Por que há diferença entre os Evangelhos?
Elton Alves
Nos propomos neste artigo a apresentar, brevemente,
os elementos essenciais que são fundamento para uma correta leitura dos relatos
evangélicos, sobretudo dos Sinóticos, isto é: Mateus, Marcos e Lucas.
A pergunta-tema deste
artigo tem por base a inquietação que algumas pessoas trazem – sobretudo se são
novos na vida de fé – ao se aproximarem dos evangelhos e perceberem as
diferenças entre as narrações. Estas diferenças não seriam um testemunho contra
a autenticidade dos relatos evangélicos? O aspecto principal que move à tal
inquietação é: por que há diferenças nas narrações – que tocam por vezes o
conteúdo e, por vezes, a cronologia dos fatos –, se a vida de Jesus é uma só?
Nos propomos neste artigo
a apresentar, brevemente, os elementos essenciais que são fundamento para uma
correta leitura dos relatos evangélicos, sobretudo dos Sinóticos, isto é:
Mateus, Marcos e Lucas.
Convergência
e divergência
O primeiro elemento a ser
observado é que, para além das divergências, há uma grande convergência entre
os Sinóticos. Cabe aqui uma pequena estatística aproximativa¹: o Evangelho
segundo Mt possui 1.068 versículos, Mc possui 661 e Lc 1.150. Destes, 330
versículos são comuns aos três Evangelhos. Se pensarmos no Evangelho segundo
Marcos, que é menor, 90% de seu material pode ser encontrado em Mateus (600
versículos) e 60% em Lucas (350 versículos).
Há também uma parte comum
a Mateus e Lucas (240 versículos), não presente em Marcos². De fato, a
convergência entre os sinóticos é tão claramente observada que desde os tempos
antigos se suspeitou de uma fonte original comum – a nós desconhecida – ao qual
os evangelistas teriam recorrido para escrever seus relatos. Em época mais
recente esta hipotética fonte foi chamada de Logienquelle, isto
é fonte das palavras ou ditos³ de Jesus.
Etapas na
elaboração das narrações evangélicas
O segundo elemento está
relacionado às etapas percorridas para a elaboração do Evangelho escrito. Assim
diz Lucas: «visto que muitos já se colocaram a compor uma narração dos fatos
que se cumpriram entre nós – conforme no-los transmitiram os que, desde o
princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra – a mim também
pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o princípio, escrever-te
de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que verifiques a solidez dos
ensinamentos que recebeste» (Lc 1,1-4). As palavras de Lucas servem como
documentação valiosa para compreender como o Evangelho foi formado. Podemos
distinguir três fases:
- O acontecimento: a vida e o ensinamento de Jesus, tal
como os discípulos o experimentaram.
- O relato oral: o testemunho da Igreja primitiva,
especialmente pela pregação dos apóstolos.
- O relato escrito: a atividade literária dos
evangelistas.
Há dois elementos a serem evidenciados a partir desta estrutura tripartida, isto é, a experiência e a transmissão dos eventos ocorridos. Primeiramente, é necessário dizer que a experiência – com a vida e as palavras de Cristo – não foi vivida de modo idêntico por todos. Certamente há de se afirmar que os elementos essenciais desta experiência permaneceram concordes entre os discípulos, por exemplo: a certeza de que Jesus é enviado pelo Pai, de que Ele é o cumprimento das promessas do AT; a fé em seu sacrifício redentor, sua ressurreição etc. Todavia, nos detalhes, cada um experienciou nuanças diferentes na vida com Cristo. Deste modo, na transmissão de certos fatos, podemos dizer que as diferenças não são um sinal de contradição, mas sim de complementaridade.
Quanto à compreensão e
transmissão dos eventos ocorridos, Orsatti ressalta ainda alguns elementos
importantes:
«Na verdade, o testemunho
sobre a vida de Jesus não é um relato neutro ou simplesmente cronológico.
Implica a fé em Cristo morto e ressuscitado. Temos de pensar que muitos
acontecimentos só assumiram contornos definidos – e plena luz – depois da
Páscoa, quando foi possível compreender os acontecimentos na sua globalidade.
Acrescentemos também o dom indispensável do Espírito que os permitiu conhecer e
anunciar o mistério de Jesus (cf. Jo 14, 26; 15, 26; 16, 13)»⁴.
