A relação
com o pentecostalismo evangélico é, segundo vários autores (cf. Laurentin, 1977;
Prandi, 19997; Massarão, 2002), uma das principais características do movimento
carismático.
56. Além de
ter surgido em um contexto pentecostal, a RCC conforme veremos no terceiro capítulo,
ainda hoje utiliza o discurso pentecostal como fonte de intertextualidade. É o que
ocorre, por exemplo, no caso das letras de músicas e dos livros que tratam da Efusão
do Espírito Santo.
Portanto,
para entender a constituição do movimento carismático, faz-se necessário analisar,
mais detidamente, seu diálogo com os pentecostais.
O pentecostalismo
caracteriza-se, principalmente, pela experiência da Efusão do Espírito Santo. Para
os pentecostais, a experiência religiosa se resume à relação com Deus (Pai e Filho)
que se dá por meio da reatualização da experiência de Pentecostes. Trata-se, portanto,
de uma mística religiosa que defende a experiência com o Espírito Santo (terceira
pessoa a Santíssima Trindade) como algo primordial para vivência cristã. Atualmente,
existem várias religiões pentecostais no mundo. No Brasil, também há um grande número
de pentecostais. Dentre esses, cito: a Igreja Assembleia de Deus; a Congregação
Cristã no Brasil e a Igreja Universal do Reino de Deus. Em todas essas religiões,
a Efusão do Espírito e a vivência de uma espiritualidade centrada nos carismas (ou
dons carismáticos) é uma constante.
Segundo Laurentin
(1977), o pentecostalismo é o movimento cristão a se manifestar com maior vitalidade
desde o começo do século XX. Surgido entre os anos de 1900 e 1991, o movimento pentecostal,
que se espalhou por diferentes religiões cristãs, já contava, no ano de 1977, quando
Laurentin escreveu seu livro, com cerca de 15 milhões de adeptos espalhados por
todo mundo. Além do Pentecostalismo, existe também o movimento Neopentecostal. De
acordo com Laurentin (1977), a expressão neopentecostalismo é aplicada aos novos
movimentos pentecostais, que começaram a surgir nas igrejas cristãs mais tradicionais,
como é o caso da Igreja Episcopal, da Presbiteriana e da Católica. O movimento da
RCC seria, portanto, uma manifestação do neopentecostalismo que se materializou
no seio do catolicismo romano. Segundo Edward O’Connor:
No mundo protestante,
o Movimento Pentecostal, muitas vezes, levou as pessoas a se separarem da Igreja-Mãe
e a fundarem novas. O Movimento Pentecostal Católico não manifestou tal tendência.
Ao contrário, aprofundou intensamente os laços de seus membros com a Igreja. Têm
a mais viva estima e o maior respeito pelas instituições da Igreja (O’connor 1967
apud. Laurentin, 1977:25).
Apesar de
ser um movimento que nasceu ligado ao protestantismo norte-americano, a RCC nunca
defendeu o desligamento da Igreja Católica. Muito pelo contrário, como tentarei
mostrar ao longo desta tese, o respeito à hierarquia católica é um dos traços da
semântica global desse movimento.
Para Prandi,
mesmo apresentando várias semelhanças com o Pentecostalismo, a RCC tem uma identidade
própria. No caso da “cura” (física e/ou espiritual), por exemplo, existem diferenças
entre os dois tipos de pentecostalismo. Para os evangélicos pentecostais, a cura
é o mais propalado elemento de sua pregação (Prandi, 1997:131). Já a RCC, parece,
ainda segundo Prandi, considerar a cura algo menos central, pois o mais importante
é a conversão pessoal. Concordo com o autor nesse aspecto. Na pesquisa de campo,
verifiquei que as “orações de cura”, apesar de muito presentes nos encontros carismáticos,
não são vistas como algo central. A cura é uma consequência da vida de oração e
da entrega a Deus. Contudo, defendo que mais do que um ponto de divergência com
o pentecostalismo evangélico, a não supervalorização das curas (apresentadas em
alguns programas evangélicos como uma mercadoria)
57 por parte
do movimento carismático deve-se aos condicionamentos do discurso católico. Afinal,
o catolicismo sempre defendeu o sofrimento como “purificação” e, por isso, não ficaria
bem para a RCC pregar a cura como solução absoluta para todos os problemas. Trata-se,
novamente, dos limites do posicionamento carismático. Por fazer parte do campo cristão
católico, a RCC não pode dar ao “dom da cura” o mesmo tratamento conferido a esse
dom no interior do pentecostalismo
58. Mas, isso
não significa que os carismáticos não recorram, com certa frequência, a esse dom.
