SANTO
AGOSTINHO
Comentário de Santo
Agostinho a Carta aos Romanos
Os vários
sentidos da Carta do apóstolo Paulo aos romanos serão expostos a seguir. Em
primeiro lugar, deve-se levar em conta que a carta versa sobre as
obras da Lei e da graça.
A
proposição “porque diante dele ninguém será justificado pelas obras da Lei,
pois pela Lei vem só o conhecimento do pecado” e afirmações semelhantes, que
alguns consideram terem sido proferidas como insulto à Lei, devem ser lidas com
mais cuidado, para evitar que nem a Lei pareça reprovada pelo Apóstolo, nem
tenha sido retirado do homem o livre-arbítrio. Por conseguinte, devemos
distinguir estes quatro graus a respeito do homem: antes da Lei, sob a Lei, sob
a graça, na paz. Antes da Lei, caminhamos de acordo com a
concupiscência da carne; sob a Lei, somos arrastados por ela; sob a graça, nem
caminhamos com ela, nem por ela somos arrastados; na paz, não há concupiscência
da carne.
Portanto,
antes da Lei não lutamos, pois não apenas desejamos ardentemente e pecamos, mas
também aprovamos os pecados. Sob a Lei lutamos, mas somos vencidos; com efeito,
confessamos serem más as coisas que praticamos e, confessando serem más, por
isso não as queremos praticar, mas somos vencidos, porque ainda não existe a
graça.
Nesse
grau, nos é mostrado como estamos prostrados e, quando queremos levantar e
caímos, angustiamo-nos sobremaneira. Daí o que se diz: “a Lei interveio para
que avultassem as faltas” (Rm 5,20). Daí também o que agora foi citado: “pois
pela Lei vem só o conhecimento do pecado”; e não, de fato, a abolição do
pecado, porque somente pela graça o pecado é eliminado.
Portanto,
a Lei é boa, pois proíbe o que é preciso evitar e ordena o que se deve ordenar.
Mas quando alguém pensa que a pode cumprir pelas próprias forças, não pela
graça de seu Libertador, de nada lhe aproveita essa presunção; pelo contrário,
prejudica- o tanto que é também arrastado por um mais veemente desejo de pecado
e, no pecado, descobre-se também como transgressor. “Onde não há Lei, não há transgressão” (Rm
4,15). Assim, portanto, prostrado, quando alguém percebe que não tem capacidade
de se levantar por si mesmo, implore o auxílio do Libertador.
Vem então
a graça a perdoar os pecados passados e a ajudar o que se empenha e a outorgar
a caridade da justiça e a abolir o medo. Quando isso acontece, ainda que alguns
desejos da carne, enquanto estamos nesta vida, lutem contra nosso espírito para
levá-lo ao pecado, o espírito, contudo, deixa de pecar, não consentindo nesses
desejos, porque está firme na graça e caridade de Deus. Pois não
pecamos pelo mau desejo em si, mas pelo nosso consentimento. Vem a propósito o
que diz o Apóstolo: “portanto, que o pecado não impere em vosso corpo mortal
para obedecerdes às suas paixões” (Rm 6,12).
Nesse
trecho, Paulo mostra que, quando não atendemos aos desejos, embora
existam, não permitimos que o pecado impere em nós. Mas porque nascem da mortalidade da carne, a
qual herdamos do primeiro pecado do primeiro homem, o que explica nosso
nascimento carnal, esses desejos não terão fim a não ser que, na ressurreição
do corpo, mereçamos aquela transformação que nos é prometida, onde haverá a paz
perfeita ao sermos estabelecidos no quarto grau. É precisamente isso o que diz
o Apóstolo: “O corpo está morto pelo pecado, mas o Espírito é vida pela
justiça. E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita
em vós, aquele que ressuscitou Jesus Cristo dentre os mortos dará vida também a
vossos corpos mortais por seu Espírito que habita em vós” (Rm 8,10-11).
