sábado, 13 de setembro de 2025

XlV- REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( * ) "ESCUTA ATIVA: CIÊNCIA E ARTE A SERVIÇO DA COMPREENSÃO E NÃO APENAS DA RAZÃO E DA PERSUASÃO" [Parte II]

 

 

XlV-      REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( * )

 

"ESCUTA ATIVA: CIÊNCIA E ARTE A SERVIÇO DA COMPREENSÃO E NÃO APENAS DA RAZÃO E DA PERSUASÃO" [Parte II]

"Julgar é evidentemente não  com-preender, pois    compreendesseríamos julgar"[Malraux]

Retomemos o fio interrompido no último parágrafo da parte anterior. A questão proposta era: nossa incapacidade de perdoar sempre, de modo infinito e incondicional, encontra-se plenamente justificada pelo fato de sermos humanos e imperfeitos? Como já afirmado anteriormente, a resposta é: sim, e não. Sim, na medida em que a imperfeição humana carrega em si a marca da finitude e da limitação: não conseguimos compreender a razão última dos fatos ou a motivação fundamental que está por trás do comportamento humano, e por isso nem sempre conseguimos perdoar tudo e todos incondicionalmente. Nossa inteligência, nossas emoções e nossa própria memória são seletivas. A mágoa, a dor e a ferida causadas por certos danos e certo tipo de ofensas podem ser tão profundas que resistem às nossas melhores tentativas de superar o ódio justificado e o sentimento de vingança e de retaliação por ele suscitado. Carregamos dentro de nós cicatrizes que não se fecham nem fácil nem completamente. Por isso, não perdoar determinadas faltas ou ofensas é tão humano como chorar, errar, enraivecer-se, e até mesmo odiar. Porém observe: vínculos podem deteriorar e relacionamentos podem azedar por razões que ficam fora de nossa consciência imediata, mas nunca por motivos que estejam fora de nossa compreensão.

Por outro lado, finitude e limitação não são álibis ou justificativas suficientes para nossa indisposição em perdoar certos atos e ofensas que reputamos como graves ou gravíssimos. Isto porque a condição humana não se reduz à sua finitude, à sua limitação e à sua imperfeição. Somos também seres de transcendência, capazes de superar a nós mesmos e de irmos além das nossas próprias dores e razões. Prova disso são os inúmeros relatos históricos, literários e mesmo cotidianos de pessoas que foram capazes de perdoar aquilo que parecia humanamente imperdoável. Pais que abraçaram o assassino do próprio filho, esposas que conseguiram restituir confiança a maridos que as traíram e vice-versa, povos inteiros que, ao invés de cultivar ódio eterno, optaram pela reconciliação, estão entre os tantos exemplos disponíveis. Se perdoar estivesse fora do nosso alcance em tais casos, esses testemunhos não existiriam. No entanto, eles existem, e não são poucos. São reveladores de que existe em cada um de nós uma força maior capaz de superar nossa simples reação instintiva. Como bem ensinava Gandhi, “o fraco jamais perdoa: o perdão é atributo dos fortes”. E para que consigamos perdoar aquilo que parece humanamente impossível contamos com um recurso extremamente valioso: nossa capacidade de escuta e compreensão. E é aqui que a chamada escuta ativa retorna à cena novamente.

Por que precisamos da compreensão para amar e praticar o perdão, sobretudo nos casos mais difíceis? Porque se por ser infinito e incondicional em si mesmo, o amor de Deus  pode dispensar a compreensão, para nós humanos não é bem assim. Dificilmente conseguimos amar e perdoar aqueles que não conhecemos suficientemente bem. Virtudes como a piedade, a caridade e a compaixão podem dispensar facilmente a compreensão, mas o mesmo não ocorre com a misericórdia, a virtude por excelência do perdão. Refletir e reconhecer que poderíamos cometer as mesmas faltas ou ofensas nos torna mais dispostos a amar e perdoar nossos ofensores. É o que chamamos de perdão por identificação. Os atos ou ofensas para com os quais recusamos nosso perdão são justamente aqueles que excedem essa possibilidade de identificação: o estupro de uma criança, um sequestro seguido de assassinato, a tortura, e assim por diante. Quando a possibilidade de identificação cessa, o perdão tende a sair imediatamente de cena. Definitivamente? A resposta é: não! Ao menos não necessariamente, como veremos a seguir.

Antes de prosseguirmos, uma pergunta a título de provocação: do ponto de vista do exercício da consciência, o martírio de Jesus foi um erro ou um crime? Não responda tão rapidamente. Se respondeu rápido e sem refletir, isso não é bom sinal: significa que você não costuma refletir antes de julgar, e provavelmente já terá deixado de perdoar muitas vezes por falta de compreensão. Observe bem, e com atenção: se Jesus ora ao Pai suplicando: “Pai, perdoai-lhes, pois eles ‘não sabem’ o que fazem”, a falta que estavam cometendo era um erro, e não um crime. Ora, todo erro é involuntário e, como tal, merecedor de correção e não de punição. Sequer haveria, portanto, motivo para se perdoar. E se Jesus sabia disso, a pergunta inevitável é: tais palavras teriam sido colocadas em sua boca pelo escritor sagrado, ou teriam sido de fato proferidas por Ele? Se admitirmos essa segunda hipótese, teremos que concordar também que certamente Jesus conhecia - e por isso, compreendia - a razão maior e última que se alojava na mente e no coração de seus detratores e torturadores. “O julgamento é da história - afirmava Dom Armando Falcão, ex-Arcebispo de Brasília - o juízo último é de Deus". Nesse caso, a súplica pelo perdão faria pleno sentido, tendo em vista que somente Deus pode não apenas perdoar mas também absolver, como atestam as palavras do sacerdote: “eu te absolvo dos teus pecados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Humano que era, em tudo, também o próprio Filho do Homem parece ter precisado da compreensão para perdoar os filhos dos homens.

