horizonte ôntico. Ao contrário de cupiditas (cobiça), que é o falso amor, e que
prende o homem ao mundo, a caritas (caridade) é o amor que almeja a eternidade.
Sobre o
aspecto prático de um e de outro, Arendt, assim se expressa:
Caridade
e cobiça diferenciam-se pelo objeto que visam.
Descrevem
desde logo a pertença a qualquer coisa e não à atitude, o
habitus.
O homem é aquilo que se esforça por atingir. O amor é a
mediação
entre o que ama e aquilo que ama; o que ama nunca está
isolado
daquilo que ama, isso pertence-lhe. O desejo daquilo que é
da ordem
do mundo é mundano, pertence ao mundo. O que cobiça
decidiu
ele próprio, através de sua cobiça, a sua corruptibilidade,
enquanto
a caridade, visto que tende para a eternidade, torna-se ela
própria
eterna (ARENDT, 1997, p. 25).
A partir
desse conceito de caridade, esta, a caridade, se enquadra não só
como uma
determinação no magistério agostiniano, pois ela é um meio para a boa execução
deste, mas como um princípio também, uma vez que é princípio básico da educação
agostiniana. É o argumento defendido por Paulo de Tarso, na primeira carta aos
Coríntios, de que sem a caridade nenhum dom tem valor. O professor que tem a
caridade como princípio de sua ação, não só está bem respaldado, como sinaliza
qual cidadania escolheu, a celeste.
Estabelecidos
os princípios para a ação pedagógica, Santo Agostinho,
fazendo
uso de sua experiência no campo da oratória, deu dicas para aqueles que se
propunham a transmitir os ensinamentos da doutrina cristã. Para ele, a regra de
ouro para um bom orador é ter a oração e a sabedoria acima da eloquência. Ele deve
orar por ele e por quem o ouve. Mesmo com o cuidado de orar antes de pronunciar
sua fala, é possível que haja entre os ouvintes, pessoas com sérias limitações
de entendimento. Essas pessoas, segundo o teólogo, não devem ser ignoradas, mas
deve-se ter um cuidado especial para que elas também aproveitem da pregação ou
mesmo da aula (SANTO AGOSTINHO, 1973).
Àqueles
que têm dificuldade em acompanhar o que está sendo falado, Santo
Agostinho
sugere que orador desça o nível da fala até sua possível compreensão.
Mesmo que
para isso tenha que falar mais compassadamente, e numa linguagem factível de
compreensão a estes que demonstram dificuldade maior que os demais para
acompanhar e entender a pregação da doutrina cristã (SANTO AGOSTINHO, 1973).
Para o
mestre de Tagaste, ao fazer uso de tal estratégia, o orador corre o
risco de
se aborrecer com essas pessoas, mas quando isso acontecer, a solução é simples,
ser paciente. A motivação para a paciência, segundo Santo Agostinho, reside na
possibilidade da surpreendente aprendizagem, e diz: “[...] agora, no entanto
não se renova o nosso prazer pelo prazer de sua surpresa?” (SANTO AGOSTINHO,
1973, p. 59).
Quando o conhecimento se dá, o aborrecimento
dá lugar
à alegria
da conquista para aquele que menor possibilidade tinha de alcançá-la. Por isso,
mais eficiente que envergonhar o aluno, expondo sua dificuldade, é ter a paciência
necessária para que ele alcance a mesma alegria daqueles que já haviam compreendido
o teor do ensinamento.
Sua
experiência no púlpito lhe dava a certeza da diversidade de pessoas.
Diante
deste fato, ao passar sugestões para a instrução aos catecúmenos Santo Agostinho diz:
[...]
posso eu mesmo testemunhar que me impressiono
diferentemente
ao ver diante de mim para serem catequizados o
erudito,
o tímido, o cidadão, o estrangeiro, o rico, o pobre, o civil, o
magistrado,
o poderoso, o representante desta ou daquela família,
desta ou
daquela idade, ou sexo, desta ou daquela seita, partindo
deste ou
daquele erro vulgar. [...] E apesar de que a mesma caridade
se deve a
todos, a todos não se aplica o mesmo remédio. (SANTO
AGOSTINHO,
1973, p. 67).
Apesar
desta ser uma indicação básica para um orador minimamente
preparado,
Santo Agostinho lembrou aos catequistas e educadores de que para cada tipo de
pessoa se aplica um tipo de mensagem. A experiência como professor de retórica,
dava-lhe autoridade suficiente para afirmar que a instrução, na dose certa e de
maneira adequada, tende a funcionar. Aliado à sua experiência estava o desejo
de dirimir a ignorância daqueles menos preparados e menos instruídos sobre a
doutrina cristã.
Caso
aquele que buscasse a instrução, mesmo cercado de boa vontade em
aprender,
mostrar-se entediado com a fala do instrutor, dizia Santo Agostinho que o orador deveria utilizar-se de todo
subterfúgio para recuperar a atenção deste que buscou o conhecimento da verdade
(SANTO AGOSTINHO, 1973). Sendo assim, para ele, para que se tenha efeito
positivo no alcance da verdade revelada pelas
escrituras (judaico-cristãs) é preciso que o orador seja paciente,
sensível às diferenças e preparado para sua missão, para que consiga, com seu
ofício, ensinar, convencer e agradar. Porém, Santo Agostinho foi irredutível em
seu princípio de que
mais do
que a palavra pronunciada, o que mais convence é o exemplo, pois o pregador tem
que ser um modelo para seus fiéis. Aliado ao exemplo está o conteúdo a ser
ministrado pelo orador (SANTO AGOSTINHO, 2002).