Portanto,
o livre-arbítrio existiu perfeitamente no primeiro homem, mas em nós, antes da
graça, não há o livre-arbítrio de modo que não pequemos, mas somente de modo a
não querermos pecar. Mas a graça faz com que não somente queiramos
agir retamente, mas também com que o consigamos, não, porém, por nossas
próprias forças, mas com o auxílio do Libertador, que nos
concederá a paz perfeita na ressurreição; paz perfeita que é consequente à boa
vontade. Pois, “glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens de boa
vontade” (Lc 2,14).
“Então
eliminamos a Lei pela fé? De forma alguma! Pelo contrário, a consolidamos”,
isto é, a reforçamos. Mas como haveria de se reforçar a Lei, senão pela
justiça? Mas a justiça que se alcança pela fé; porque o que não pudera ser
cumprido pela Lei, foi cumprido pela fé.
No que
ele diz: “entretanto, não acontece com o dom o mesmo que com a falta”, o dom
sobrepuja a falta de dois modos: ou porque a graça é muito mais abundante,
pois, certamente, por ela se vive eternamente, enquanto a morte imperou no
tempo pela morte de Adão; ou porque, pela condenação de um só delito, a morte
aconteceu por meio de Adão, por nosso Senhor Jesus Cristo, porém, a graça foi
dada para a vida eterna, com o perdão de muitos pecados. Mas explica assim
outra diferença, ao dizer: “também não aconteceu com o dom como aconteceu com o
pecado de um só que pecou, porque o julgamento de um resultou em condenação, ao
passo que a graça, a partir de numerosas faltas, resultou em justificação”.
Portanto, o que foi dito: “de um só”, subentende-se a falta, pois vem em
seguida: “ao passo que a graça, a partir de numerosas faltas”. Assim, esta é a
diferença: em Adão foi condenado um só pecado, mas pelo Senhor foram perdoados
muitos.
Portanto,
o que diz em seguida estabelece estas duas diferenças, a ponto de assim
explicar: “Se, com efeito, pela falta de um só a morte imperou através desse
único homem, muito mais os que recebem a abundância da graça e do dom da
justiça reinarão na vida, por meio de um só, Jesus Cristo”. Portanto, o que ele
disse: “muito mais reinarão”, refere-se à vida eterna; mas o que disse:
“recebem a abundância da graça”, diz respeito ao perdão de muitos pecados.
Explicadas essas diferenças, ele volta à forma de onde começara, cuja ordem
interrompeu, ao dizer: “Por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e,
pelo pecado, a morte” (Rm 5,12). Volta a isso quando diz: “Por conseguinte,
assim como pela falta de um só resultou a condenação de todos os homens, do
mesmo modo, da justificação de um só resultou para todos os homens a
justificação que traz a vida. De modo que, como pela desobediência de um só,
muitos se tornaram pecadores, assim pela obediência de um só, muitos se
tornaram justos” (Rm 5,18-19).
Esta é a
condição do futuro Adão, da qual começara a falar antes (cf. Rm 5,12) e
diferira a ordem, intercalando algumas diferenças nela; a ela voltando agora,
concluiu dizendo: “por conseguinte, assim como pela falta de um só, resultou a
condenação de todos os homens” etc.
A
expressão “o pecado não vos dominará, porque não estais sob a Lei, mas sob a
graça” diz respeito, certamente, àquele terceiro grau em que o homem
já serve com a mente à Lei de Deus, embora na carne sirva à Lei do pecado (cf.
Rm 7,25).
Com
efeito, não obedece ao desejo do pecado, embora as paixões ainda o solicitem e
provoquem o consentimento (tentação), até que também ao corpo seja comunicada a
vida, e a morte seja absorvida na vitória (cf. 1Cor 15,54). Portanto, pelo
fato de não consentirmos nos desejos maus, estamos na graça e o pecado não
reina em nosso corpo mortal. E quando diz, na passagem: “nós que
morremos para o pecado, como haveríamos de viver ainda nele”, descreve aquele
que está estabelecido sob a graça. Mas o dominado pelo pecado, embora
queira resistir ao pecado, está ainda sob a Lei, e não sob a graça.