Perspectiva
teológica
O terceiro elemento a ser
evidenciado é a perspectiva teológica de cada autor, que está – até certo ponto
– interligado ao destinatário do escrito. Sob este prisma observa-se,
sobretudo, a singularidade de cada relato; uma outra estatística, aproximativa,
nos auxilia: no evangelho segundo Marcos, temos 53 versículos específicos num
total de 661. No evangelho segundo Mateus, temos 330 (específicos) num total de
1.068 e no evangelho segundo Lucas, 500 (específicos) num total de 1.150
versículos⁵.
Apresentemos aqui alguns
exemplos e características dos relatos evangélicos: a narração de Marcos é
muito imediata, com um conteúdo direto e frases feitas, muitas vezes, sem
orações subordinadas. Por isso, podemos dizer que neste Evangelho temos o
reflexo do kerygma da Igreja primitiva.
Quanto ao relato de
Mateus, encontramos entre os seus primeiros destinatários pessoas oriundas do
judaísmo e, portanto, com um profundo conhecimento das Escrituras. Mateus
ajuda-os a compreender que Jesus de Nazaré é o Messias que cumpre as
expectativas e promessas do AT. Portanto, cita o AT duas vezes mais do que
Marcos e Lucas.
Por sua vez, os primeiros
destinatários de Lucas vêm do mundo pagão; além de não estarem familiarizados
com as Escrituras, não conhecem o mundo judeu, com alguns problemas que lhe são
típicos. Portanto, Lucas não relata a discussão sobre o retorno de Elias (cf.
Mc 9,11-13; Mt 17,10-13), nem mesmo o rígido cerimonial de cada refeição, como
a meticulosa lavagem das mãos ou a casuística dos alimentos puros e impuros
(cf. Mc 7,1-23; Mt 15,1-20)⁶, etc.
Um outro exemplo, que pode
causar perplexidade num primeiro momento, se encontra na Paixão de Cristo.
Enquanto Mateus e Marcos colocam nos lábios de Jesus o Salmo 22,2: «meu Deus,
meu Deus, por que me abandonastes» (Mt 27,46; Mc 15,34), Lucas se refere a um
outro Salmo, o 31,6, que diz : «em tuas mãos eu entrego o meu espírito».
Poderíamos nos perguntar,
por que há estas divergências? Antes de responder, convém dizer que é mais
provável que Jesus tenha citado o Salmo 22,2 do que o 31,6. Dois fatos nos
conduzem à esta afirmação: os testemunhos de Mt e Mc e o enquadramento perfeito
deste salmo com todo o contexto de redenção operado por Jesus⁷. A pergunta que
nos fazemos, então, é: por que Lucas colocou nos lábios de Jesus o Salmo 31,6?
Para quem conhece o mundo
hebraico sabe que a citação do início de um salmo equivale à sua completa
citação. Deste modo, o salmo 22, que inicia dramaticamente, vai assumindo o
contorno de completa confiança na ação divina, que culmina não só na salvação
do próprio orante, mas esta transforma-se em saciedade para os pobres (cf.
Sal 22,27).
Mais ainda, a salvação
operada por Deus abraça todas as nações: «Todos os confins da terra se
lembrarão e voltarão a Yhwh; todas as famílias das nações diante dele se
prostrarão» (Sal 22,28)⁸. Por isso, contrariamente do que se pensa, a oração de
Jesus com o Salmo 22 não é a de alguém que se sente perdido e abandonado, mas
sim de alguém que no profundo de sua dor sabe em quem colocou a confiança; sabe
o significado salvífico de sua própria morte. Sabe que o Pai não o abandonará
na mansão dos mortos (cf. Mt 17,9; Mc 9,9-10).
Os destinatários de Lucas
não podiam compreender este modo hebraico de se citar os Salmos e não tinham
familiaridade com as Sagradas Escrituras. Por isso, Lucas traduz o
núcleo da oração contida no Salmo 22, por meio do salmo 31,6, e acrescenta um
elemento bastante significativo nos lábios de Jesus, isto é, a invocação de
Deus como Pai. «Pai, em tuas mãos eu entrego o meu espírito» (Lc, 23,46)⁹. Eis
que a divergência, deste modo, apresenta-se como uma grande convergência, já
que o conteúdo salvífico permaneceu intacto e fielmente transmitido aos
cristãos oriundos do Helenismo.
