O tradicionalismo como ameaça para uma Igreja em saída
Por Eliseu Wisniewski(*)
Introdução
A Igreja,
como sacramento universal de salvação, existe para evangelizar. Não existe outra
razão, a não ser essa. Fiel à sua missão, a Igreja, conduzida pelo Espírito, escuta
os sinais dos tempos, discernindo e revendo sua prática pastoral como resposta aos
desafios que emergem a cada tempo, proclamando com coragem, entusiasmo e criatividade
a mensagem do Evangelho. Anuncia sempre o mesmo Evangelho. As transformações sociais,
culturais, políticas, religiosas que experimentamos como cidadãos e cristãos pedem
que a Igreja, em sua missão evangelizadora, saiba transmitir, por meio de linguagens
sempre adaptadas à realidade presente, sua mensagem de modo condizente com os desafios
e inquietações atuais, encarnando a Palavra revelada na história e fazendo fecundar
a vida dos seguidores de Jesus. Caso contrário, a Igreja será vista como realidade
arcaica e pouco significativa para nossos contemporâneos.
Com essa consciência
eclesial, dom Walmor Oliveira de Azevedo, atual presidente da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB), em vídeo e texto publicado no site dessa instituição
e reproduzido em outros sites, apresentou três ameaças e três oportunidades para
a Igreja católica no Brasil nos próximos cinco anos. Ameaças: 1) o crescimento de
segmentos conservadores e reacionários; 2) as dificuldades para reverter situações
com funcionamentos pesados; 3) a fragilização de processos de evangelização e serviços
em defesa e promoção da vida. Oportunidades: 1) novo modo de presença pública da
Igreja, advindo da escuta das mudanças em curso na cultura mundial; 2) recuperação
da força do cristianismo como vetor determinante do sonho de um mundo novo, solidário
e fraterno; 3) conquista de novas feições e dinâmicas na ministerialidade da Igreja
à luz da mistagogia evangélica.
Neste texto,
concentramos nossa atenção na primeira ameaça: o crescimento de segmentos conservadores
e reacionários. Nos últimos tempos, esses grupos e tendências ganharam força política,
pastoral, moral e litúrgica dentro da Igreja católica e crescente visibilidade nas
redes sociais, gerando resistências e empecilhos para uma evangelização conseqüente
com os tempos atuais. Segundo dom Walmor, esses grupos têm levado “à estagnação
e ao comprometimento do diálogo construtivo, com preponderância de obscurantismos
e escolhas medíocres, com força de justificação das desigualdades existentes e neutralização
magistral da Doutrina Social da Igreja”.
Concordamos
também com o que o Papa Francisco constata na encíclica Fratelli Tutti (FT), quando
afirma que “a história dá sinais de regressão”, com “conflitos anacrônicos que se
consideravam superados”, bem como com o ressurgimento de “nacionalismos fechados,
exacerbados, ressentidos e agressivos” (FT 11). Nas “sombras de um mundo fechado”,
em que os “sonhos são desfeitos em pedaços” (FT, título e subtítulo do 1º capítulo),
Francisco reconhece que o atual momento é difícil e o tempo da humanidade é obscuro,
uma vez que “criam-se novas barreiras de autodefesa, de tal modo que deixa de haver
o mundo, para existir apenas o ‘meu’ mundo” (FT 27), sendo preciso reconhecer que
os fanatismos, que induzem a destruir os outros, são protagonizados também por pessoas religiosas, sem excluir os cristãos, que podem fazer parte de
redes de violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio
digital. Mesmo nos media católicos, é possível ultrapassar os limites, tolerando-se
a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama
alheia (FT 46).
Empenhados
em contribuir para que a Igreja seja uma Igreja em saída, hospitaleira, missionária,
que ajude de fato a recompor o esgarçado tecido de nossa sociedade brasileira, não
podemos deixar de examinar essa tendência tradicionalista que contradiz a finalidade
missionária, a razão de ser da Igreja.