Isso
acontece quando, ainda permanecendo em nós alguns desejos e impulsos para
pecar, contudo não lhes obedecemos nem neles consentimos, servindo
com a mente à Lei de Deus, pois morremos para o pecado. Mas o pecado também
morrerá quando se der a restauração do corpo na ressurreição, da qual ele fala
depois, dizendo: “dará vida também a vossos corpos, através do seu Espírito que
permanece em vós” (Rm 8,11).
Ao dizer
“sabemos que a Lei é espiritual, mas eu sou carnal”, Paulo demonstra
sobejamente que tão somente os espirituais, assim convertidos pela graça, são
capazes de cumprir a Lei. Pois aquele que se tornou
semelhante à Lei cumpre com facilidade o que ela ordena, e
não ficará sob ela, mas com ela.
Ao dizer:
“Com efeito, não faço o bem que quero, mas pratico o mal que não quero. Ora, se
faço o que não quero, concordo com a Lei, que é boa”, a Lei é satisfatoriamente
defendida de toda acusação. Mas é preciso ter cuidado para que ninguém pense
que, por essas palavras, nos é tirado o livre-arbítrio da vontade, pois não é
assim. Com efeito, agora se descreve o homem sob a Lei, de antes da graça,
quando é vencido pelos pecados, enquanto se empenha com suas forças para viver
justamente sem a ajuda da graça libertadora de Deus. Mas no livre-arbítrio
ele tem com que acreditar no Libertador e receber a graça, para que, naquele
que a dá, ajudando-o e libertando-o, então não peque. E, assim,
deixa de estar sob a Lei, mas com a Lei ou na Lei, observando-a com a caridade
de Deus, o que não pudera com o temor.
Ao dizer:
“Percebo outra Lei em meus membros, que peleja contra a Lei da minha mente e
que me acorrenta à Lei do pecado que existe em meus membros”, denomina
Lei do pecado aquela pela qual está preso todo aquele que está enredado em
costumes carnais. Ele afirma que ela peleja contra a Lei de sua mente
e o acorrenta à Lei do pecado, donde entende-se que é descrito o homem que não
está ainda sob a graça. Com efeito, se os costumes carnais somente o
combatessem e não o prendessem, não haveria condenação. Pois há
condenação no fato de obedecermos e servirmos aos maus desejos carnais. Mas
se existem e não cessam tais desejos, nós, porém, não lhes obedecemos, não
somos aprisionados e já estamos sob a graça, da qual falará aquele que
tiver exclamado e implorado o auxílio do Libertador, a fim de que a caridade
possa, pela graça, o que o temor pela Lei não pudera. Assim, ele disse:
“Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte?”, e acrescenta: “a
graça de Deus, por Jesus Cristo Senhor nosso”. Em seguida, começa a descrever o
homem estabelecido sob a graça, que é o terceiro grau daqueles quatro que
distinguimos anteriormente.
Na
afirmação: “portanto, não existe mais condenação para aqueles que estão em
Cristo Jesus”, demonstra sobejamente que não há condenação, ainda que existam
os desejos carnais, mas não se lhes obedecem para pecar. Isso acontece àqueles
que foram estabelecidos sob a Lei, mas não se encontram ainda sob a graça. Pois
os estabelecidos sob a Lei não somente têm a concupiscência que investe, mas
também são considerados prisioneiros ao lhe obedecerem. O que não acontece aos
que servem a Deus com a mente.
Pelo que
diz: “com efeito, não recebestes um espírito de escravidão, para cair no temor,
mas recebestes um espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos: ‘Abba!
