Por João Fernandes Reinert, ofm
- A inspiração catecumenal
A
incompatibilidade entre o atual mal-estar religioso e as expressões de pastoral de manutenção é cada
vez mais gritante. Em tempos
idos, a pastoral de manutenção tinha sua justificativa, uma vez que aquele
contexto de fé “tranquila” não exigia maiores conversões à pastoral de então. O
mesmo se pode dizer da instituição paroquial tradicional, cuja configuração
garantia a manutenção da fé cristã, não sendo necessário à época, portanto,
maiores mudanças estruturais e pastorais. A problemática surge quando, por um
lado, muda a realidade cultural e religiosa e, por outro, os pressupostos
pastorais e as estruturas eclesiais permanecem inalterados. Trata-se de um
contexto em que a religião deixa de ser um dado cultural, em que cristãos já não nascem como tais, e, não obstante, vigora
a pastoral de imanutenção, até
com o retorno de práticas eclesiológicas restauracionistas, no intuito de
recuperar o monopólio institucional perdido com a chegada da sociedade
secularizada.
O
documento da Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho,
realizada em Aparecida, convoca categoricamente todos para a passagem da
pastoral de manutenção à pastoral
decididamente missionária e para o abandono das estruturas
obsoletas, ultrapassadas, que não favorecem a transmissão da fé. A quais estruturas
caducas se refere o Documento
de Aparecida? Quais saídas a pastoral é convocada a realizar? Quais
expressões de pastoral de manutenção se devem abandonar? Como se configura a
pastoralidade verdadeiramente missionária? Essas e outras questões nem sempre
são de fácil resposta; exigem discernimento, criatividade, coragem, escuta
atenta aos sopros do Espírito e aos apelos da realidade. Se conversão significa
mudança de rota e de mentalidade, novos rumos, renovada maneira de pensar, de
ser e de agir, então o primeiro passo nesse processo de conversão pastoral é se
perguntar “onde” se está e “como” se está. Converter-se a algo exige a
consciência de “onde” e “como” se está. Sem a consciência do “onde” e do
“como”, não se é possível ir a lugar algum.
Na sequência
do percurso da conversão pastoral, o passo seguinte e igualmente decisivo
refere-se à pergunta: conversão pastoral para quê, para qual direção, para
onde? Sem a clareza da nova direção a ser tomada, a conversão torna-se mero
passeio sem rumo, e não verdadeira mudança de rota. Outra questão fundamental
para a conversão evangelizadora é a pergunta: com base em quê? Trata-se da pergunta sobre os
referenciais para a concretização da mudança de rumo pastoral. Que paradigma de
pastoral decididamente missionária em andamento poderá servir de inspiração
para a tão urgente conversão eclesial? Chegamos, assim, à motivação maior deste
artigo. Resgatar o catecumenato é peça essencial no conjunto de conversões
pastorais de uma “Igreja em saída”. A inspiração catecumenal é redescoberta
como elemento fundamental nesse processo de conversão eclesial. Sem a
inspiração catecumenal, o processo de conversão pastoral se torna por demais
vagaroso, senão impossibilitado.
Uma
metodologia pastoral se converte em paradigma de evangelização quando extrapola
seu campo de atuação e se mostra capaz de inspirar outras ações eclesiais. O
catecumenato tem algo para oferecer a toda ação pastoral, converte-se em
inspiração à totalidade da ação evangelizadora. Ou melhor, em tempos de crise
de fé, já não é permitido separar, com tamanha facilidade, a pastoral da
iniciação das demais pastorais. O conjunto das atividades eclesiais é convocado
para a transmissão da fé, para a reiniciação à vida cristã. A isso chamamos
dimensão transversal do catecumenato na pastoralidade eclesial, paradigma
catecumenal para a pastoralidade.
- Inspiração catecumenal, percurso de fé e clareza do que é iniciação à vida cristã
Desde as
suas origens, o catecumenato se entende como uma caminhada de fé, um itinerário
de introdução e aprofundamento no mistério de Jesus Cristo e da comunidade
eclesial. A estrutura catecumenal está organizada com base nessa
autocompreensão, ou seja: se o catecumenato se entende como caminho de
introdução no mistério de Cristo e da Igreja, então seus elementos pastorais
revelam essa disposição; tem-se clareza de onde se parte e aonde se pretende
chegar.
A
consciência do objetivo do percurso da iniciação é constitutiva da identidade
catecumenal. Não se trata de corrida inconsequente em busca dos sacramentos,
mas de itinerário percorrido conscientemente, em vista do tornar-se adulto na
fé e no discipulado missionário de Jesus Cristo; os tempos e as etapas, com
seus objetivos específicos, os ritos de passagem, a gradualidade do processo,
enfim, cada dimensão da metodologia catecumenal confirma a afirmação de que o
catecumenato é um percurso consciente e gradual de maturação da vida cristã. A
noção de percurso remete à de progressividade, processo, duração, passos
sucessivos.
