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REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *
)
"ESCUTA ATIVA: CIÊNCIA E ARTE A SERVIÇO DA
COMPREENSÃO E NÃO APENAS DA RAZÃO E DA PERSUASÃO" [Parte II]
"Julgar
é evidentemente não com-preender,
pois compreendesseríamos
julgar"[Malraux]
Retomemos o fio interrompido
no último parágrafo da parte anterior. A questão proposta era: nossa
incapacidade de perdoar sempre, de modo infinito e incondicional, encontra-se
plenamente justificada pelo fato de sermos humanos e imperfeitos? Como já
afirmado anteriormente, a resposta é: sim, e não. Sim, na medida em que a
imperfeição humana carrega em si a marca da finitude e da limitação: não
conseguimos compreender a razão última dos fatos ou a motivação fundamental que
está por trás do comportamento humano, e por isso nem sempre conseguimos
perdoar tudo e todos incondicionalmente. Nossa inteligência, nossas emoções e
nossa própria memória são seletivas. A mágoa, a dor e a ferida causadas por
certos danos e certo tipo de ofensas podem ser tão profundas que resistem às
nossas melhores tentativas de superar o ódio justificado e o sentimento de
vingança e de retaliação por ele suscitado. Carregamos dentro de nós cicatrizes
que não se fecham nem fácil nem completamente. Por isso, não perdoar
determinadas faltas ou ofensas é tão humano como chorar, errar, enraivecer-se,
e até mesmo odiar. Porém observe: vínculos podem deteriorar e relacionamentos
podem azedar por razões que ficam fora de nossa consciência imediata, mas nunca
por motivos que estejam fora de nossa compreensão.
Por outro lado, finitude e
limitação não são álibis ou justificativas suficientes para nossa indisposição
em perdoar certos atos e ofensas que reputamos como graves ou gravíssimos. Isto
porque a condição humana não se reduz à sua finitude, à sua limitação e à sua
imperfeição. Somos também seres de transcendência, capazes de superar a nós
mesmos e de irmos além das nossas próprias dores e razões. Prova disso são os
inúmeros relatos históricos, literários e mesmo cotidianos de pessoas que foram
capazes de perdoar aquilo que parecia humanamente imperdoável. Pais que
abraçaram o assassino do próprio filho, esposas que conseguiram restituir
confiança a maridos que as traíram e vice-versa, povos inteiros que, ao invés
de cultivar ódio eterno, optaram pela reconciliação, estão entre os tantos
exemplos disponíveis. Se perdoar estivesse fora do nosso alcance em tais casos,
esses testemunhos não existiriam. No entanto, eles existem, e não são poucos.
São reveladores de que existe em cada um de nós uma força maior capaz de
superar nossa simples reação instintiva. Como bem ensinava Gandhi, “o fraco jamais
perdoa: o perdão é atributo dos fortes”. E para que consigamos perdoar aquilo
que parece humanamente impossível contamos com um recurso extremamente valioso:
nossa capacidade de escuta e compreensão. E é aqui que a chamada escuta ativa
retorna à cena novamente.
Por que precisamos da
compreensão para amar e praticar o perdão, sobretudo nos casos mais difíceis?
Porque se por ser infinito e incondicional em si mesmo, o amor de Deus pode dispensar a compreensão, para nós humanos
não é bem assim. Dificilmente conseguimos amar e perdoar aqueles que não
conhecemos suficientemente bem. Virtudes como a piedade, a caridade e a
compaixão podem dispensar facilmente a compreensão, mas o mesmo não ocorre com
a misericórdia, a virtude por excelência do perdão. Refletir e reconhecer que
poderíamos cometer as mesmas faltas ou ofensas nos torna mais dispostos a amar
e perdoar nossos ofensores. É o que chamamos de perdão por identificação. Os
atos ou ofensas para com os quais recusamos nosso perdão são justamente aqueles
que excedem essa possibilidade de identificação: o estupro de uma criança, um
sequestro seguido de assassinato, a tortura, e assim por diante. Quando a
possibilidade de identificação cessa, o perdão tende a sair imediatamente de
cena. Definitivamente? A resposta é: não! Ao menos não necessariamente, como
veremos a seguir.
Antes de prosseguirmos, uma
pergunta a título de provocação: do ponto de vista do exercício da consciência,
o martírio de Jesus foi um erro ou um crime? Não responda tão rapidamente. Se
respondeu rápido e sem refletir, isso não é bom sinal: significa que você não
costuma refletir antes de julgar, e provavelmente já terá deixado de perdoar
muitas vezes por falta de compreensão. Observe bem, e com atenção: se Jesus ora
ao Pai suplicando: “Pai, perdoai-lhes, pois eles ‘não sabem’ o que fazem”, a
falta que estavam cometendo era um erro, e não um crime. Ora, todo erro é
involuntário e, como tal, merecedor de correção e não de punição. Sequer
haveria, portanto, motivo para se perdoar. E se Jesus sabia disso, a pergunta
inevitável é: tais palavras teriam sido colocadas em sua boca pelo escritor
sagrado, ou teriam sido de fato proferidas por Ele? Se admitirmos essa segunda
hipótese, teremos que concordar também que certamente Jesus conhecia - e por isso,
compreendia - a razão maior e última que se alojava na mente e no coração de
seus detratores e torturadores. “O julgamento é da história - afirmava Dom
Armando Falcão, ex-Arcebispo de Brasília - o juízo último é de Deus".