Não seria possível aqui,
pela brevidade deste artigo, apresentar a singularidade – e ao mesmo tempo, a
complementaridade – do Evangelho segundo João. Todavia, para ilustrar a sua
grandeza teológica, escutemos as palavras de Orígenes: «ninguém ousou dar uma
revelação tão pura, sobre a divindade do Senhor, como João. É necessário ousar
e dizer: os evangelhos são o cumprimento de toda a Bíblia; e, o evangelho
segundo João, o cumprimento dos evangelhos»¹⁰.
A busca
de uma falsa harmonia
Qualquer tentativa de se
reduzir ou simplificar a diversidade dos quatro relatos evangélicos conduz ao
fracasso. Tal fracasso foi atestado na obra de Taciano, um teólogo sírio do
século II, quando compôs o Diatésseron, buscando uma “harmonia dos
evangelhos”. Ele uniu os quatro relatos em um só, como modo de
“simplificar” e “evitar as repetições”.
Assim, tínhamos em sua
obra apenas um relato da Paixão e da Ressurreição, um relato da Transfiguração
(em vez de três relatos), um relato das beatitudes, Pai-Nosso, e assim
sucessivamente. Embora a igreja particular da Síria tenha sofrido o influxo de
tal “harmonia” até o quinto século, a Igreja universal não a fez sua,
preferindo o quadriforme testemunho do Evangelho¹¹.
O
Evangelho quadriforme
Já no II século d.C, santo
Irineu – ao referir-se aos relatos evangélicos –, não falava de quatro evangelhos,
mas sim de um único Evangelho quadriforme¹². De fato, o evangelho é único
quanto ao seu gênero literário e também quanto ao seu conteúdo, mesmo
apresentando-se em quatro perspectivas diferentes¹³.
Por isso, apesar desta
fórmula estar muito presente em nossa linguagem, convém notar que o correto não
é dizer “Evangelho de”, mas sim “Evangelho segundo” Mateus, Marcos, Lucas e
João. Um importante estudo feito por Martin Hengel demonstra que tal
denominação (Evangelho segundo) comparece já nos papiros do II e III
século, que são as testemunhas mais antigas dos escritos evangélicos¹⁴.
Como conclusão, convém
fazer uma última observação histórica. Os primeiros cristãos encontraram no
quadriforme Evangelho, não uma ameaça à verdade histórica, mas sim o reconhecimento
de fatos tão grandiosos – quanto ao acontecimento e seu significado –, que,
como afirmou o evangelista João, «se fossem escritas uma por uma, creio que o
mundo não poderia conter os livros que se escreveriam» (Jo 21,25).
Referências utilizadas
1 – Dizemos “aproximativa”
porque, para ser exata, a estatística precisaria ser tomada não por versículos,
mas sim palavra por palavra. Todavia, com esta estatística, podemos ter uma
visão bem aproximada da realidade.
2 – Cf. M. ORSATTI, Introduzione al Nuovo Testamento, Eupress-FTL, Lugano
2005, 168-169.
3 – Cf. Ibid.
4 – Ibid., 164.
5 – Cf. R. FABRIS, in R. FABRIS – G. BARBAGLIO – B. MAGGIONI, I Vangeli,
Cittadella, Assisi 2008 2 , 33.
6 – Cf. ORSATTI, Introduzione al Nuovo Testamento, 165-166.
7 – Para conhecer melhor o signifiado do Salmo 22 na paixão, ler: RATZINGER, J.
/ BENTO XVI, Jesus de Nazaré, II, Princípia, Parede 2011, 167-176.
8 – Cf. RATZINGER, J. / BENTO XVI, Jesus de Nazaré, II, 169.
9 – Cf. B. PRETE, I quattro Vangeli, Radici BUR, Milano 2008, 1078.
10 – ORÍGENES, Comentário sobre o Evangelho segundo João, 1,6.
11 – Cf. ORSATTI, Introduzione al Nuovo Testamento, 166-167.
12 – Cf. IRINEU DE LIÃO, Adv. haer., III, 11,8.
13 – Cf. ORSATTI, Introduzione al Nuovo Testamento, 162.
14 – Cf. H. J. SCHULZ, Die apostolische Herkunft der
Evangelien, Herder, Freiburg 1993,39s.
Fonte: https://comshalom.org/por-que-ha-diferenca-entre-os-evangelhos/
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