Assim como a escuta é a base da compreensão, a compreensão é o fundamento do perdão - ou, se  preferir, do amor que perdoa. Sempre que estivermos conscientes das circunstâncias e das causas que pesam sobre um determinado ato ou uma determinada personalidade, estaremos mais propensos e dispostos a perdoar. O inverso, claro, também é verdadeiro. "Saber que um pai que maltrata um filho foi também ele um filho maltratado, faz com que sejamos menos severos no juízo que fazemos desse pai", explica André Comte-Sponville. E, ainda que em idêntica situação pudéssemos agir de maneira exatamente inversa - concluindo que tal pai é mau e nós não - teríamos uma razão ainda maior para perdoá-lo. “Eles são maus, mas, precisamente por esse motivo, devemos perdoá-los - escreveu o filósofo francês Vladimir Jankélévich - pois são ainda mais infelizes do que maus. Ou melhor, é sua própria maldade que é uma infelicidade; a infinita infelicidade de ser mau.” Custa acreditar que para esse mesmo Jankélévich crimes como o Holocausto deveriam ser considerados imperdoáveis e imprescritíveis.

Refletir também nos leva a compreender um ponto crucial relacionado ao livre-arbítrio. Como humanos, somos livres para “fazer” o que queremos, mas se o somos também para “escolher” o que queremos, isso já não o sabemos. Raramente nossa análise - e consequentemente nossa compreensão - ultrapassa o nível da liberdade do querer, simplesmente ignorando o nível mais profundo, o da escolha que nos leva a querer ou nos decidir por isto ou aquilo. Acontece que a vontade que ordena o que devemos fazer é um ato consciente - ou ao menos deveria sê-lo. Todo Direito pressupõe que o seja. Já o impulso, razão ou motivação que se encontra por trás de cada escolha que fazemos, ou decisão que tomamos, é da ordem do inconsciente. Exatamente por isso a Psicanálise atribui tanta importância ao inconsciente. Resumindo: somos senhores de nossa vontade [Sartre], mas servos - ora fiéis, ora nem tanto - de nosso inconsciente [Freud]. É nele, no inconsciente, que se alojam nossas paixões e nossos desejos mais profundos.

Sobre o livre-arbítrio vale a pena ressaltar ainda a seguinte afirmação de Spinoza: “os homens se detestam tanto mais quando se crêem livres, e tanto menos quando se reconhecem condicionados ou determinados”. Tal afirmação permite entender melhor sua célebre recomendação: “das ações humanas não se deve zombar, lamentar, nem julgar, e sim compreender”. Julgamos quase sempre sob o impulso das emoções e das paixões, e, raramente, sob o impulso da razão, e por isso condenamos com facilidade. “Julgar é evidentemente não compreender - escreveu André Malraux, também francês - pois se compreendêssemos já não poderíamos julgar.” Tem razão Malraux ao fazer tal afirmação? Com certeza, sim, mas não totalmente. Paul Ricoeur, também francês, analisando a expressão bíblica “não julgueis e não sereis julgados”, afirmava que o ser humano precisa, sim, julgar tanto o ato como suas consequências, mas não a razão ou a intenção última. In interiorem hominis, Ecclesia non intrat - “No interior da pessoa a Igreja não pode entrar”: esse é um princípio clássico que aprendemos desde cedo.

Para concluir esta segunda parte, não nos esqueçamos: se a compreensão é a principal porta para o amor, e o amor para o perdão, a raiva, o ressentimento e o desejo de vingança - em uma única palavra, o ódio - constituem o maior obstáculo ao exercício da compreensão. Conclui-se, daí, que o perdão, na maioria dos casos, não é o primeiro ato a ser colocado em marcha. Dai, a máxima da misericórdia proposta por Sponville: “se não podes [ainda] amar, cessa ao menos de odiar”. E se cessar de odiar possa parecer uma tarefa tão difícil - ou até mais - quanto o próprio perdão, Lou Marinof sugere um caminho que permite substituir gradualmente ódio por amor. Aí está: “primeiro passo: dê a alguém um dom de amor hoje. Pode ser tão pouco quanto um bom pensamento, um gesto de consideração, uma gentileza não solicitada. Segundo passo: permita que alguém lhe dê um dom de amor hoje. Mais uma vez, a sua magnitude não é importante. Terceiro passo: se há alguma coisa [ou alguém] que você odeia, tome providências imediatas para transformar seu ódio em desagrado, o desagrado em pequeno incômodo, e o pequeno incômodo em indiferença. Quarto e último passo: agora que você liberou energia que costumava estar presa ao ódio, que era um mau investimento, retorne ao primeiro passo e reinvista essa energia em amor e perdão.” Simples assim? Simples assim! Ainda assim, extremamente difícil.

 

A gente se reencontra na terceira e última parte, onde abordaremos as características fundamentais da escuta ativa propriamente dita. Combinado? Até lá, então.

 

(* ) Por Whatsapp o presente texto foi enviado pelo ator, de Vitória(ES)

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