Nas
últimas décadas, não poucos esforços têm sido empregados no intuito de fazer da
pedagogia catecumenal o modo ordinário de iniciar na fé, superando, de uma vez
por todas, a mentalidade segundo a qual a catequese consiste em curso de
preparação aos sacramentos. Contudo, bem sabemos que a estrutura e a
mentalidade de curso não são superadas de uma hora para outra. A conversão da
mentalidade de curso para a lógica do percurso é lenta, o que torna a
consolidação do catecumenato morosa. Na compreensão de catequese como
preparação aos sacramentos, sobressai a pedagogia do curso, do saber sobre,
diferentemente do paradigma do percurso, em que o próprio termo sugere
progressividade, amadurecimento, iniciação. Enquanto o primeiro termo indica
preparação, sobretudo intelectual, assimilação de conteúdos, o segundo termo
indica iniciação, progressividade, continuidade.
O
catecumenato é um percurso celebrativo. A evolução na fé, a maturidade cristã
conquistada progressivamente, é celebrada liturgicamente. Os ritos catecumenais
marcam a passagem de um trecho da caminhada ao outro. Cada tempo percorrido,
após terem sido alcançados seus objetivos, é marcado por celebrações
específicas, chamadas celebrações de passagem. As celebrações não são apêndices
da caminhada; ao contrário, são marcas, pausas, reabastecimentos que marcam a
passagem de um tempo já percorrido e o início de outro a ser iniciado. As
celebrações e ritos de passagem são alimento que fortalece a continuidade da
caminhada, são liturgias que festejam o amadurecimento na fé já alcançado, são
“pausas” para tomar maior consciência dos passos dados e dos novos passos a
serem percorridos.
As
passagens de um tempo ao outro não são, portanto, automáticas. Supõem e exigem
discernimento, consciência, amadurecimento, liberdade, expressos nas
celebrações. Torna-se evidente que não se trata de um caminhar meramente
racional, escolástico. Não se trata de caminhada meramente com os pés da razão,
isto é, com o conhecimento racional do mistério, e sim com os pés do coração,
da celebração da fé, da experiência.
Uma das
mais relevantes contribuições da renovação catequética dos últimos anos, com
destaque para a catequese de inspiração catecumenal, está na conversão da
compreensão de iniciação à vida cristã, decorrente da clareza teológico-pastoral
daquilo em que ou daquele
em quem se é
iniciado. Não é por coincidência que se emprega ultimamente a palavra “vida” na
iniciação cristã; ou seja, iniciação à vida cristã é a expressão que melhor
traduz o processo do mergulho sacramental e existencial no mistério de Jesus
Cristo.
A riqueza
da metodologia catecumenal é fruto da consciência sobre o que é iniciação e
qual o caminho para atingir seu objetivo. Quando se carece de tal nitidez, as
inovações não passam de recursos paliativos, por não tocarem a raiz da questão.
Somente quando se sabe ao certo em que ou
em quem se
é iniciado é que se pode apresentar como se
inicia, isto é, o caminho a ser percorrido para alcançar os objetivos
perseguidos. No catecumenato, o como é
consequência da lucidez sobre o quê.
O déficit
de maturidade cristã no cristianismo se deve, em grande parte, a modelos
pastorais que negligenciam a dimensão existencial na evangelização. Antes de
chegar aos sacramentos, é preciso assimilar existencialmente os grandes
mistérios da fé cristã. Com isso não se está afirmando que a catequese
tradicional não almeja a iniciação cristã, o que seria uma acusação injusta; o
problema está em sua compreensão de iniciação cristã e no como ela se realiza.
- Conversão pastoral e a não pressuposição da fé
3.1.
A missionariedade catecumenal
No
percurso catecumenal, existe um tempo para redespertar o interesse por
caminhar, para pôr-se a caminho, para conhecer os primeiros passos da estrada
do cristianismo. Trata-se do tempo do pré-catecumenato, período
fundamentalmente importante que, embora de modo algum deva ser omitido (cf.
RICA 9), na pastoralidade e, sobretudo, na pastoral catequética é geralmente
dado por já percorrido, o que traz profundas consequências negativas à maturação
da fé.
O
pré-catecumenato é o tempo para trabalhar a orientação inicial a Cristo e à
Igreja. “É o tempo da evangelização em que, com firmeza e confiança, se anuncia
o Deus vivo e Jesus Cristo” (RICA 9). Trata-se fundamentalmente do tempo
voltado à primeira evangelização, para fazer ressoar a voz do mistério, do
querigma. Na catequese tradicional, o primeiro anúncio de Jesus Cristo, o
querigma, era considerado um pressuposto, por ser algo já garantido. Sendo a fé
um dado natural e cultural, tornava-se, portanto, prescindível a tarefa de
apresentar Jesus Cristo. Naquele contexto, a preocupação primeira, a grande
missão da catequese, era catequizar, doutrinar. Foram séculos sem grandes
preocupações missionárias, séculos de pressuposição da fé.
