Por Padre Eliseu Wisniewski*
Este texto discorre sobre a aporofobia, pontuando causas e caminhos para a sua superação.
Introdução
Fruto da 58ª Assembleia Geral da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil, o Estudo nº 114, intitulado “E a Palavra habitou entre nós” (Jo 1,14): animação bíblica da pastoral
a partir das comunidades eclesiais missionárias, entende que, em sua
missão evangelizadora, a Igreja se alimenta da Palavra de Deus, ao mesmo tempo que
a compartilha com uma humanidade “faminta”. Segundo os bispos, deparamos hoje com
inúmeros desafios que não podem ser aceitos “em nome da Palavra de Deus e do Deus
da Palavra” (n. 82); entre eles, o crescente número de pobres e as variadas formas
de pobreza: “são milhões de irmãos e irmãs sem acesso ao mínimo necessário à dignidade
humana, experimentando a fome, o desemprego ou sua precarização, a falta de moradia
e de saúde, o banimento de suas terras, a migração forçada e tantas outras situações
degradantes” (n. 82). Essa situação de extrema pobreza, em vez de “gerar atitudes
de empatia, paz e misericórdia” (n. 86), tem gerado “indiferença ao clamor dos pobres”
(n. 86) e “horror ao pobre” (n. 84). Para esse ódio, preconceito e desprezo aos
pobres, “há algum tempo, cunhou-se um termo novo: ‘aporofobia’” (n. 84).
Desse novo conceito é que nos ocuparemos nesta breve
reflexão. Num primeiro momento, tomaremos consciência da forma como os pobres são
vistos e tratados em tempos nos quais os preconceitos ganham a “máscara da sinceridade”,
produzindo um imaginário ou uma visão muito negativa sobre eles, acusados de preguiçosos,
acomodados, vagabundos, boas-vidas, viciados, agressivos, perigosos, assassinos
(AQUINO JÚNIOR, 2020, p. 113-147), o que favorece e estimula discursos e crimes
de ódio contra os mais vulneráveis.
Sendo a aporofobia um atentado quase
invisível contra a dignidade, os direitos e o bem-estar de pessoas que têm nome
e sobrenome, num segundo momento nos deteremos sobre a contribuição de Adela Cortina
no livro Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia,
focando nas razões pelas quais é preciso dar um nome a esse tipo de rejeição e nas
causas dessa patologia social.
Por fim, apresentaremos alguns caminhos viáveis para
o enfrentamento da aversão aos pobres, à luz da chave de leitura proposta pelo papa
Francisco:
Servir eficazmente os pobres incita à ação e permite
encontrar as formas mais adequadas para levantar e promover esta parte da humanidade,
demasiadas vezes anônima e sem voz, mas que em si mesma traz impresso o rosto do
Salvador que pede ajuda. […] Não se trata de serenar a nossa consciência dando qualquer
esmola, mas antes contrastar a cultura da indiferença e da injustiça com que se
olha os pobres (FRANCISCO, 2021).
1. Um nome como caminho para o reconhecimento de uma forma de discriminação
Os pobres estão no meio de nós, e o número deles tem
aumentado desmesuradamente. Praticamente a metade da humanidade vive em situação
de pobreza (agravada pela pandemia da covid-19) e de não reconhecimento de suas
necessidades básicas. Para muita gente, eles são um incômodo, justamente pelo fato
de serem pobres. Incomodam porque não trazem recursos nem realizam as expectativas
do mercado, mas constituem um número sem fim de problemas e complicações. Para aquelas
pessoas, é o pobre que, entre outras coisas, fará aumentar os custos da saúde pública,
tomará posse dos bens alheios, dará despesas desmedidas ao Estado e acabará com
o bem-estar da sociedade. Por isso, é um dever moral excluí-los.
É desse tema que se ocupou a filósofa
Adela Cortina (2020). De acordo com ela, é preciso dar nome ao que está acontecendo.
