sábado, 11 de junho de 2022

O ESPÍRITO SANTO NOS PADRES DA IGREJA (II)


Por Prof. Roque Frangiotti

5. Teologia trinitária de Santo Agostinho

 

No Ocidente um sínodo romano — sob o papa Dâmaso I, em 382 —, oferece uma apresentação particularizada da doutrina eclesiástica, mediante a qual se enucleou mais a divindade do Espírito Santo que a sua função histórico-salvífica. O sínodo operou, dessa forma, um sentido metafísico da compreensão do Espírito. Mas uma característica mais exata do Espírito Santo será alcançada na teologia trinitária de Santo Agostinho. Referindo-se à vida espiritual interior, estimulado também por alguns acenos da Sagrada Escritura, Agostinho chega à concepção de que o Espírito Santo é o amor que une o Pai e o Filho. Que ele é produto de um movimento de amor entre o Pai e o Filho.

De fato, já no capítulo 6 do livro I sobre A Trindade, Agostinho aborda a questão da deidade do Espírito Santo e sua igualdade com o Pai e o Filho.

Assim, no capítulo 13 do mesmo livro I, Agostinho escreve: “Sobre o Espírito Santo, recolhem-se também testemunhos abundantes dos quais fizeram uso todos os autores que antes de nós escreveram acerca destas matérias, nos quais se prova que o Espírito Santo é Deus, e não criatura. E se não criatura, é não somente Deus — pois os homens foram também chamados deuses (Sl 81,6) —, mas Deus verdadeiro. É, portanto, igual em tudo ao Pai e ao Filho, consubstancial e coeterno na unidade da Trindade”.

Mais adiante, no livro II, capítulo 3,5, Agostinho apresenta outra regra para a doutrina sobre o Espírito Santo. “Resta-nos agora provar como o Espírito Santo também recebeu tudo do Pai, tal como o Filho, para demonstrar que o Espírito Santo não é inferior nem ao Pai nem ao Filho”. Do mesmo modo, não se infere que o Espírito Santo seja inferior pelo fato de Cristo dizer: “Não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido”. Essa sentença, diz Agostinho, indica apenas que “o Espírito Santo procede do Pai”. No capítulo 7 deste livro II fala da missão do Filho e da missão do Espírito Santo. No livro XVII 14.15, Agostinho apresenta o Pai e o Filho como princípio único do Espírito Santo: O Pai e o Filho não estão em oposição ao Espírito Santo, mas ambos constituem um único princípio, um único doador do Espírito Santo. Já no livro V 14,15 havia dito: “Ao proceder do Pai, o Espírito Santo procede também do Filho, não como de dois princípios, mas de um só princípio”. Tal interpretação prende-se expressamente à tradição grega, mas também se encontra em Tertuliano, em Ambrósio e Hilário de Poitiers.

Mas a precisão sobre a teologia do Espírito Santo, em Agostinho, encontra-se no termo caridade-amor. Para ele, o termo caridade insinua aquela caridade comum pela qual e na qual Pai e Filho se amam mutuamente. Esse termo indica como a terceira pessoa procede comumente do Pai e do Filho e os une um ao outro. Essa caridade mútua entre o Pai e o Filho é, para Agostinho, substancial. Se o amor interior na criatura não é senão uma imagem inadequada do Espírito Santo, pelo fato de sua pobreza ontológica, ele revela algo do jogo das relações mútuas das Pessoas divinas. Assim Agostinho explica no livro XV 23,43 sobre A Trindade: “O amor-faculdade humana que procede do conhecimento é que une a memória à inteligência, sendo comum à faculdade que exerce de certo modo o papel de pai (a memória), e à que exerce o papel de prole (que é a inteligência). Está manifesto por aí que o amor não pode ser entendido, nem como o que gera, nem como o que foi gerado. Logo, o amor, na imagem humana, oferece alguma semelhança, ainda que bem imperfeita com o Espírito Santo”. Portanto, o Espírito Santo não é apenas o fruto da união do Pai e do Filho, mas essa união mesma que atua, ligando um ao outro e o que impede o Espírito Santo de ser Pai ou Filho é, precisamente, aquilo que ele recebe ao mesmo tempo de ambos”[4].