A
inspiração catecumenal recupera, em seu itinerário, esse trecho do percurso da
iniciação à vida cristã, tão caro ao cristianismo primitivo e perdido
posteriormente, ou então dado por já percorrido, via cristianismo sociológico.
Quiçá esteja aqui a expressão maior da missionariedade da inspiração
catecumenal: não dar por pressupostos a fé, a proclamação do querigma, o
ingresso na comunidade. Em outras palavras, o período chamado pré-catecumenato
é o sinal mais eloquente da missionariedade catecumenal, que sabe a necessidade
de começar com o anúncio explícito de Jesus Cristo.
Graças à
não pressuposição da fé, o estilo catecumenal se caracteriza como percurso,
está protegido do sacramentalismo e se torna inspiração para a pastoralidade.
Residem aqui, portanto, oportunidades enormes de inspiração à conversão
pastoral. A mais significativa intuição do tempo do pré-catecumenato para a
nova evangelização é a não pressuposição da fé em nenhuma atividade eclesial.
Alguns
exemplos podem nos ajudar. Quanto aos noivos que pedem o sacramento do
matrimônio, não se pode imaginar que façam tal pedido motivados primeiramente
pela fé ou já estejam nela iniciados. Resulta disso a necessidade de nova
estruturação dos assim chamados “cursos de noivos”, em perspectiva
querigmática, que saiba mistagogicamente propor a fé, conduzir a experiência
cristológica e eclesial. A preparação dos noivos é chamada a deixar de ser
curso para assumir a fisionomia de percurso, de anúncio e experiência de fé,
com menos preocupações canônicas e morais e mais investimento missionário. A
problemática se agrava quando “se obriga” o adulto a ser batizado para poder
casar-se na Igreja… “Na realidade, [essa prática] supõe uma falsa compreensão
do batismo como um rito qualquer, sem compromisso de mudança de vida” (TABORDA,
2017, p. 9).
O mesmo
se pode dizer dos “cursos de batismo”, que preparam os pais e os padrinhos para
o batismo de seus filhos e afilhados. Qual a densidade querigmática e
mistagógica desses encontros, ou seja, são “lugares teológicos” de anúncio e
aprofundamento da fé, de experiência eclesial, ou prevalece o estilo palestra,
em que se supõe que pais e padrinhos estejam iniciados na vida cristã?
O pré-catecumenato
questiona, portanto, as ações eclesiais que, em seus métodos, por pressuporem a
iniciação, se orientam segundo um substrato muitas vezes inexistente. Não são
poucas as atividades eclesiais que carecem de fundamentação querigmática, por
estarem pautadas mais na doutrinação da fé do que na fé mesma, mais nos
costumes religiosos do que no querigma, sem falar na obsessão por questões
morais e doutrinais.
A
pergunta a ser feita com seriedade na atual reflexão é sobre as consequências
da pressuposição da voz já ressoada na vida dos cristãos, compreensão esta
muito presente na pastoral de manutenção. Quais são as lacunas deixadas pela
presunção da experiência de encontro com a Pessoa de Jesus Cristo, quando, na
realidade, não poucos possuem tão somente uma noção de Deus? Não seria essa
presunção uma das causas da atual crise de fé? É muito estreita a relação entre
batizados não evangelizados e a pastoral de manutenção que prescinde do anúncio
querigmático por pressupô-lo ou, quando pior, por falta de clareza do que seja
o querigma.
Referências
bibliográficas
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REINERT,
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SAGRADA
CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Ritual
da iniciação cristã de adultos. Vaticano: Libreria Editrice
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TABORDA,
F. Apresentação.In: PARO, Thiago Faccini. As celebrações do RICA: conhecer para bem celebrar.
Petrópolis: Vozes, 2017.
João
Fernandes Reinert, ofm
Frei João Fernandes Reinert, ofm, mestre e doutor em Teologia pela PUC-Rio. Professor do Instituto Teológico Franciscano (Petrópolis). Pároco da Paróquia Santa Clara de Assis, em Duque de Caxias-RJ. Autor de Pode hoje a paróquia ser uma comunidade eclesial? (Vozes),Paróquia e iniciação cristã e Inspiração catecumenal e conversão pastoral (Paulus). E-mail: frreinert@yahoo.com.br
https://www.vidapastoral.com.br/edicao/inspiracao-catecumenal-e-conversao-pastoral/
(Continua
no próximo Domingo...).
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