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REFLEXÃO II - 20 de julho – 16° DOMINGO DO TEMPO COMUM –ANO C
Por Gisele Canário*
Acolhimento e escuta: vivendo o
equilíbrio que nos leva à essência do Reino de Deus
I. INTRODUÇÃO GERAL
As leituras de hoje nos
convidam a refletir sobre o acolhimento e o serviço como expressões de amor e
sobre a importância de equilibrar a ação com a escuta atenta da Palavra de
Deus. Em Gênesis, Abraão acolhe três visitantes em sua tenda, oferecendo
hospitalidade generosa. Em Colossenses, Paulo destaca o mistério de Cristo,
presente entre nós como a esperança da glória. No Evangelho, vemos Marta e
Maria exemplificando os dois aspectos da vida cristã: o trabalho e a
contemplação.
Essas passagens nos
ajudam a pensar sobre como vivemos a dimensão do acolhimento em um mundo cada
vez mais individualista e como equilibramos nossas responsabilidades cotidianas
com momentos de escuta profunda da Palavra de Deus.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Gn 18,1-10a)
Este texto narra um
momento icônico da hospitalidade de Abraão junto ao carvalho de Mambré, um
local simbólico de sua caminhada de fé. Abraão acolhe três visitantes
misteriosos que, no desenrolar do relato, são revelados como manifestações da
presença divina. A narrativa destaca a prontidão e a generosidade de Abraão:
ele interrompe seus afazeres no calor do dia, corre ao encontro dos visitantes,
oferece água para lavar os pés, pão, carne e leite, elementos preciosos e
essenciais na vida do deserto.
Contextualmente, a
hospitalidade era uma virtude central nas culturas do Oriente Próximo Antigo.
Em uma região árida e marcada pela escassez de recursos, acolher viajantes era
um gesto de bondade, mas também era uma questão de sobrevivência mútua. Recusar
hospitalidade poderia ser visto como uma grave afronta social. Assim, a ação de
Abraão reflete sua compreensão de que os visitantes eram portadores de algo divino,
e não meros viajantes que precisavam de um gesto acolhedor.
A arqueologia confirma a
importância de pontos estratégicos como Mambré, onde tribos e comunidades
nômades poderiam se encontrar para trocar mercadorias e formar alianças. Esses
locais também tinham um significado religioso, sendo frequentemente associados
a manifestações de Deus ou a eventos que marcavam a história de Israel.
2. II leitura (Cl 1,24-28)
Historicamente, esta
carta apresenta o contexto das primeiras comunidades cristãs, que enfrentavam
perseguições e desafios para compreender o significado da vida em Jesus.
Especificamente em Colossas, uma cidade localizada na região da Frígia, na Ásia
Menor, havia influências de correntes filosóficas e religiosas, como o
gnosticismo e cultos sincréticos. Paulo escreve para reafirmar a supremacia de
Cristo e a centralidade de seu mistério revelado.
O apóstolo, ao dizer que
“completa em sua carne o que falta às tribulações de Cristo”, não sugere que o
sacrifício de Jesus foi insuficiente, e sim que seu sofrimento está unido ao de
Cristo para o bem do corpo místico, que é a Igreja. A exegese interpreta isso
como a participação ativa dos cristãos no mistério pascal, em que o sofrimento
é visto como parte do testemunho e missão.
O termo grego mysterion,
“mistério”, é essencial nesta passagem. Na literatura judaica e greco-romana,
mistério era algo oculto, revelado apenas a poucos iniciados. Paulo, no
entanto, amplia o significado ao afirmar que este mistério foi plenamente
revelado a todos: a presença de Cristo em nós, especialmente entre os gentios,
como a “esperança da glória”. Esta expressão, “Cristo em vós”, enfatiza a
dimensão comunitária e universal do Evangelho, rompendo barreiras culturais e
étnicas.
A arqueologia nos traz
registros sobre a existência de comunidades cristãs mistas em cidades como
Colossas, compostas por judeus e gentios, o que reforça a mensagem de unidade e
inclusão de Paulo. Ele desafia as divisões sociais, proclamando que todos são
chamados à perfeição em Cristo, conforme o v. 28: “para a todos tornar
perfeitos em sua união com Cristo”.