Pai!’”, com toda a evidência diferenciou os tempos dos dois Testamentos: o
antigo diz respeito ao temor, mas o novo à caridade. Contudo, pergunta-se: o
que é espírito de servidão? Pois o espírito de filhos adotivos é certamente o
Espírito Santo. O espírito de servidão no temor, portanto, é aquele que
tem o poder da morte, porque por toda a vida foram réus da servidão no
mesmo temor aqueles que agiam sob a Lei, não sob a graça. Nem causa admiração o
fato de o terem recebido mediante a divina Providência aqueles que perseguiam
os bens temporais, não porque a Lei e o preceito procedem dele. De fato, “a Lei
é santa e, santo, justo e bom é o preceito” (Rm 7,12); mas é certamente esse
espírito de servidão, não bom, que recebem aqueles que não são capazes de
cumprir os preceitos da Lei dada, enquanto estão a serviço dos desejos
carnais, ainda não assuntos à adoção filial pela graça do Libertador. Com
efeito, o espírito de servidão não tem ninguém em seu poder, a não ser aquele
que lhe foi entregue por ordem da divina Providência, a justiça de Deus dando a
cada um o que é seu. Esse poder o Apóstolo recebera quando se refere a alguns:
“os quais entreguei a Satanás, a fim de que aprendam a não blasfemar” (1Tm
1,20); e, novamente, referindo-se a um outro: “já julguei” (1Cor 5,3) – diz –,
“entreguemos tal homem a Satanás, para a perda de sua carne, a fim de que o
espírito seja salvo” (1Cor 5,5).
Portanto,
aqueles que ainda não estão sob a graça, mas estabelecidos sob a Lei,
são vencidos pelos pecados para obedecer aos desejos carnais e aumentam a
culpabilidade de seus delitos pela transgressão, receberam o
espírito de servidão, ou seja, o espírito daquele que tem o poder de morte. Pois,
se interpretarmos o espírito de servidão como o próprio espírito do homem,
começaremos também a interpretar o espírito de adoção como o espírito mudado
para melhor. Mas, como concebemos o espírito de adoção como o Espírito Santo,
que o apóstolo claramente mostra, quando diz: “o próprio Espírito dá testemunho
ao nosso espírito”, resta que interpretemos o espírito de servidão como aquele
a quem servem os pecadores, para que, assim como o Espírito Santo liberta do
temor da morte, assim o espírito de servidão, que tem o poder de morte, os
mantenha como réus da mesma morte pelo temor, a fim de que cada um se volte
para o auxílio do Libertador, mesmo contra a vontade do próprio diabo, que
sempre deseja mantê-lo sob seu poder.
O que ele
diz: “Pois a criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus.
De fato, a criação não foi submetida voluntariamente à vaidade” e tudo o que
segue, até as palavras: “E nós mesmos gememos interiormente, suspirando pela
redenção do nosso corpo”, devemos entender de tal modo que não pensemos que
exista o sentido da dor e do pranto nas árvores, nos arbustos, nas pedras e nas
demais criaturas semelhantes, pois esse é o erro dos maniqueus, nem julguemos
que os santos anjos estejam sujeitos à vaidade, nem creiamos a respeito deles
que serão libertos da servidão da morte, já que, certamente, não haverão de
perecer. Mas pensemos que a criação está no próprio homem, e isso sem qualquer
juízo temerário. Com efeito, não pode existir criatura alguma que não seja ou
espiritual, como a que se destaca nos anjos, ou animal, como a que se manifesta
na vida dos animais, ou corporal, a qual pode ser vista ou tocada; mas toda ela
se encontra também no homem, porque o homem se compõe de espírito, alma e
corpo. Portanto, “a criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de
Deus” refere-se ao homem que sofre e está sujeito à corrupção e que
espera a manifestação, sobre a qual afirma o Apóstolo: “porque morrestes e
