sábado, 11 de dezembro de 2021

INSPIRAÇÃO CATECUMENAL E CONVERSÃO PASTORAL (I)


Por João Fernandes Reinert, ofm

 

  1. A inspiração catecumenal

A incompatibilidade entre o atual mal-estar religioso e as expressões de pastoral de manutenção é cada vez mais gritanteEm tempos idos, a pastoral de manutenção tinha sua justificativa, uma vez que aquele contexto de fé “tranquila” não exigia maiores conversões à pastoral de então. O mesmo se pode dizer da instituição paroquial tradicional, cuja configuração garantia a manutenção da fé cristã, não sendo necessário à época, portanto, maiores mudanças estruturais e pastorais. A problemática surge quando, por um lado, muda a realidade cultural e religiosa e, por outro, os pressupostos pastorais e as estruturas eclesiais permanecem inalterados. Trata-se de um contexto em que a religião deixa de ser um dado cultural, em que cristãos já não nascem como tais, e, não obstante, vigora a pastoral de imanutençãoaté com o retorno de práticas eclesiológicas restauracionistas, no intuito de recuperar o monopólio institucional perdido com a chegada da sociedade secularizada.


O documento da Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho, realizada em Aparecida, convoca categoricamente todos para a passagem da pastoral de manutenção à pastoral decididamente missionária e para o abandono das estruturas obsoletas, ultrapassadas, que não favorecem a transmissão da fé. A quais estruturas caducas se refere o Documento de Aparecida? Quais saídas a pastoral é convocada a realizar? Quais expressões de pastoral de manutenção se devem abandonar? Como se configura a pastoralidade verdadeiramente missionária? Essas e outras questões nem sempre são de fácil resposta; exigem discernimento, criatividade, coragem, escuta atenta aos sopros do Espírito e aos apelos da realidade. Se conversão significa mudança de rota e de mentalidade, novos rumos, renovada maneira de pensar, de ser e de agir, então o primeiro passo nesse processo de conversão pastoral é se perguntar “onde” se está e “como” se está. Converter-se a algo exige a consciência de “onde” e “como” se está. Sem a consciência do “onde” e do “como”, não se é possível ir a lugar algum.


Na sequência do percurso da conversão pastoral, o passo seguinte e igualmente decisivo refere-se à pergunta: conversão pastoral para quê, para qual direção, para onde? Sem a clareza da nova direção a ser tomada, a conversão torna-se mero passeio sem rumo, e não verdadeira mudança de rota. Outra questão fundamental para a conversão evangelizadora é a pergunta: com base em quê? Trata-se da pergunta sobre os referenciais para a concretização da mudança de rumo pastoral. Que paradigma de pastoral decididamente missionária em andamento poderá servir de inspiração para a tão urgente conversão eclesial? Chegamos, assim, à motivação maior deste artigo. Resgatar o catecumenato é peça essencial no conjunto de conversões pastorais de uma “Igreja em saída”. A inspiração catecumenal é redescoberta como elemento fundamental nesse processo de conversão eclesial. Sem a inspiração catecumenal, o processo de conversão pastoral se torna por demais vagaroso, senão impossibilitado.


Uma metodologia pastoral se converte em paradigma de evangelização quando extrapola seu campo de atuação e se mostra capaz de inspirar outras ações eclesiais. O catecumenato tem algo para oferecer a toda ação pastoral, converte-se em inspiração à totalidade da ação evangelizadora. Ou melhor, em tempos de crise de fé, já não é permitido separar, com tamanha facilidade, a pastoral da iniciação das demais pastorais. O conjunto das atividades eclesiais é convocado para a transmissão da fé, para a reiniciação à vida cristã. A isso chamamos dimensão transversal do catecumenato na pastoralidade eclesial, paradigma catecumenal para a pastoralidade.


  1. Inspiração catecumenal, percurso de fé e clareza do que é iniciação à vida cristã

Desde as suas origens, o catecumenato se entende como uma caminhada de fé, um itinerário de introdução e aprofundamento no mistério de Jesus Cristo e da comunidade eclesial. A estrutura catecumenal está organizada com base nessa autocompreensão, ou seja: se o catecumenato se entende como caminho de introdução no mistério de Cristo e da Igreja, então seus elementos pastorais revelam essa disposição; tem-se clareza de onde se parte e aonde se pretende chegar.


A consciência do objetivo do percurso da iniciação é constitutiva da identidade catecumenal. Não se trata de corrida inconsequente em busca dos sacramentos, mas de itinerário percorrido conscientemente, em vista do tornar-se adulto na fé e no discipulado missionário de Jesus Cristo; os tempos e as etapas, com seus objetivos específicos, os ritos de passagem, a gradualidade do processo, enfim, cada dimensão da metodologia catecumenal confirma a afirmação de que o catecumenato é um percurso consciente e gradual de maturação da vida cristã. A noção de percurso remete à de progressividade, processo, duração, passos sucessivos.