Buscaremos
entender melhor esse fenômeno, orientando-nos pelas ideias/reflexões do dr. João
Décio Passos presentes no livro A força do passado na fraqueza do presente. O tradicionalismo
e suas expressões. Seguindo de perto a estrutura desse livro e transcrevendo as
ideias fundamentais aí contidas, iniciaremos nossa reflexão aproximando-nos dessa
temática do ponto de vista conceitual.
Em seguida,
abordaremos as estruturações do tradicionalismo e suas afinidades políticas, e concluiremos
propondo alguns discernimentos que se fazem necessários. Esses pontos ajudarão a
detectar elementos que perfilam a frente tradicionalista com seus projetos bem demarcados,
presentes em posturas implícitas e explícitas em muitos grupos institucionalizados
dentro da Igreja, em programas exibidos pelos canais católicos de televisão, em
homilias dominicais e em discursos que circulam pelas redes sociais.
1.
“Fora
do passado não há salvação.” Considerações sobre os tradicionalismos
Não parece
ser necessário exigir pesquisas numéricas para demonstrar a existência de grupos
e tendências tradicionalistas visíveis e atuantes no interior da Igreja católica.
O tradicionalismo católico atravessou o século XX com seus ideários, projetos, grupos
e tendências. Trata-se de sistema, de matriz escolástica, que se estrutura e opera
com base em uma cosmologia teocêntrica, em uma filosofia da história, em uma epistemologia
essencialista, em uma sociologia cristã, em uma antropologia pessimista, em uma
moral autoritária e em uma devoção espiritualista. Como grupo e como tendência,
existem ao menos desde o século XIX. Saíram dos velhos guetos institucionais, romperam
com as posturas diplomáticas e com a etiqueta da elegância eclesial e assumiram
a lógica das bolhas sociais, reproduzidas pelas redes sociais. Sejam grupos mais
intelectualizados ou mais militantes, sejam mais institucionalizados ou mais espontâneos,
estão todos dispostos a enfrentar aquilo que julgam ser um desvio doutrinal e atacar
os sujeitos divulgadores dos erros, taxando-os como perigosos, a fim de serem expurgados
da Igreja.
O tradicionalismo
foi construído como uma espécie de antídoto contra a modernidade. Encara o presente
como crise, entendendo os tempos modernos como equivocados e, por si mesmos, sem
solução, incapazes de propor uma referência de valor e ação, retirada de um fundamento
seguro de verdade recebido do passado como revelação de Deus ou como lei inscrita
na própria natureza.
Considerando-se
portadores da autêntica tradição, os tradicionalistas se entendem e se definem como
os autênticos católicos, que se opõem aos católicos equivocados. Reivindicam não
somente um lugar legítimo dentro do catolicismo, mas também uma posição de portadores
da verdade autêntica da tradição cristã e, com freqüência, são intolerantes às diferenças
religiosas e políticas. Perfilam um tipo de catolicismo que se referência por visões,
valores e práticas de matriz pré-moderna; legitimam-se com base no passado e têm
grande dificuldade de assimilar as mudanças do presente, sobretudo no que se refere
às que ocorrem no campo da doutrina, da moral e das vivências litúrgicas católicas.
O tradicionalismo
nasceu num contexto histórico demarcado por sujeitos e ideais definidos e se desenvolveu,
nas épocas posteriores, em formatos variados. Assim sendo, é preciso distinguir
o tradicionalismo ao menos em dois conceitos próximos. O primeiro diz respeito à
escola filosófico-teológica, organizada na França do século XVIII e XIX, denominada
“tradicionalismo”, que mereceu a condenação de papas – vejam-se, por exemplo, as
encíclicas Mirari Vos (1832), Singulari Nos (1834) e Pascendi (1907) –, por afirmar
a revelação como única fonte de verdade e, por conseguinte, negar a possibilidade
de acesso à verdade por meio da razão. A segunda distinção diz respeito à própria
noção de tradição (traditio) como transmissão dos conteúdos da fé, nos diferentes
tempos e nos espaços, pelos seguidores de Jesus Cristo; indica precisamente o contrário
do tradicionalismo, na medida em que se entende como um processo de transmissão
do passado no presente e, portanto, de discernimento circular entre as duas temporalidades,
o que nega as dinâmicas da conservação intacta que caracterizam os diversos tradicionalismos.