Afinal, o diálogo entre RCC e Pentecostalismo remonta, como veremos a seguir, à
gênese do movimento carismático e, por isso, por mais que existam diferenças, haverá
sempre muitas semelhanças. É uma questão de interdiscurso, que, nesse caso, se manifesta
por meio da memória discursiva do posicionamento carismático.
De acordo
com Prandi (1997), o grupo que se reuniu no retiro espiritual de Duquesne, no outono
de 1967, era formado tanto por católicos quanto por evangélicos pentecostais. Eles
estavam insatisfeitos com suas respectivas experiências religiosas. Por isso, tanto
os católicos quanto os evangélicos, que participaram daquele final de semana em
Pittsburgh, buscavam uma nova experiência com Deus. Eles queriam uma renovação espiritual
que viesse a afetar substancialmente suas vidas e também a Igreja. Influenciados
pelo avivamento protestante – segundo grande despertar
57 Sobre a
cura como mercadoria, cito um episódio que assisti em um programa da Igreja Universal
do Reino de Deus. Uma mulher que sofria com uma dor no pescoço é convidada a dar
testemunho sobre uma cura milagrosa que alcançou na Igreja Universal. Ela diz: “Fazia
três noites que eu não dormia com uma dor no pescoço”. Em seguida, o pastor pergunta:
“E o que aconteceu quando você passou pela cruz?”. Saliento que, no programa, as
pessoas eram curadas após passarem por baixo de um crucifixo gigante. A mulher então
respondeu: “a dor melhorou”. E o pastor, em um tom bastante indutivo, perguntou:
“A dor melhorou ou sumiu?”. E a espiritual ocorrido nos Estados Unidos na década
de 1960, que invadiu a maioria das igrejas protestantes (cf. Mendonça, 1997) –,
o pequeno grupo de Duquesne desejava uma verdadeira experiência com o Espírito Santo.
Evangélicos e católicos ali reunidos tinham um objetivo em comum: ter acesso a uma
“espiritualidade renovada”.
Após o citado
retiro, a experiência do “Batismo no Espírito Santo”
59
começou a ser propagado por todos os Estados Unidos e, logo em seguida, também na
Europa
60.
Sempre levando a bandeira do Espírito Santo em primeiro lugar, a RCC começou a crescer
e a se espalhar cada vez mais. A importância do Paráclito (outro nome usado para
o Espírito Santo e que significa “consolador”) para os carismáticos, assim como
para as demais igrejas pentecostais, reside na crença de que, com a Efusão do Espírito,
acontece uma transformação da vida religiosa. Essa transformação produz vários “frutos”:
são os chamados “dons espirituais”. Por isso, em todos os encontros da RCC, há um
momento reservado para efusão do Espírito de Deus. Para o padre Jonas Abib, um dos
grandes propagadores da RCC no Brasil:
Ser instrumento
do Espírito Santo não é resultado da nossa perfeição, da nossa santidade. Pelo contrário.
Nosso caminho de santificação, de perfeição, passa necessariamente pela efusão do
Espírito Santo. Não conseguimos isso com nosso esforço. É claro que podemos colaborar,
cooperar, deixar-nos trabalhar por Ele, mas é Ele quem faz tudo (Abib, 1995:17).
Há, portanto,
uma total dependência do cristão carismático em relação ao Espírito Santo. Essa
relação entre a RCC e o Espírito Santo está intimamente relacionada à semântica
global do movimento. Como pretendo mostrar no capítulo sobre ethos, a (suposta)
presença do Espírito Santo reforça a ligação com as coisas “do alto”, com o mundo
“espiritual” e faz com que o enunciador carismático assuma, no seu discurso, um
ethos de espiritualidade e humildade, uma vez que ele defende que quem faz tudo
é o Espírito Santo. Além disso, a espiritualidade carismática também atinge os demais
planos do discurso: a intertextualidade com os textos bíblicos que tratam da Efusão
do Espírito e as práticas do enunciador carismático, sempre preocupado em usar objetos,
59 No início
do movimento carismático, houve várias controvérsias em relação ao uso do termo
“Batismo no Espírito Santo”. A Igreja Católica não era favorável ao termo, pois
acreditava que esse pudesse ser confundido com o Batismo sacramental. Para a RCC,
o Batismo (ou Efusão) no Espírito corresponde a uma forte experiência com o Espírito
de Deus. Trata-se não de um novo Batismo sacramental, mas de um transbordamento
da graça de Deus sobre o cristão (cf. Abib, 1995:14). Ainda segundo Abib, a graça
da efusão do Espírito Santo é uma benção que pode ocorrer constantemente na vida
do cristão. Basta pedir e o Espírito de Deus se derrama sobre nós (idem: p.16).