Foi assim que criou uma palavra própria para essa chaga social: aporofobia (à-poros, pobre, e fobéo, aversão), ou seja, o ódio, a repugnância ou a hostilidade
ante o pobre, o sem recursos, o desamparado. Trata-se da ojeriza por determinadas
pessoas que, na maioria das vezes, não são reconhecidas como tais, por terem a característica
própria de um grupo determinado, considerado temível ou desprezível – ou ambas as
coisas –, no confronto com o qual se experimenta uma espécie de fobia. É a fobia
ao pobre que produz rejeição àquelas pessoas, raças e etnias que habitualmente não
têm recursos e, portanto, são consideradas como não construtoras da sociedade e
do bem-estar.
Esse neologismo criado por Adela Cortina foi muito importante
para poder diagnosticar, com maior precisão, essa nova “enfermidade” social, tentar
descobrir sua etiologia e propor “tratamentos” efetivos. Por mais incômodos que
causem, certos fenômenos precisam ser nomeados para que possamos reconhecer sua
existência, estudá-los e enfrentá-los, isto é, tirá-los do anonimato e desmascará-los.
Nomear os fenômenos é apenas um caminho para o reconhecimento de certas formas de
discriminação desumana contra a dignidade, os direitos e o bem-estar das pessoas
e, consequentemente, de certas formas de exclusão social.
A aporofobia é um tipo de rejeição peculiar, diferente
de outros tipos de ódio ou rejeição, porque, entre outras razões, a pobreza involuntária
não é um traço da identidade das pessoas, não é uma questão de opção. Os que dela
padecem podem se resignar e acabar agradecendo qualquer pequeníssimo gesto de caridade
ou melhora de sua situação. Trata-se de questão que precisa ser denunciada criticamente,
porque acaba mantendo na miséria os que nem sequer têm consciência dela, quando,
na verdade, a pobreza econômica involuntária é um mal de que se padece por causas
naturais ou sociais e que, a esta altura do século XXI, já poderia ter sido suprimido
da face da terra, pois os meios para isso não faltam.
Ao longo dos séculos, evoluímos no entendimento de que
os pobres não são culpáveis por sua situação ou responsáveis por ela, pois existem
causas naturais e sociais que uma sociedade justa deve enfrentar e erradicar. Uma
sociedade será justa se nela a justiça distributiva priorizar os menos favorecidos.
Por isso, uma boa política antipobreza é a que, por um lado, promove as pessoas
para que possam dela sair, empoderando moralmente os cidadãos como interlocutores
válidos, sujeitos dignos de respeito, protagonistas da própria história, e, por
outro, se opõe energicamente a toda espécie de ódio, desprezo, rejeição e exclusão
por questões de cor de pele, raça, pertencimento étnico, convicção religiosa, ideologia,
situação de incapacidade e, de modo especial, pobreza econômica.
Pobreza não é apenas carência dos meios necessários
para sobreviver. É a falta de liberdade e a impossibilidade de levar a cabo os próprios
planos de vida. Não há dúvida de que a pobreza expressa e reforça a discriminação
entre as pessoas, na medida em que algumas têm mais do que precisam para viver e
a maioria não tem sequer o necessário para sobreviver. Assim sendo, a pobreza involuntária
é um mal que deve ser eliminado, porque é geradora de relações assimétricas que
constituem a base da aporofobia. Esta, por sua vez, enquanto atitude vital, é o
desprezo e a rejeição daqueles que se encontram em situações piores, tanto econômica
quanto socialmente. A pobreza social e econômica converte as pessoas em foco de
desprezo.
2. As formas da aversão aos pobres e algumas de suas causas sociais
Para Cortina (2020), a pergunta-chave consiste em saber
se a fobia está em quem despreza ou em quem é desprezado. Ela sustenta que a fonte
de onde surge o ódio e o desprezo é “o que odeia” e “não quem é odiado”. A chave
do ódio reside em quem odeia, não no coletivo objeto de ódio, porque aquele incorpora
determinada fobia e sempre se justifica, culpando o coletivo desprezado e gerando
outros dois tipos de patologias sociais: os incidentes de ódio e o discurso de ódio.
