6. Ensinar a valorizar
o cotidiano, onde a salvação acontece nos pequenos gestos de misericórdia
A sexta lição para nós diz respeito à valorização do cotidiano. Na comunidade de Mateus havia gente preocupada em conhecer o momento preciso do fim do mundo (Mt 24,3). Esse tipo de preocupação leva as pessoas se concentrarem no futuro e se esquecerem do presente. Cada vez que alguém “prevê” o fim do mundo, tem gente que fica angustiada e se deixa seduzir por líderes religiosos fanáticos, com suas propostas estapafúrdias. Na catequese de Mateus, os discípulos do Reino são ensinados e perceber a presença de Jesus Ressuscitado, mesmo nas pequenas ações. Por isso, quando alguém dá de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede, acolhe os peregrinos, oferece roupa a quem está nu, visita os doentes e prisioneiros está sendo misericordioso com o próprio Jesus. Por isso, no final de sua caminhada, ouvirá as palavras de acolhida: “Vinde, benditos do meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo” (Mt 25,34). Um elemento chama a atenção nas palavras de Jesus: “Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40).
A salvação acontece no cotidiano, de
modo muito especial, quando o discípulo
do Reino se mostra sensível ao sofrimento dos irmãos e das
irmãs sem reconhecimento social e religioso. Os pequenos passos do dia a dia
vão se direcionando para Deus, autor da nossa salvação.
Quem opta pelo egoísmo e
pela insensibilidade no
trato com os irmãos e irmãs “mais pequeninos” afasta-se cada vez mais da salvação. Resultará daí
a infeliz experiência de escutar do Senhor do Reino as terríveis palavras:
“Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para
os seus anjos” (Mt 25, 41). A certeza de estar no caminho da salvação, talvez,
pela fidelidade à Lei
de Moisés e às práticas
cultuais, se mostrará enganosa, quando o discípulo passar pelo
crivo da misericórdia. Vale a pena ler Mt 7,21-23 – “Nem todo aquele que me diz
‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas sim, aquele que pratica a
vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: ‘Senhor,
Senhor, não foi em teu nome que profetizamos e em teu nome que expulsamos
demônios e em teu nome que fizemos muitos milagres? Então, sem rodeios, eu lhes
direi: ‘Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que praticais a
iniquidade’”.
Esse ensinamento da catequese de Mateus desmascara
aquelas pessoas que se consideram muito religiosas, por praticarem uma religião
moralista, legalista e excludente, serem fidelíssimas às normas das igrejas,
porém, despreocupados com a misericórdia e o cuidado com o semelhante (Mt
23,23). As palavras de Jesus, na catequese de Mateus, devem servir de alerta
para quem investe num tipo de religião vazia, sem força de salvação, a religião
dos escribas e fariseus hipócritas de todos os tempos.
7. Motivar a prática da
fraternidade, do perdão e da acolhida ao interno da comunidade de fé, a igreja
dos discípulos e discípulas do Reino
A sétima lição que Mateus nos oferece
toca o tema da vida em comunidade, em outras palavras, nosso modo de ser
Igreja. Vou me deter apenas num aspecto: a questão das lideranças das comunidades cristãs.
O princípio das relações na comunidade está formulado em Mt 23,8-12: “Não
permitais que vos chamem de ‘Rabi’, pois um só é o vosso Mestre e todos vós
sois irmãos. A ninguém na terra chameis ‘Pai’, pois um só é o vosso Pai, o Pai
dos céus. Nem permitais que vos chamem ‘Guias’, pois um só é o vosso guia,
Cristo. Antes, o maior dentre vós será aquele que vos serve. Aquele que se
exaltar será humilhado, e aquele que se humilhar será exaltado”.
A declaração “Vós sois irmãos” coloca
todos os membros da comunidade em pé de igualdade, sem hierarquias nem classes.
O batismo iguala
todos os discípulos e discípulas do Reino. Na igreja do Reino, não
existem maiores e menores em dignidade. Existe sim distinção de ministérios, de
serviços. Porém, em nome do ministério, ninguém tem o direito de se considerar
superior aos irmãos. Falando fora da catequese de Mateus, podemos dizer que o
sacramento da ordem não pode ser considerado superior ao sacramento do batismo;
e os padres e bispos não podem se considerar superiores aos demais batizados e,
sim, servidores das comunidades dos discípulos do Reino, a Igreja.