vossa vida está escondida com Cristo em Deus: quando Cristo, que é vossa vida,
se manifestar, então vós também com ele sereis manifestados na glória” (Cl
3,3-4). Também João diz: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas
o que nós seremos ainda não se manifestou. Sabemos que por ocasião
dessa manifestação seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é”
(1Jo 3,2). Portanto, a criatura espera essa revelação dos filhos de Deus, a
qual no homem está submetida à vaidade, enquanto estiver entregue às coisas
temporais, que passam como a sombra. Daí o que é dito no salmo: “O homem é como
um sopro, seus dias como a sombra que passa” (Sl 144,4). Sobre a mesma vaidade
também Salomão fala, quando diz: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Que
proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol?” (Ecl
1,2-3). Da mesma forma Davi o diz: “Até quando amareis o nada, e buscareis a
ilusão?” (Sl 4,3). Não diz, porém, que a criatura está submetida à vaidade
voluntariamente, porque essa sujeição é penal. De fato, o homem pecou
voluntariamente, mas não voluntariamente foi condenado; contudo, a condenação
foi infligida à nossa natureza, não sem esperança de reparação. Por isso, diz:
“Por vontade daquele que a submeteu, na esperança de a criatura também ser
liberta da escravidão da corrupção, para entrar na liberdade da glória dos
filhos de Deus”, ou seja, mesmo aquela que é somente criatura, ainda não
agregada pela fé ao número dos filhos de Deus. Contudo, naqueles que haveriam
de acreditar, o Apóstolo via o que diz: “Na esperança de a criatura também ser
liberta da escravidão da corrupção”, para não servir à corrupção à qual servem
todos os pecadores. Com efeito, ao pecador foi dito: “Terás de morrer” (Gn
2,17). Mas, “para entrar na glória dos filhos de Deus”, ou seja, para que
também a criatura alcance pela fé a liberdade da glória dos filhos de Deus. Mas
enquanto ainda não possuía a fé, era somente chamada criatura. E a ela se
refere o que vem em seguida: “pois sabemos que a criação inteira geme e sofre
até o presente”. De fato, ainda haveriam de acreditar os que mesmo pelo
espírito estavam submetidos a erros que faziam sofrer. Mas para que ninguém
pensasse que isso se refere tão somente ao sofrimento dos mesmos, acrescentou
também sobre aqueles que já tinham acreditado. Pois, embora com o espírito, ou
seja, com a mente servissem à Lei de Deus, mas porque pela carne se serve à Lei
do pecado, enquanto padecemos incomodidades e os apelos de nossa mortalidade,
acrescentou, dizendo: “e não somente a criação. Mas também nós que temos as
primícias do Espírito, gememos interiormente”. Portanto, não sofre e
geme, diz ele, aquela que é denominada apenas criatura nos homens que ainda não
acreditaram e, por isso, não foram inscritos no número dos filhos de Deus, mas
também nós que acreditamos e temos as primícias do Espírito, pelo fato de
termos aderido a Deus com o espírito pela fé e, por isso, não mais somos
chamados criaturas, mas filhos de Deus, “mas também nós gememos e sofremos
esperando pela adoção, pela redenção do nosso corpo”. Com efeito, essa
adoção, que já se realizou naqueles que acreditaram, realizou-se no espírito,
não no corpo. Pois o corpo não foi ainda restaurado para adquirir aquela
transformação celeste, do mesmo modo como o espírito já se transformou pela
reconciliação da fé, convertido dos erros para Deus. Portanto, mesmo
naqueles que acreditaram, espera-se ainda aquela manifestação que acontecerá na
ressurreição do corpo, que diz respeito àquele quarto grau, no qual a paz e o
descanso eterno serão completamente perfeitos, nada havendo de corrupção a nos
servir de obstáculo ou de sofrimento a nos incomodar.