Nesse caso, a súplica pelo perdão faria pleno sentido, tendo em vista que
somente Deus pode não apenas perdoar mas também absolver, como atestam as
palavras do sacerdote: “eu te absolvo dos teus pecados em nome do Pai, do Filho
e do Espírito Santo”. Humano que era, em tudo, também o próprio Filho do Homem
parece ter precisado da compreensão para perdoar os filhos dos homens.
Assim
como a escuta é a base da compreensão, a compreensão é o fundamento do perdão -
ou, se preferir, do amor que perdoa.
Sempre que estivermos conscientes das circunstâncias e das causas que pesam
sobre um determinado ato ou uma determinada personalidade, estaremos mais
propensos e dispostos a perdoar. O inverso, claro, também é verdadeiro.
"Saber que um pai que maltrata um filho foi também ele um filho maltratado,
faz com que sejamos menos severos no juízo que fazemos desse pai", explica
André Comte-Sponville. E, ainda que em idêntica situação pudéssemos agir de
maneira exatamente inversa - concluindo que tal pai é mau e nós não - teríamos
uma razão ainda maior para perdoá-lo. “Eles são maus, mas, precisamente por
esse motivo, devemos perdoá-los - escreveu o filósofo francês Vladimir
Jankélévich - pois são ainda mais infelizes do que maus. Ou melhor, é sua
própria maldade que é uma infelicidade; a infinita infelicidade de ser mau.”
Custa acreditar que para esse mesmo Jankélévich crimes como o Holocausto
deveriam ser considerados imperdoáveis e imprescritíveis.
Refletir
também nos leva a compreender um ponto crucial relacionado ao livre-arbítrio.
Como humanos, somos livres para “fazer” o que queremos, mas se o somos também
para “escolher” o que queremos, isso já não o sabemos. Raramente nossa análise
- e consequentemente nossa compreensão - ultrapassa o nível da liberdade do
querer, simplesmente ignorando o nível mais profundo, o da escolha que nos leva
a querer ou nos decidir por isto ou aquilo. Acontece que a vontade que ordena o
que devemos fazer é um ato consciente - ou ao menos deveria sê-lo. Todo Direito
pressupõe que o seja. Já o impulso, razão ou motivação que se encontra por trás
de cada escolha que fazemos, ou decisão que tomamos, é da ordem do
inconsciente. Exatamente por isso a Psicanálise atribui tanta importância ao
inconsciente. Resumindo: somos senhores de nossa vontade [Sartre], mas servos -
ora fiéis, ora nem tanto - de nosso inconsciente [Freud]. É nele, no
inconsciente, que se alojam nossas paixões e nossos desejos mais profundos.
Sobre
o livre-arbítrio vale a pena ressaltar ainda a seguinte afirmação de Spinoza:
“os homens se detestam tanto mais quando se crêem livres, e tanto menos quando
se reconhecem condicionados ou determinados”. Tal afirmação permite entender
melhor sua célebre recomendação: “das ações humanas não se deve zombar,
lamentar, nem julgar, e sim compreender”. Julgamos quase sempre sob o impulso
das emoções e das paixões, e, raramente, sob o impulso da razão, e por isso
condenamos com facilidade. “Julgar é evidentemente não compreender - escreveu
André Malraux, também francês - pois se compreendêssemos já não poderíamos
julgar.” Tem razão Malraux ao fazer tal afirmação? Com certeza, sim, mas não
totalmente. Paul Ricoeur, também francês, analisando a expressão bíblica “não
julgueis e não sereis julgados”, afirmava que o ser humano precisa, sim, julgar
tanto o ato como suas consequências, mas não a razão ou a intenção última. In
interiorem hominis, Ecclesia non intrat - “No interior da pessoa a Igreja não
pode entrar”: esse é um princípio clássico que aprendemos desde cedo.
Para concluir esta segunda
parte, não nos esqueçamos: se a compreensão é a principal porta para o amor, e
o amor para o perdão, a raiva, o ressentimento e o desejo de vingança - em uma
única palavra, o ódio - constituem o maior obstáculo ao exercício da
compreensão. Conclui-se, daí, que o perdão, na maioria dos casos, não é o
primeiro ato a ser colocado em marcha. Dai, a máxima da misericórdia proposta
por Sponville: “se não podes [ainda] amar, cessa ao menos de odiar”. E se cessar
de odiar possa parecer uma tarefa tão difícil - ou até mais - quanto o próprio
perdão, Lou Marinof sugere um caminho que permite substituir gradualmente ódio
por amor. Aí está: “primeiro passo: dê a alguém um dom de amor hoje. Pode ser
tão pouco quanto um bom pensamento, um gesto de consideração, uma gentileza não
solicitada. Segundo passo: permita que alguém lhe dê um dom de amor hoje. Mais
uma vez, a sua magnitude não é importante. Terceiro passo: se há alguma coisa
[ou alguém] que você odeia, tome providências imediatas para transformar seu
ódio em desagrado, o desagrado em pequeno incômodo, e o pequeno incômodo em
indiferença. Quarto e último passo: agora que você liberou energia que
costumava estar presa ao ódio, que era um mau investimento, retorne ao primeiro
passo e reinvista essa energia em amor e perdão.” Simples assim? Simples assim!
Ainda assim, extremamente difícil.
A gente se reencontra na terceira e última
parte, onde abordaremos as características fundamentais da escuta ativa
propriamente dita. Combinado? Até lá, então.
(* ) Por Whatsapp o presente texto foi
enviado pelo ator, de Vitória(ES)
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