Em Mt 18, Jesus ordena: “Não desprezeis
nenhum desses pequeninos” (v. 10), pois “não é da vontade de vosso Pai, que
está nos céus, que um destes pequeninos se perca” (v. 14). Portanto, todos
devem ser valorizados na comunidade.
Quem cair na tentação de maltratar os membros mais frágeis da comunidade,
estará agindo na contramão do Mestre Jesus. A atitude correta consistirá em
incentivá-los a perseverar na caminhada de fé, cuidando para que não desanimem.
Se, por acaso, fraquejarem, a comunidade com seus líderes deve estar disposta a
perdoar o faltoso “até setenta vezes sete vezes” (v. 22), ou seja, sempre.
Para evitar que algum membro desviado
caia nas mãos de
líderes autoritários, Jesus aponta um expediente no qual a
comunidade conduz o processo, sem depender do ponto de vista dos líderes (Mt
18,15-20). O primeiro passo consiste em alguém conversar com o irmão faltoso em
particular. Se esse primeiro passo não surtir efeito, então, será abordado por
mais uma ou duas pessoas, conjuntamente. Se o segundo passo também se mostrar
ineficaz, então, toda a comunidade se reunirá, em oração, para se perguntar: o
que o Pai dos Céus quer que façamos com esse irmão transviado? A comunidade em discernimento deverá
estar consciente de ter Jesus em seu meio, pois ele mesmo garantiu: “Onde dois
ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (v. 20). Ou
seja, trata-se de fazer a vontade do Pai dos Céus e a não dos líderes. A função
desses consiste em ajudar a comunidade a ser o máximo fiel à vontade de Deus,
que deve ser realizada “assim na terra como no céu” (Mt 6,10), porém, sem impor
suas ideias.
8. Criar uma visão
aberta de humanidade, superando a atitude de seita, gueto e “panelinha”
A oitava lição que nos oferece a catequese de Mateus refere-se à visão aberta de humanidade, superando a mentalidade sectária, de guetos, de panelinhas, tão cultivada por muitos que se dizem cristãos. Esse tema abre e fecha a catequese de Mateus. A isso os estudiosos de Mateus chamam de inclusão. A inclusão serve de moldura para a mensagem e se torna uma pista para interpretá-la. Nesse caso, significa que só terá entendido a catequese quem tiver a mente e o coração abertos para compreender o amor do Pai dos céus abarcando a humanidade inteira, sem qualquer discriminação, pois todos os seres humanos são filhos e filhas, para além da classificação de “maus e bons”. Por isso, “o Pai que está nos céus, faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,45).
Na abertura da catequese de Mateus,
encontramos a figura dos “magos do Oriente” vindos a Jerusalém em busca do
recém-nascido, rei dos judeus, guiados por uma estrela, com o propósito de
adorá-lo (Mt 2,1-2). Em meio a muitas peripécias, afinal, chegam ao destino:
“Ao entrar na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o
adoraram. Em seguida, abriram seus cofres, e ofereceram-lhes presentes: ouro,
incenso e mirra” (Mt 2,11). É o que acontece com muitas pessoas de boa-vontade
que, ao se colocarem em busca da salvação, se defrontam com a pobreza e a
simplicidade do Messias Jesus, que tem consciência de ser o Filho de Deus.
Na conclusão da catequese, temos dois
episódios interessantes. O primeiro diz respeito à reação do oficial romano e
seus subordinados, em face da ressurreição de Jesus. A primeira confissão de fé
– “De fato, este era filho de Deus!” (Mt 27,54) – brota da boca de um
não-judeu, ou seja, um pagão. O segundo refere-se ao envio missionário, os
discípulos recebem a missão de fazer outros discípulos “em todas as nações” (Mt
28,19). Nenhum povo, cultura, grupo tem privilégio no tocante ao anúncio do
Reino. Jesus estende a fraternidade do Reino a toda a humanidade. Se os membros
da comunidade são “todos irmãos e irmãs”, como está dito em Mt 23,8, também se
pode dizer da humanidade em seu conjunto: todos os seres humanos são irmãos e
irmãs. O discípulo do Reino jamais deixará que a xenofobia (ódio aos
estrangeiros) tome conta do seu coração, pois tem um coração ecumênico e aberto
ao diálogo com todas as religiões e culturas.