Esmiucemos suas características. Os incidentes de ódio
se produzem quando há constância de um comportamento de desprezo e maus-tratos dirigido
a certas pessoas por pertencerem a determinado coletivo; tal comportamento não cumpre
o requisito para ser tipificado como crime. A atitude de desprezo aos outros é expressão
de um caráter malformado, de uma situação degradada. Por sua vez, os discursos de
ódio consistem em qualquer forma de expressão cuja finalidade seja propagar, incitar,
promover ou justificar o ódio a determinados grupos sociais, a partir de uma posição
de intolerância. Com esse tipo de discurso se pretende estigmatizar determinados
grupos e abrir as portas para que possam ser tratados com hostilidade. São expressões
que implicam incitação pública à violência, ao ódio e à discriminação, traduzindo-se
em insultos, difamações públicas por razões de raça, cor, língua, religião, nacionalidade
ou etnia.
As injustiças sofridas em nível pessoal ou por grupos
inteiros, humilhados e ofendidos, produzem indignação e podem se cristalizar em
ódio. Naturalmente, as agressões podem se dirigir a pessoas concretas, mas não por
causa delas próprias, e sim por pertencerem a determinado grupo. Em princípio, o
discurso se dirige contra um indivíduo não porque este tenha causado algum dano
ao outro, mas porque goza de um traço que o inclui em determinado coletivo, no coletivo
dos “teus”, que é diferente dos “nossos”.
As vítimas não são selecionadas pela sua identidade
pessoal, mas por pertencerem a um coletivo, dotado de um traço que produz repulsão
e desprezo nos agressores. A causa da agressão é o desprezo a essa característica
determinada, e não alguma experiência pessoal ruim anterior. O dano é dirigido contra
um grupo determinado de pessoas não por serem elas mesmas, mas por serem “uma”,
“um”, “uns”, “umas”. Esse artigo indeterminado parece justificar qualquer atropelo
contra pessoas concretas ou qualquer ação para machucá-las física e moralmente,
privá-las de autoestima, do acesso à participação pública e, até mesmo, da própria
vida.
Estigmatiza-se e difama-se um coletivo atribuindo-lhe
atos prejudiciais à sociedade, ainda que seja difícil comprová-los – se não impossível,
porque, em certas ocasiões, remetem a uma história remota que foi gerando preconceito
ou se formou por meio de murmúrios e fofocas. Situa-se o coletivo na mira do ódio
precisamente porque as “lendas obscuras” pretendem justificar a incitação ao desprezo
que a sociedade deveria sentir por determinado coletivo, segundo os inventores dessas
lendas.
A pessoa que pronuncia o discurso ou que comete o crime
de ódio está convencida da existência de uma desigualdade estrutural entre ela e
a vítima; acredita estar numa posição de superioridade. A convicção é que existe
uma hierarquia estrutural, na qual o agressor ocupa o lugar superior e o agredido,
o inferior. Em todo caso, quem despreza assume uma atitude de superioridade em relação
ao outro; considera que sua etnia, raça, orientação sexual ou crença é superior
e que, portanto, a rejeição está legitimada. Este é um ponto central das fobias:
a convicção de que existe uma relação de assimetria, de que a raça, a etnia, a orientação
sexual, a crença religiosa ou ateia de quem despreza sejam superiores às de quem
é objeto da rejeição. Por isso, o indivíduo se considera legitimado para atacar
as atitudes, as palavras e, até mesmo, as pessoas.
O agressor serve-se do discurso para manter a sensação
de superioridade, a visão deformada e deformante da realidade, e fortalecer sua
superioridade estrutural e a identidade subordinada das vítimas. No entanto, é necessário
perceber que esse discurso de ódio, que pode ou não levar a incitar a violência,
é escasso ou nulo de argumentação. O agressor não pretende dar argumentos, mas expressar
desprezo, estimular que isso seja compartilhado e, dessa forma, justificar o desprezo
ou a incitação à violência. Por isso se faz necessário elucidar a miséria do discurso
de ódio, pois, do ponto de vista ético, quem rejeita e ofende estando no poder,
seja este de que tipo for, rompe toda possibilidade de convivência justa e amistosa,
rompe o vínculo com o humilhado e ofendido e degrada a si mesmo. Os discursos de
ódio enfraquecem a convivência, rompem a intersubjetividade e cortam os vínculos
interpessoais.
Além disso, esse tipo de discurso é monológico, e não
dialógico. É monológico porque quem o pronuncia não considera seu ouvinte como um
interlocutor válido, como sujeito dotado do direito de responder e entrar em diálogo,
e sim como um objeto heterônomo que não merece respeito nenhum. Trata-se de um monólogo
com forma aparente de diálogo. Quem profere discursos de ódio não reconhece os que
são alvo de suas palavras como sujeitos com quem poderia estabelecer um diálogo,
e sim como objetos que apenas merecem desprezo, estigmatização, manipulação e rejeição.