Nas últimas décadas, não poucos esforços têm sido empregados no intuito de fazer da pedagogia catecumenal o modo ordinário de iniciar na fé, superando, de uma vez por todas, a mentalidade segundo a qual a catequese consiste em curso de preparação aos sacramentos. Contudo, bem sabemos que a estrutura e a mentalidade de curso não são superadas de uma hora para outra. A conversão da mentalidade de curso para a lógica do percurso é lenta, o que torna a consolidação do catecumenato morosa. Na compreensão de catequese como preparação aos sacramentos, sobressai a pedagogia do curso, do saber sobre, diferentemente do paradigma do percurso, em que o próprio termo sugere progressividade, amadurecimento, iniciação. Enquanto o primeiro termo indica preparação, sobretudo intelectual, assimilação de conteúdos, o segundo termo indica iniciação, progressividade, continuidade.


O catecumenato é um percurso celebrativo. A evolução na fé, a maturidade cristã conquistada progressivamente, é celebrada liturgicamente. Os ritos catecumenais marcam a passagem de um trecho da caminhada ao outro. Cada tempo percorrido, após terem sido alcançados seus objetivos, é marcado por celebrações específicas, chamadas celebrações de passagem. As celebrações não são apêndices da caminhada; ao contrário, são marcas, pausas, reabastecimentos que marcam a passagem de um tempo já percorrido e o início de outro a ser iniciado. As celebrações e ritos de passagem são alimento que fortalece a continuidade da caminhada, são liturgias que festejam o amadurecimento na fé já alcançado, são “pausas” para tomar maior consciência dos passos dados e dos novos passos a serem percorridos.


As passagens de um tempo ao outro não são, portanto, automáticas. Supõem e exigem discernimento, consciência, amadurecimento, liberdade, expressos nas celebrações. Torna-se evidente que não se trata de um caminhar meramente racional, escolástico. Não se trata de caminhada meramente com os pés da razão, isto é, com o conhecimento racional do mistério, e sim com os pés do coração, da celebração da fé, da experiência.


Uma das mais relevantes contribuições da renovação catequética dos últimos anos, com destaque para a catequese de inspiração catecumenal, está na conversão da compreensão de iniciação à vida cristã, decorrente da clareza teológico-pastoral daquilo em que ou daquele em quem se é iniciado. Não é por coincidência que se emprega ultimamente a palavra “vida” na iniciação cristã; ou seja, iniciação à vida cristã é a expressão que melhor traduz o processo do mergulho sacramental e existencial no mistério de Jesus Cristo.


A riqueza da metodologia catecumenal é fruto da consciência sobre o que é iniciação e qual o caminho para atingir seu objetivo. Quando se carece de tal nitidez, as inovações não passam de recursos paliativos, por não tocarem a raiz da questão. Somente quando se sabe ao certo em que ou em quem se é iniciado é que se pode apresentar como se inicia, isto é, o caminho a ser percorrido para alcançar os objetivos perseguidos. No catecumenato, o como é consequência da lucidez sobre o quê.


O déficit de maturidade cristã no cristianismo se deve, em grande parte, a modelos pastorais que negligenciam a dimensão existencial na evangelização. Antes de chegar aos sacramentos, é preciso assimilar existencialmente os grandes mistérios da fé cristã. Com isso não se está afirmando que a catequese tradicional não almeja a iniciação cristã, o que seria uma acusação injusta; o problema está em sua compreensão de iniciação cristã e no como ela se realiza.

 

  1. Conversão pastoral e a não pressuposição da fé

3.1. A missionariedade catecumenal

 

No percurso catecumenal, existe um tempo para redespertar o interesse por caminhar, para pôr-se a caminho, para conhecer os primeiros passos da estrada do cristianismo. Trata-se do tempo do pré-catecumenato, período fundamentalmente importante que, embora de modo algum deva ser omitido (cf. RICA 9), na pastoralidade e, sobretudo, na pastoral catequética é geralmente dado por já percorrido, o que traz profundas consequências negativas à maturação da fé.


O pré-catecumenato é o tempo para trabalhar a orientação inicial a Cristo e à Igreja. “É o tempo da evangelização em que, com firmeza e confiança, se anuncia o Deus vivo e Jesus Cristo” (RICA 9). Trata-se fundamentalmente do tempo voltado à primeira evangelização, para fazer ressoar a voz do mistério, do querigma. Na catequese tradicional, o primeiro anúncio de Jesus Cristo, o querigma, era considerado um pressuposto, por ser algo já garantido. Sendo a fé um dado natural e cultural, tornava-se, portanto, prescindível a tarefa de apresentar Jesus Cristo. Naquele contexto, a preocupação primeira, a grande missão da catequese, era catequizar, doutrinar. Foram séculos sem grandes preocupações missionárias, séculos de pressuposição da fé.