No que
ele afirma: “Assim também o Espírito socorre a nossa fraqueza. Pois não sabemos
o que pedir”, é claro que o diz do Espírito Santo, o que é evidente nas
palavras que seguem: “É segundo Deus que ele intercede pelos santos”. Portanto,
nós não sabemos o que pedir por dois motivos: porque o que esperamos
para o futuro, para o qual tendemos, ainda não aparece; e porque
nesta vida, muitas coisas que são desvantajosas podem parecer-nos favoráveis e,
muitas coisas que são favoráveis podem parecer-nos desvantajosas. Com
efeito, mesmo a tribulação, quando sobrevém ao servo de Deus, para provação ou
correção, às vezes parece inútil aos pouco entendidos; mas se se atende ao que
foi dito: “Concede-nos socorro na opressão, pois a salvação humana é inútil”
(Sl 59,13), chega-se a entender que Deus nos ajuda muitas vezes pela
tribulação, e inutilmente se deseja a saúde, que às vezes é inconveniente, como
quando prejudica a alma, pelo prazer e apego à vida. Daí o se ter dito:
“Encontrei angústia e aflição. Então invoquei o nome do Senhor” (Sl 116,3-4).
Quando diz encontrei, significa angústia e aflição úteis, pois justamente não
nos congratulamos por ter encontrado senão o que buscávamos. Por isso, não
sabemos o que pedir. Com efeito, Deus sabe tanto o que nos convém nesta vida
quanto o que nos dará depois dela. Mas “o próprio Espírito intercede
por nós com gemidos inefáveis”. Ele diz que o Espírito geme, porque
nos faz gemer com caridade, despertando o anseio pela vida futura, do mesmo
modo como está escrito: “Porque é o Senhor vosso Deus que vos experimenta, para
saber se de fato o amais” (Dt 13,4), ou seja, para fazer-vos saber.
A
expressão “não depende, portanto, daquele que quer, nem daquele que corre, mas
de Deus que faz misericórdia” não exclui o livre-arbítrio da vontade,
mas diz não ser suficiente o nosso querer, a não ser que Deus ajude,
tornando-nos misericordiosos para bem agir, pelo dom do Espírito Santo; a isso
se refere o que disse acima: “farei misericórdia a quem eu fizer misericórdia e
terei piedade de quem eu tiver piedade”. Com efeito, não podemos nem mesmo
querer se não somos chamados e, quando quisermos, depois do chamado, não
bastará nossa vontade e nosso empenho, a não ser que Deus conceda forças aos
que correm e nos conduza aonde chama. Fica claro, portanto, que não depende de
quem quer, nem daquele que corre, mas de Deus que faz misericórdia para agirmos
bem, embora aí esteja também nossa vontade que, sozinha, nada pode. Daí o
mencionar-se o testemunho do castigo do Faraó, quando se diz falando dele: “foi
precisamente por isso que te conservei de pé, para fazer-te ver meu poder e
para que o meu nome seja proclamado por toda a terra”. Com efeito, como lemos
no Êxodo, “endureceu-se o coração do Faraó” (Ex 9,12; 10,1), para que não se
convencesse perante sinais tão evidentes. O fato de o Faraó não obedecer na
ocasião às ordens de Deus já provinha do castigo. Mas ninguém pode
dizer que esse endurecimento do coração aconteceu ao Faraó imerecidamente, mas
foi um castigo apropriado à sua incredulidade, pelo juízo de Deus que assim lhe
retribuía. Por isso, não lhe é imputado o fato de não ter obedecido então,
visto que não podia obedecer estando seu coração endurecido, mas o de
se tornar merecedor de ter o coração endurecido, devido à infidelidade. Pois, assim
como, naqueles que Deus elege, não são as obras mas sim a fé que dá início aos
méritos, para que ajam bem, por dom de Deus: também naqueles que
ele condena, a infidelidade e a impiedade são início do mérito do castigo, pelo
qual agem mal, conforme diz acima o Apóstolo: “e como não julgaram ser bom ter
o conhecimento de Deus, Deus os entregou à sua mente incapaz de julgar, para
fazerem o que não convém” (Rm 1,28). Por isso, assim conclui o Apóstolo: “faz
misericórdia a quem quer e endurece a quem ele quer”. De quem se compadece,
fá-lo agir bem, e a quem endurece, abandona-o para que aja mal. Mas essa
misericórdia é concedida também em virtude do mérito precedente da fé e
esse endurecimento, em virtude da impiedade precedente, para
que por dom de Deus façamos coisas boas e por castigo coisas más. Contudo,
não se exclui do homem o livre-arbítrio da vontade, seja para crer em Deus, com
a consequente misericórdia, seja para a impiedade, com o consequente castigo.