Paulo também destaca seu
papel como ministro, cumprindo a missão dada por Deus de proclamar o Evangelho
em sua plenitude. Esta plenitude se refere a um conhecimento intelectual bem
como a uma vivência integral da fé em Cristo, que transforma e redime todas as
dimensões da vida humana.
3. Evangelho (Lc 10,38-42)
O relato de Marta e
Maria apresenta dois modelos de resposta à presença de Jesus: o serviço e a
escuta. Marta acolhe Jesus em sua casa e assume a responsabilidade de preparar
a hospitalidade, algo altamente valorizado na cultura judaica do século I.
Maria, por outro lado, senta-se aos pés de Jesus para escutar sua Palavra,
assumindo uma postura típica de um discípulo.
A Palestina do século I
era marcada por uma sociedade patriarcal, onde o papel das mulheres geralmente
era limitado ao espaço doméstico. A escolha de Maria de se sentar aos pés de
Jesus, posição reservada aos discípulos homens, desafia as normas culturais da
época. Jesus, mais do que apenas validar essa escolha, a enaltece, destacando a
centralidade da escuta da Palavra.
No entanto, a atitude de
Marta não deve ser desvalorizada. Seu esforço em servir reflete o cuidado e o
compromisso com a hospitalidade, prática essencial na tradição judaica. O verbo
grego periespato (“preocupava-se” ou “distraía-se”) sugere que a preocupação de
Marta vai além do serviço físico; ela está ansiosa e sobrecarregada com a
responsabilidade de atender às expectativas sociais e culturais. Jesus, em sua
resposta, não repreende Marta por sua ação, mas a convida a priorizar o
essencial: a comunhão com ele.
A narrativa, portanto,
não estabelece uma oposição entre ação e contemplação, mas propõe um
equilíbrio. Ambas as dimensões são necessárias na vida cristã. Marta simboliza
o compromisso com o serviço ao próximo, enquanto Maria destaca a importância da
intimidade com Deus. O desafio é evitar que as preocupações do cotidiano nos
afastem do foco principal: a presença transformadora de Jesus e a vivência real
de seu projeto.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Acolhimento como expressão de amor. Abraão demonstra que o
acolhimento generoso revela a presença de Deus em nossa vida. Como podemos
praticar a hospitalidade em um mundo marcado pela indiferença e pelo ensimesmamento?
Cristo como a esperança de amor. Paulo nos lembra que
Cristo habita em nós, sendo a fonte de nossa esperança. Em tempos de crise
global e desespero, como podemos ser testemunhas dessa esperança para a vida de
maneira geral?
Equilíbrio entre serviço e contemplação. Marta e Maria
representam duas dimensões essenciais da vida cristã. Estamos conseguindo
equilibrar nossas atividades com momentos de escuta e oração, especialmente em
um mundo que exige tanto de nós?
IV. CONCLUSÃO
As leituras de hoje nos ensinam
que acolher, servir e escutar são pilares do projeto do Deus da vida. O exemplo
de Abraão nos desafia a viver a hospitalidade como um sinal da presença divina.
Paulo nos lembra que Cristo é nossa esperança em meio aos desafios, e o
encontro de Marta e Maria com Jesus nos convida a buscar o equilíbrio entre
trabalho e contemplação.
Que possamos, em um
mundo de conflitos e incertezas, ser sinais vivos do Reino de Deus, acolhendo
os necessitados, levando esperança aos desesperados e encontrando em Deus o
descanso e a direção de que precisamos. Assim, testemunharemos que a verdadeira
alegria está em vivermos todos em comunhão com a vida em sua plenitude.
Gisele Canário*
*é mestra em Teologia (Exegese Bíblica Antigo Testamento) pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui graduação em
Teologia pela Instituição São Paulo de Estudos Superiores e licenciatura em
Geografia pela Universidade Cruzeiro do Sul. É assessora no Centro Bíblico
Verbo onde atua com a orientação de comunidades eclesiais e cursos bíblicos,
para estudos bíblicos, gravação de vídeos, formação em material para leitura
online desde 2011.
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/20-de-julho-16-domingo-do-tempo-comum/
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