A inspiração catecumenal recupera, em seu itinerário, esse trecho do percurso da iniciação à vida cristã, tão caro ao cristianismo primitivo e perdido posteriormente, ou então dado por já percorrido, via cristianismo sociológico. Quiçá esteja aqui a expressão maior da missionariedade da inspiração catecumenal: não dar por pressupostos a fé, a proclamação do querigma, o ingresso na comunidade. Em outras palavras, o período chamado pré-catecumenato é o sinal mais eloquente da missionariedade catecumenal, que sabe a necessidade de começar com o anúncio explícito de Jesus Cristo.


Graças à não pressuposição da fé, o estilo catecumenal se caracteriza como percurso, está protegido do sacramentalismo e se torna inspiração para a pastoralidade. Residem aqui, portanto, oportunidades enormes de inspiração à conversão pastoral. A mais significativa intuição do tempo do pré-catecumenato para a nova evangelização é a não pressuposição da fé em nenhuma atividade eclesial.


Alguns exemplos podem nos ajudar. Quanto aos noivos que pedem o sacramento do matrimônio, não se pode imaginar que façam tal pedido motivados primeiramente pela fé ou já estejam nela iniciados. Resulta disso a necessidade de nova estruturação dos assim chamados “cursos de noivos”, em perspectiva querigmática, que saiba mistagogicamente propor a fé, conduzir a experiência cristológica e eclesial. A preparação dos noivos é chamada a deixar de ser curso para assumir a fisionomia de percurso, de anúncio e experiência de fé, com menos preocupações canônicas e morais e mais investimento missionário. A problemática se agrava quando “se obriga” o adulto a ser batizado para poder casar-se na Igreja… “Na realidade, [essa prática] supõe uma falsa compreensão do batismo como um rito qualquer, sem compromisso de mudança de vida” (TABORDA, 2017, p. 9).


O mesmo se pode dizer dos “cursos de batismo”, que preparam os pais e os padrinhos para o batismo de seus filhos e afilhados. Qual a densidade querigmática e mistagógica desses encontros, ou seja, são “lugares teológicos” de anúncio e aprofundamento da fé, de experiência eclesial, ou prevalece o estilo palestra, em que se supõe que pais e padrinhos estejam iniciados na vida cristã?


O pré-catecumenato questiona, portanto, as ações eclesiais que, em seus métodos, por pressuporem a iniciação, se orientam segundo um substrato muitas vezes inexistente. Não são poucas as atividades eclesiais que carecem de fundamentação querigmática, por estarem pautadas mais na doutrinação da fé do que na fé mesma, mais nos costumes religiosos do que no querigma, sem falar na obsessão por questões morais e doutrinais.


A pergunta a ser feita com seriedade na atual reflexão é sobre as consequências da pressuposição da voz já ressoada na vida dos cristãos, compreensão esta muito presente na pastoral de manutenção. Quais são as lacunas deixadas pela presunção da experiência de encontro com a Pessoa de Jesus Cristo, quando, na realidade, não poucos possuem tão somente uma noção de Deus? Não seria essa presunção uma das causas da atual crise de fé? É muito estreita a relação entre batizados não evangelizados e a pastoral de manutenção que prescinde do anúncio querigmático por pressupô-lo ou, quando pior, por falta de clareza do que seja o querigma.


Referências bibliográficas

 

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB). Iniciação à vida cristã: itinerário para formar discípulos missionários. Brasília, DF: CNBB, 2017. (Documentos da CNBB, 107).

______. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil 2015-2019. Brasília, DF: CNBB, 2015. (Documentos da CNBB, 102).

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Brasília: CNBB; São Paulo: Paulus/Paulinas, 2007.

FRANCISCO. Exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia sobre o amor na família. Brasília, DF: CNBB, 2016.

______. Exortação apostólica Evangelii Gaudium sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus/Loyola, 2013.

GEVAERT, J. Primera evangelización. CCS: Madrid, 1992.

PAULO VI. Exortação apostólica Evangelii Nuntiandi sobre a evangelização no mundo contemporâneo.Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1975.

REINERT, J. F. Paróquia e iniciação à vida cristã: a interdependência entre renovação paroquial e mistagogia catecumenal. São Paulo: Paulus, 2015.

SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Ritual da iniciação cristã de adultos. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1972.

TABORDA, F. Apresentação.In: PARO, Thiago Faccini. As celebrações do RICA: conhecer para bem celebrar. Petrópolis: Vozes, 2017.

 

João Fernandes Reinert, ofm

Frei João Fernandes Reinert, ofm, mestre e doutor em Teologia pela PUC-Rio. Professor do Instituto Teológico Franciscano (Petrópolis). Pároco da Paróquia Santa Clara de Assis, em Duque de Caxias-RJ. Autor de Pode hoje a paróquia ser uma comunidade eclesial? (Vozes),Paróquia e iniciação cristã e Inspiração catecumenal e conversão pastoral (Paulus). E-mail: frreinert@yahoo.com.br

https://www.vidapastoral.com.br/edicao/inspiracao-catecumenal-e-conversao-pastoral/

 

(Continua no próximo Domingo...).

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