No que
ele diz: “Todo homem se submeta às autoridades, pois não há autoridade que não
venha de Deus”, justamente admoesta a que ninguém se ensoberbeça pelo fato de
ter sido chamado e feito cristão pelo seu Senhor para a liberdade, e julgue
que, na caminhada desta vida, não há de observar sua ordem e de se submeter aos
poderes superiores, a quem foi confiado o governo das coisas temporais para
serem administradas neste mundo. Com efeito, como somos compostos de alma e de
corpo, e enquanto estamos nesta vida temporal, façamos uso também das coisas
temporais para manter esta vida. É mister, portanto, por um lado que,
no tocante a esta vida, nos submetamos às autoridades, ou seja, aos homens
constituídos em dignidade de administrarem as coisas humanas. Por outro lado,
no tocante a nós que cremos em Deus e somos chamados a seu reino, não é lícito
que nos submetamos a homem algum que pretenda aniquilar em nós o que Deus se
dignou dar-nos em ordem à vida eterna. Por isso, se alguém, por ser
cristão, pensa que não deve pagar impostos ou tributos, ou que não é preciso
tributar a devida honra às autoridades às quais foi confiada essa função,
encontra-se num grande erro. Da mesma forma, se alguém pensa que se há de
submeter a ponto de julgar que tem poder também sobre sua fé aquele que,
investido de alguma autoridade, está à frente da administração das coisas
temporais, cai num erro maior. A norma a seguir é a prescrita pelo Senhor, ou
seja, que demos a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus (cf. Mt 22,31).
Com efeito, ainda que sejamos chamados ao reino onde não existe poder algum
deste mundo, enquanto, porém, permanecermos nesta caminhada e não chegarmos
àquele momento em que se dará a supressão de todos os principados e potestades,
toleremos nossa condição em favor desta mesma ordem das coisas humanas, nada
fazendo com fingimento e, por isso, obedecendo não tanto aos homens,
mas a Deus que nos dá esses preceitos.
O que ele
afirmou: “Quem és tu que julgas o servo alheio?”, ele o diz com a finalidade de
deixarmos para Deus o juízo sobre coisas que se podem levar a efeito com boa ou
má intenção, e não ousemos julgar sobre o coração de outro, o qual não
vemos. Mas nas coisas que de tal modo são percebidas como evidentes,
que não podem ser praticadas com boa e pura intenção, não reprova que emitamos
nosso juízo. Assim, o que diz sobre os alimentos, pelo fato de se
ignorar com que intenção se faz, não quer que sejamos juízes, mas que o seja
Deus; mas sobre aquele nefando estupro que certo homem cometera contra a esposa
de seu pai, ordenou que devia ser julgado (cf. 1Cor 5,1). Com efeito, ele não
podia dizer que o cometera com boa intenção tão hediondo delito. Portanto,
todas as ações que de tal modo são evidentes, que não se possa dizer: “Fez com
boa intenção”, devem ser julgadas por nós; mas todos os atos praticados de tal
modo que seja incerta a intenção com que foram feitos, não devem ser julgados,
mas deixados ao juízo de Deus, conforme está escrito: “As coisas escondidas
pertencem a Deus; as coisas reveladas, porém, a vós e a vossos filhos” (Dt
29,29).
https://www.salusincaritate.com/2020/03/carta-aos-romanos-comentarios-de-santo.html
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