Para inculcar essa consciência em seus
irmãos de comunidade, o catequisa
Mateus recuperou uma cena no ministério de Jesus de
Nazaré. Certa vez, ele foi procurado por um oficial romano que lhe pedia a cura
de seu empregado paralítico. Em face da disposição do Mestre de atender o
pedido, indo curar o enfermo, o pagão faz uma comovente profissão de fé:
“Senhor, não sou digno de receber-te sob o meu teto; basta que digas uma
palavra e o meu criado ficará são” (Mt 8,8). Essas palavras tocaram no fundo do
coração de Jesus e o moveu a declarar: “Em verdade vos digo que, em Israel, não
achei ninguém que tivesse tal fé!” (Mt 8,10). Como Jesus, os discípulos do
Reino são convidados a perceber a presença da fé para além dos limites de suas
igrejas, grupos ou movimentos. Talvez, os de fora vivam a fé com mais verdade
que os de dentro, ao praticarem a misericórdia em favor dos irmãos, à margem
das práticas
religiosas vazias, quando não estridentes e espalhafatosas, bem
ao gosto dos escribas e fariseus denunciados na catequese evangélica.
Esse tipo de religião desfocada foi
denunciado com a parábola
dos vinhateiros homicidas, contada por Jesus para os sumos
sacerdotes e os fariseus, em plena Cidade Santa, Jerusalém, onde a liderança
religiosa se sentia em casa, como se fosse proprietária de Deus. Jesus conclui
a parábola com uma afirmação que tirava o tapete de debaixo dos pés de seus
acusadores: “Eu vos afirmo que o Reino de Deus vos será tirado e confiado a um
povo que produza seus frutos” (Mt 21,43). Os “cabritos” colocados à esquerda do Filho do
Homem ficarão chocados quando virem as “ovelhas” sendo acolhidas festivamente
no Reino (Mt 25,31-46). Quanta frustração haverá para quem fecha a porta do
Reino a quem não pertence a seu grupinho, povo, igreja, movimento... Não
pertence à sua “seita”!
O espírito “católico” do projeto de Jesus de Nazaré não
se limita a uma Igreja em particular. Toda comunidade que pretenda ser herdeira
do espírito de Jesus e se coloca em seus passos deverá abrir-se para acolher a
humanidade que se encarna em todos os seres humanos, sem qualquer exceção.
9. Ensinar a arte do
discernimento cristão dos “sinais dos tempos”, para não se deixar enganar pelos
falsos messias e falsos profetas, anunciadores do fim do mundo
A nona lição abre-nos para o tema do
discernimento dos sinais dos tempos, que permite aos discípulos do Reino
caminharem com segurança, em meio aos muitos percalços da vida e da história.
Em Mt 24–25, chamado Discurso
Escatológico, Jesus faz um alerta contra “os falsos messias e
os falsos profetas” (Mt 24,23) e seus discursos enganadores, à revelia de Deus.
A sensatez exige “vigilância”, “porque o Filho do Homem virá numa hora que não
pensais” (Mt 24,44) e o discípulo do Reino corre o risco de ser pego de
surpresa.
A metáfora do ladrão serve de chave de
leitura para a realidade do discípulo do Reino, no seu cotidiano. “Se o dono da
casa soubesse em que vigília da noite viria o ladrão, vigiaria e não permitiria
que a sua casa fosse arrombada” (Mt 24,43). Igualmente, a imagem do “servo fiel
e prudente que o senhor constituiu sobre sua criadagem, para dar-lhe o alimento
em tempo oportuno”. Esse servo cumpre sua tarefa e está pronto a prestar contas
a seu senhor a qualquer momento em que chegar, mesmo de improviso. Já o servo
mau, desconhecendo quando seu senhor voltaria, “começa a espancar os seus
companheiros, a comer e beber em companhia dos bebedores”, será punido
severamente, com “a sorte dos hipócritas” (Mt 24,45-50). Outra imagem é a das
dez virgens, metade insensatas e metade prudentes, à espera da chegada do
noivo. Quem não contou com a possibilidade de o noivo chegar muito tarde e, por
isso, deixou de providenciar óleo de reserva, ficará fora da festa (Mt
25,1-12).
