O Cristo total: chave privilegiada de oração com os Salmos
Por Frei Heres Drian de O. Freitas, osa
A leitura
de certas passagens do Antigo Testamento foi, não poucas vezes, ocasião de
dificuldade para a Igreja primitiva, como pode ser ainda hoje para alguns de
nós, especialmente no que diz respeito a textos que contrastam com a concepção
cristã de Deus. Basta pensar, por exemplo, nos salmos que invocam maldições,
quando no Novo Testamento se tem insistente recomendação de amor, misericórdia,
perdão, compaixão…
Uma chave
privilegiada para a superação de certos problemas de interpretação dos Salmos é
o conceito agostiniano de Cristo
total, mas sua compreensão pressupõe a união, sem mistura, das duas
naturezas (divina e humana) de Cristo na unidade de sua pessoa. [1]
Em Jesus
Cristo, o Verbo une-se à natureza humana sem perder sua divindade. Por isso,
pode-se falar de distinção entre as duas naturezas. É como homem que o Senhor é
crucificado, e é por ser Deus que ele glorifica o homem. [2] Assim, a cristologia de santo Agostinho se relaciona
estreitamente à eclesiologia, pois Jesus Cristo, em sua humanidade, é cabeça da
Igreja, mediante a qual — como seu corpo — ele continua presente no mundo
na forma de servo característica
da humanidade revestida pelo Verbo.
Então
Jesus Cristo, a Cabeça, está no
tempo; mas também está — porque ressuscitado — fora do tempo; está conosco/em
nós, mas também acima e além de nós. Esse é o Cristo total. A compreensão, porém, da unidade entre a
Cabeça e seus membros implica não ignorar a existência de uma diferença entre
ambos.
Uma vez
que, em toda a Escritura, é o Verbo que fala, os membros do Corpo podem rezar
com os Salmos, quaisquer que sejam, pois as vozes que se ouvem nos Salmos são do Cristo. Mas
é preciso identificá-las. Trata-se de três vozes que permitem descobrir o significado de um
salmo: 1) a voz de Cristo que fala diretamente; b) a voz de Cristo que fala
pelos membros; [3] c) a voz da Igreja que reza determinado salmo.
São
resolvidas, portanto, duas dificuldades de oração com os Salmos. A primeira
delas está em rezar com um salmo que não “concorda” com a dignidade de Cristo,
e é sempre ele que fala nas Escrituras. Exemplo: quando o salmo fala de pecado
pessoal, de sentimentos frágeis etc., como podemos aceitar tais expressões como
voz de Cristo que fala nos Salmos?
A
concepção do Cristo total oferece
a solução: não é Cristo que fala diretamente; é ele que fala por nós, é Cristo que fala em seus
membros. [4] Como homem, Cristo aceita voluntariamente nossas
debilidades e pode rezar por
nós, seus membros, que continuamos a peregrinar neste mundo com
nossas debilidades.
Ao
comentar o título do Sl 30 (Psalmus
David ecstasis), santo Agostinho diz que ecstasis pode significar
medo. Mas Cristo, que não tinha pecado, não pode ter tido medo da morte. Ele,
então, assume o medo
da morte voluntariamente e exprime-o aí em sua oração por nós diante de Deus, [5] personificando-nos em si. [6]
A Igreja
pode rezar esse salmo porque ela entra na oração do Cristo [7] mediante um processo de “transformação” em Cristo;
porque, ao rezar as palavras de Jesus por
nós, aprendemos a humildade, confiando-nos a ele ao expressar
nossas debilidades. Nós entramos na salvação dada por Cristo a nós, pois ele
não desdenhou assumir a natureza humana nem assumir-nos em si e
transfigurar-nos em si. [8]
A segunda
dificuldade de rezar com um salmo surge quando ele não “concorda” conosco: como
rezar um salmo em que as palavras são aplicáveis somente ao Cristo?
No Sl 85, por exemplo, lemos:
“Guarda minha alma, porque sou santo”. As palavras “sou santo” podem pertencer
somente a Cristo, já que somos pecadores. Os membros, em si e com base em si
mesmos, não podem dizer tais palavras sem incorrer em orgulho. Como Cristo total, porém, a Igreja pode
usar tais palavras como suas.
De fato,
mesmo que essas palavras do salmo, nas quais se ouve, certamente, a voz do
Cristo, fossem ditas por apenas um fiel ainda neste mundo, tal fiel as
pronuncia com sua Cabeça e sob sua Cabeça, isto é, com Cristo e sob Cristo, e
as pode dizer por ter recebido dele a graça da santidade, a santidade do
batismo. [9]
Somos
salvos em Cristo e, por ele, somos resgatados do pecado. A voz da Igreja pode, então,
assumir a voz de Cristo porque
ele escolheu inserir-nos em si mesmo. Ao rezar com os Salmos, é preciso lembrar
que não se reza unicamente como indivíduos, mas como Igreja, como corpo, e não
um corpo qualquer, mas, sim, corpo de Cristo.
[1] Cf., por exemplo, Epistula 137,3,9.
[2] Cf. M. Reveillaud. “Le
Christ-Homme, Tête de L’Église”. Recherches
Augustiniennes, Paris, nº 5, 1968, p. 69.
[3] M. Fiedrovicz. “General introduction”, in: Exposition on the Psalms 1-32. New
York, 1999, p. 53.
[4] Comentário
aos Salmos, 30,4.
[5] C. Straw. “Timor Mortis”,
in: A. Fitzgerald. Augustine
through the ages: an encyclopedia. Grand Rapids: Eerdmans, 1999, p.
841. Cf. também R. Dodaro. “Christus Iustus” and fear of death in the dispute
with Peagius. Signum
Pietatis, Wurzburg,
1989, pp. 341-359.
[6] Comentário
aos Salmos, 30,3.
[7] Cf. B. Daley. “Is
patristic exegesis still usable? Reflections on early Christian interpretation
of the Psalms”. Communio, nº 29, 2002, pp. 209-211.
[8] Cf. Comentário aos Salmos, 30,3.
[9] Cf. Comentário aos Salmos, 85,2.
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