60 De acordo
com Laurentin (1977), a RCC teve início na França no ano de 1971 e em Roma,
ainda na década de setenta, já ler livros e ouvir canções relacionadas ao Espírito
Santo, são outros indícios desse modo de ser carismático.
Em relação
ao pentecostalismo evangélico, a presença do Espírito Santo é também uma constante
nos cultos e encontros das Igrejas que adotam o discurso pentecostal. A Igreja Universal
do Reino de Deus, uma das igrejas pentecostais mais conhecidas da atualidade, produz
programas de televisão nos quais apresenta o Espírito Santo como solução para os
males da alma e, principalmente, do corpo. Pois, como visto, as chamadas “curas
espirituais”, são mais uma característica do pentecostalismo.
Além de trazer
a paz e a cura, o Espírito Santo é também o responsável pela oração em línguas,
presente em todos os movimentos pentecostais. Segundo esses movimentos, assim como
ocorreu no episódio bíblico de Pentecostes (conferir nota 55), as pessoas podem
receber, juntamente com a graça da efusão do Espírito Santo, o “dom das línguas”.
Sobre a oração em línguas, vejamos o que dizem os autores carismáticos:
O primeiro
dom que se manifestou foi o de línguas. Em Pentecostes, os discípulos, junto com
Maria, ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a orar, a louvar, a cantar numa
língua nova, a língua do Espírito. /.../. Quando você ora no Espírito, Ele está
pedindo primeiro de acordo com a sua necessidade; depois de acordo com aquilo que
Deus sabe, com aquilo que Deus quer e sabe ser o melhor (Abib, 1995:56).
O falar em
línguas pode ser duas coisas diferentes. Em primeiro lugar, pode ser um dom de oração
para o indivíduo (1 Cor 14,14). É o dom de línguas mais comum, /.../. Em segundo
lugar, pode ser também um dom para a comunidade, quando o Espírito impele alguém
a falar alto em línguas para toda comunidade ouvir. Neste caso, o falar em línguas
deveria ter uma interpretação, a fim de que toda comunidade compreenda o que está
acontecendo (Clark, 1992:23-24).
Ambos os excertos
mostram a importância da oração em línguas na vida dos grupos carismáticos. Para
os membros da RCC, desde o seu surgimento até os dias atuais, o dom de línguas é
um a “abertura ao mundo espiritual” (Abib, 1995) e, por isso, deve ser cultivado.
Entretanto,
muitos padres e bispos (alguns da ala conservadora e outros também da ala progressista)
têm várias reservas em relação ao dom de línguas. De acordo com Laurentin (1977),
até mesmo entre os pentecostais existem divergências acerca do dom de línguas. O
fato é que a enquanto no primeiro episódio todos se entendiam perfeitamente, como
se cada qual falasse na sua própria língua, no caso de Babel, ninguém conseguia
se entender
61. Mas,
quando reinterpretado pelo discurso carismático, esse dom passa a ser visto não
apenas como algo que aconteceu em Pentecostes, mas que pode ser revivido por qualquer
cristão. Para muitos padres, essa interpretação da RCC sobre o dom de línguas é
equivocada e representa uma atitude de alienação por parte do movimento carismático
(cf. Prandi, 1997).
Além do “falar
(ou orar) em línguas”, existem, segundo os pentecostais, outros dons carismáticos.
Para a RCC, há mais oito dons: Interpretação das Línguas, Palavra de Ciência, Palavra
de Sabedoria, Profecia, Discernimento dos Espíritos, Cura, Milagres e Fé (cf. Abib,
1995). Contudo, o dom de línguas é considerado a porta de abertura para os demais.
Por isso, ele está sempre presente nos encontros dos Grupos de Oração e nos retiros
e grandes eventos da RCC.
Em resumo,
a RCC apresenta vários pontos de diálogo com o discurso pentecostal. Entre esses
estão: (i) a valorização de uma fé individualista; (ii) o incentivo à experiência
do “Batismo” (ou Efusão) no Espírito Santo; e (iii) a utilização dos “dons espirituais”,
dentre os quais se destaca a glossolalia (ou dom de línguas). Todas essas características
fazem com que o movimento carismático seja considerado como um “Pentecostalismo
Católico” (cf. Laurentin, 1977). A semelhança com os pentecostais não é negada pelos
carismáticos, nem mesmo suas origens “protestantes”. Mas, a RCC procura filiar sua
identidade católica por meio de várias estratégias, dentre as quais cito: o respeito
à hierarquia e o culto mariano.
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