A advertência do Mestre dispensa
explicações: “Vigiai, porque não sabeis nem o dia nem a hora” (Mt 25,13). A
virtude da vigilância, fruto do discernimento continuado, exige engajamento na
construção do mundo querido por Deus – o Reinado de Deus – pelo viés da
caridade, da misericórdia e do cuidado com os pequeninos e fragilizados de
nosso mundo. O papa Francisco,
um grande discípulo de Jesus de Nazaré, alarga o horizonte da misericórdia e do
cuidado para inserir nele a Casa
Comum, como componente obrigatório do modo de proceder
dos discípulos do
Reino. Quando o Senhor vier, deverá louvar nossa atenção com
a sustentabilidade da
criação preparada pelo Pai dos céus para seus filhos e
filhas.
10. Insistir com a
comunidade para ser Igreja em saída, para anunciar a Boa-Nova até os confins do
mundo, a todos os povos, consciente da presença do Ressuscitado
A décima lição aprendida do catequista Mateus tem muito a ver com um tema caro ao papa Francisco: fazer-nos ser Igreja em saída. O evangelista conclui sua catequese com a cena do Ressuscitado reunido com os discípulos em um monte na Galileia. É o momento em que ouvirão o imperativo que ressoa nos ouvidos e nos corações dos apóstolos: “Ide”. No capítulo 10, conhecido como Discurso Missionário, lemos que Jesus “chamou os doze discípulos, deu-lhes autoridade de expulsar os espíritos imundos e de curar toda a sorte de males e enfermidades [...] Esses Doze enviou Jesus com estas recomendações. [...]” (Mt 10,1.5). Diferentemente do que acontece em Marcos e Lucas, onde os discípulos são enviados, cumprem a missão e voltam para prestar contas ao Mestre, em Mateus a execução do mandato missionário só acontecerá no final do evangelho. Aí, sim, os apóstolos são enviados com a tarefa de “fazer com que todas as nações se tornem discípulos” (Mt 28,19). Ninguém pode ser excluído. Os apóstolos devem proclamar o evangelho, “até a consumação dos séculos” (Mt 28,20), seguros de terem consigo o Senhor que prometeu estar com eles todos os dias.
Essa missão não tem volta, pois não será
mais necessário retornar e prestar contas ao Mestre da tarefa realizada.
Afinal, os discípulos-missionários são
acompanhados pelo Senhor que os enviou.
A conclusão da catequese de Mateus alerta-nos
para nossa vocação de estar sempre a caminho, em vista de trilhar todas as
veredas e atalhos do mundo, onde se encontra a humanidade carente da Palavra da
Salvação, que chegou até nós pela mediação de Jesus de Nazaré. Supõe-se
do discípulo-missionário uma
fé adulta, livre das amarras do moralismo dos líderes das igrejas, capaz de
enfrentar os desafios da missão, na certeza de ter consigo o mesmo Espírito que
acompanhou o missionário Jesus de Nazaré. Com ele, será capaz de viver as
bem-aventuranças sem se deixar abater. E, com o seu testemunho de vida, nos
passos do Mestre, será um sinal do Reino de Deus, acontecendo entre nós.
Os rumos tomados pela catequese em
nossas Igrejas, ao longo dos séculos, exigem que se volte às fontes da catequese cristã,
centrada na formação
de discípulos–missionários. A catequese preocupada
em preparar a recepção de sacramentos, pela transmissão de dogmas e doutrinas,
mostrou-se ineficaz quando se trata de levar adiante a missão inaugurada pelo
Mestre de Nazaré.
O Evangelho de Mateus, catequese narrativa
voltada ao discipulado do Reino, contém em suas entrelinhas pistas preciosas
para a tarefa
catequética das comunidades cristãs de todos os tempos.
Sua leitura atenta pode servir de inspiração para os catequistas de hoje, que
se dispõem a crescer enquanto discípulos-missionários e,
nos passos de Jesus de Nazaré, anunciar o Reino de Deus a todas as gentes, até
a consumação dos tempos (Mt 28,16-20).
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