Negar ao ouvinte capacidade de interlocução, tratá-lo como objeto, e não como um
sujeito, supõe romper o vínculo de intersubjetividade que torna possível a linguagem
humana e admitir que o discurso carece de sentido; supõe cometer uma contradição
performática: aquela que existe entre o fato de tratar o interlocutor como objeto
mediante um discurso que só pode se dirigir a um sujeito.
O discurso de ódio, em si mesmo, pode
causar danos às pessoas; não é necessário que incite outros a matá-las, feri-las
ou levar a cabo ações danosas contra elas. Falar é agir, é realizar uma ação que
tem a capacidade de causar dano por si própria. Independentemente de a fala poder
incitar uma ação violenta, o discurso é uma ação diferente da agressão posterior
e pode, por si próprio, causar dano. Do ponto de vista ético, estigmatizar outras
pessoas, condenando-as à exclusão, à perda de sua reputação e privando-as do direito
à participação social, é algo, por si só, lesivo e destruidor de qualquer possibilidade
de convivência justa. O fato de estabelecer uma relação assimétrica, de radical
desigualdade entre “nós” e “eles”, é algo que atenta contra os princípios mais básicos
de um ethos democrático.
Os seres humanos nascem de uma relação,
de vínculos. Não são átomos fechados em si mesmos, mas sobrevivem por sua solidariedade
com o próximo e por sua defesa contra os estranhos – eis a chave do cérebro xenófobo.
Paulatinamente, foram praticando a cooperação e a troca recíprocas com aqueles que
podiam retribuir de algum modo, formando o “nós” do benefício mútuo, que exclui
os áporoi, os que não parecem aportar vantagens no jogo de
troca. Essa seria a raiz de nosso cérebro aporófobo, a raiz da aporofobia. Ainda
que o ambiente atual tenha mudado substancialmente em comparação com as sociedades
originárias, a espécie humana permaneceu essencialmente a mesma, biológica e geneticamente:
continuamos com a moral dos grupos de benefício próprio. Nascemos com essa tendência
de ignorar quem não nos oferece benefícios.
Os pobres são aqueles que parecem não ser capazes de oferecer algo nas sociedades baseadas no jogo de troca, no jogo das reciprocidades, o qual consiste em dar para poder receber, seja da pessoa a quem se dá, seja da pessoa que está autorizada a devolver de alguma forma. Essa é a dinâmica das sociedades contratualistas, que são, sem dúvida, muito superiores àquelas regidas pelo egoísmo selvagem. Tais sociedades, porém, excluem os pobres porque são submetidas ao “princípio da troca” e também ao “efeito Matthew”, segundo o qual “quem tem mais recebe mais, e quem tem pouco, mesmo o pouco lhe será tirado”.
Referências bibliográficas
AQUINO JÚNIOR, Francisco.
Violência contra os pobres: um pecado contra o próprio Deus. In: ZACHARIAS, Ronaldo;
MILLEN, Maria Inês de Castro (Org.). A moral do papa Francisco: um
projeto a partir dos descartados. Aparecida: Santuário, 2020. p. 113-147.
CONFERÊNCIA NACIONAL
DOS BISPOS DO BRASIL. “E a Palavra habitou entre nós” (Jo 1,14):
animação bíblica da pastoral a partir das comunidades eclesiais missionárias. Brasília: CNBB, 2021. (Estudos da CNBB, 114).
CORTINA, Adela. Aporofobia: a aversão ao pobre. Um desafio para a democracia.
São Paulo: Contracorrente, 2020.
FRANCISCO, Papa. Mensagem para o V Dia Mundial dos Pobres: “Sempre tereis pobres entre vós” (Mc 14,7), 14 nov. 2021. Disponível em: <https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/poveri/documents/20210613-
messaggio-v-giornatamondiale-poveri-2021.html>. Acesso em: 6 dez. 2021.
Padre Eliseu Wisniewski*
*é mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
https://www.vidapastoral.com.br/edicao/aporofobia-abordagem-de-um-problema-social/
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