Considerações finais
Santo Agostinho soube tirar
proveito da dualidade na sua formação
educacional.
Da retórica romana tirou a base para suas aulas, enquanto professor, e para
suas pregações, enquanto bispo. Do cristianismo tirou, com base na doutrina paulina
de caridade, o espírito altruísta, que o colocou sempre atento à necessidade de
aprendizagem dos mais variados tipos de pessoas. Essa sensibilidade para com o
outro foi fundamental para que o bispo de Hipona lograsse êxito, tanto no seu
papel de
professor, como de pregador cristão.
Notas
* José Joaquim Pereira Melo é doutor em História e Sociedade pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1998) e pós-doutor em História da
Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2007).
Atualmente
é Professor Associado da Universidade Estadual de Maringá – UEM e do programa
de Pós-Graduação em Educação dessa universidade. E-mail: jjpmelo@hotmail.com
** Walmir
Ruis Salinas possui graduação em filosofia pela PUC- PR e mestrado em educação
pela UEM. Atualmente é professor da UNESPAR/Fecilcam – Câmpus de Campo Mourão.
E-mail: walmir.salinas@gmail.com
Jo
1 O texto
deste artigo é uma adaptação de dissertação de mestrado intitulada A
docilização do corpo em Santo Agostinho a partir de sua educação doutrinária.
2 A Lei
de Talião teria sido criada por Javé, como critério de justiça nas punições
àqueles que causaram algum dano, de qualquer ordem, a qualquer pessoa.
3 Para
Monroe, não é apenas Santo Agostinho que tem esse caráter salvífico em sua doutrina educacional. Para ele o
cristianismo trouxe uma nova perspectiva para educação, que passa dos
interesses naturais e de tudo que estava ligado ao mundo para a preparação
para um
momento futuro, ou seja, a parusia (MONROE, 1978).
4 A ideia
de Deus como fonte de luz para o conhecimento do homem está baseada na teoria da iluminação de Santo Agostinho.
Para ele a alma está contaminada pelas paixões, o que impede o homem de ver a
Verdade. Para vencer a escuridão, provocada pelas paixões, está
Deus como
luz que permite ao homem ver a Verdade, que é o próprio Deus (SANTO AGOSTINHO,
2000). Tomando a imagem criada por Platão, Santo Agostinho afirma que Deus
ilumina, mas cabe ao homem enxergar. Por isso é imprescindível que o homem mantenha
a sua visão interna em boas condições. Desta forma, é imperativo: “[...] Uma
fuga
completa
das coisas sensíveis. [...] É necessário que estejam íntegras e perfeitas para
voar das trevas à luz, esta que não se mostra aos encarcerados na prisão do
corpo, a não ser
quando
dele nos libertamos” (SANTO AGOSTINHO, 1995, p. 57). Por esse motivo é que o teólogo
insiste na necessidade do homem romper com os bens terrenos e as paixões que estes
despertam, pois assim o fazendo cria condições de contemplar a Verdade, e ver a
luz.
Referências
ARENDT, Hannah. O Conceito de amor em Santo
Agostinho. Lisboa: Instituto
Piaget, 1997.
BÍBLIA. Português. A bíblia de Jerusalém. São Paulo:
Paulinas, 1980.
CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo:
UNESP, 1993.
HUBERT, René. História da pedagogia. São Paulo:
Companhia Editora Nacional,
1976.
LUZURIAGA, Lorenzo. História da educação e da
pedagogia. 9. Ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1977.
MONROE, Paul. História da educação. São Paulo:
Companhia Editora Nacional,
1978.
NUNES COSTA, Marcos Roberto. Santo Agostinho: um
gênio intelectual a serviço
da fé. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
PEREIRA MELO, José Joaquim. Santo Agostinho e a
educação como fenômeno
divino. Revista Educação e filosofia, Uberlândia, v.
24, n. 48, jul./dez. 2010, p. 409-
434.
PLATÃO. República. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus. Petrópolis: Vozes,
1990.
SANTO AGOSTINHO. A doutrina cristã. São Paulo: Paulus,
2002.
SANTO AGOSTINHO. A verdadeira religião. São Paulo:
Paulinas, 1987.
SANTO AGOSTINHO. A vida feliz. São Paulo: Paulinas,
1993.
SANTO AGOSTINHO. De magistro. São Paulo: Abril
Cultural, 1984.
SANTO AGOSTINHO. Instrução dos catecúmenos. 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 1973.
SANTO AGOSTINHO. O livre-arbítrio. São Paulo: Paulus,
1995.
SCIACCA. O problema da educação. São Paulo: Herder,
1966.
WILLS, Garry. Santo Agostinho. Rio de Janeiro:
Objetiva, 1999.
http://www.fecilcam.br/revista/index.php/educacaoelinguagens/article/viewFile/633/369
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