 

6. “Filioque

Sucessivas declarações doutrinais da Igreja trouxeram ainda uma mudança importante política e teologicamente. Inserida aos poucos no símbolo constantinopolitano, a fórmula Filioque tornou-se uma pesada herança doutrinal até hoje não resolvida, entre a Igreja do Ocidente e a Igreja do Oriente.

A formulação de que o Espírito procede do Pai e do Filho aparece na tradição ocidental nas últimas décadas do século IV. Encontra-se de vários modos nas obras de Ambrósio, de Mário Vitorino, de Hilário de Poitiers, preparando o caminho para Agostinho desenvolver a noção de Tertuliano de que a processão do Espírito se efetua por meio do Filho.

Inserida na Espanha, no sínodo de Braga de 675, a fórmula ganhou a Gália e a Itália. Quando, em 808, os monges do mosteiro franco, construído sobre o monte das Oliveiras, cantaram no Credo o Filioque, foram taxados de hereges pelos monges gregos. O papa Leão III declarou que a processão do Espírito Santo também do Filho devia ser exposta na pregação, mas que a inserção da fórmula no Credo seria supérflua. A pedido do imperador Henrique II, a fórmula Filioque foi inserida no símbolo também em Roma, por Benedito VIII, em 1014.

O patriarca grego Fócio (+1073) defendia que a processão do Espírito Santo era só do Pai e fez dessa afirmação um dogma para a Igreja Oriental. Consolidou, assim, com considerações dogmáticas a separação entre a Igreja do Oriente e a Igreja do Ocidente, mais especificamente romana, separação que se fundava muito mais por motivos políticos e culturais que propriamente dogmáticos.

 

7. Resumindo

 

A reflexão da fé vai aplicar-se sobre a ação e a natureza do Espírito Santo gradualmente a partir do século II no contexto da dimensão soteriológica e cristológica. Resolvida, de certo modo, a crise ariana, definida a divindade de Jesus Cristo, os Padres passaram a defender a divindade do Espírito Santo. Isso ocorreu por volta do ano 360. A análise estrutural da definição do Concílio de Constantinopla esclarece os atributos dados ao Espírito Santo: Ele é Senhor que dá a vida dos filhos de Deus, isto é, santifica, diviniza, é coadorado e coglorificado, procede do Pai, embora não se precise ainda a relação com o Filho. Evidentemente o argumento prevalecente para a afirmação da divindade do Espírito Santo foi o soteriológico: se somos resgatados e divinizados pelo Espírito Santo, é porque ele é Deus igual ao Pai e ao Filho. Os protagonistas da ortodoxia foram Atanásio e os capadócios, Basílio e os Gregórios. O passo decisivo para a afirmação da ortodoxia foi dado pelo Concílio de Constantinopla, em 381, que sublinhou a verdadeira divindade do Espírito Santo. Ulteriores explicitações do dogma trinitário, especialmente em relação ao Espírito Santo, foram desenvolvidas de modo particular por Santo Agostinho em sua obra A Trindade. A inserção da fórmula Filioque na liturgia levou à separação das Igrejas do Oriente e do Ocidente, provocando o cisma que deu origem à independência da Igreja Oriental em relação à Igreja de Roma.

_______________

[4] É recomendável a leitura da obra A Trindade de Agostinho. Obra que influenciou definitivamente a Idade Média, talvez a melhor sobre as questões trinitárias. Encontra-se publicada na col. “Patrística” (vol. 7), S. Paulo, Paulus, 1995.

 

https://www.vidapastoral.com.br/artigos/patristica/o-espirito-santo-nos-padres-da-igreja/

Nenhum comentário:

Postar um comentário