O projeto
tradicionalista não é uniforme, nem quanto à rigidez do discurso nem quanto a detalhes
ou foco privilegiado de um ou de outros. Contudo, mostra-se em algumas posturas
e frentes comuns dos diversos tradicionalismos.
Como posturas
comuns: afirmação de uma concepção de Igreja fora do mundo (comunitarismo isolado
do resto da Igreja e da sociedade) e detentora da salvação (neognósticos e neopelagianos,
segundo o papa Francisco); concepção dualista da realidade (separação radical entre
natural e sobrenatural, história e Igreja, história e escatologia); espiritualidade
intimista (mística individualista e ascese rigorista); afirmação de uma estética
litúrgica tridentina (liturgias em latim ou ritualismo triunfalista); negação de
uma moral social centrada na justiça e igualdade social (deformação da fé e comunismo);
moral rigorista centrada na norma objetiva (sem discernimento de contextos e condicionamentos);
e, na base de tudo, a afirmação de que a verdade tem seu porto seguro em modelos
de vida eclesial, social e política do passado (quase sempre nos moldes tridentinos
e anteriores ao Vaticano II).
Como frentes
comuns: afirmação de um catolicismo auto-referencial e intolerante à diversidade
religiosa e ao diálogo inter-religioso; insistência na temática do aborto como problema
central dos dias atuais e condenação da chamada “ideologia de gênero”; afirmação
do anticomunismo como antídoto que visa desqualificar todo discurso libertador;
dispensa da reflexão crítica que situe, histórica e cientificamente, a doutrina
da Igreja e os textos bíblicos.
Outras características
descrevem, de modo tipicamente ideal, a visão e a prática de fundo da mentalidade
tradicionalista: a) eternização: as coisas sempre foram como são e não podem ser
modificadas no decorrer da história; b) universalização: a verdade herdada do passado
e claramente formulada em modelos de interpretação e vivência é afirmada como única
e aplicada a todos os tempos e lugares, sem modificações; c) idealização: as ideias
afirmadas como verdades herdadas do passado são melhores do que as do presente;
d) conclusão: as representações e os valores afirmados são verdades concluídas e
definitivas e não podem sofrer mudança; o definitivo é a base de toda segurança
racional, social e política; e) hierarquização: a realidade é vista como sistema
hierárquico, de cima para baixo; f) divinização: os valores defendidos têm seu fundamento
em uma realidade sobrenatural e, por essa razão, são fixos e preservados com temor
sagrado e com reverência; g) espiritualização: a fé cristã é algo puramente espiritual,
acima e em oposição à realidade material e histórica; h) auto-refencialidade: as
referências afirmadas como verdades são por si mesmas boas e normativas, constituindo
o centro a partir do qual tudo é visto e julgado doutrinal, moral e politicamente,
e as diferenças são negadas como falsas e perigosas.
Para os tradicionalistas,
essas características/referências são as fontes do autêntico catolicismo e devem
ser preservadas para sempre; constituem, portanto, sinônimo de catolicismo, em oposição
às interpretações equivocadas, ainda que essas interpretações sejam instituídas
pelo Vaticano II e ensinadas pelos papas.
2.
A volta
ao passado como solução. Demarcações, linhagens, afinidades tradicionalistas
O Concílio
Vaticano II foi o divisor definitivo de águas entre a consciência cristã centrada
numa epistemologia essencialista, que dispensa a história, e outra que incorpora
a historicidade como dinâmica interpretativa da fé e de sua transmissão. Rompeu
com a cultura da estabilidade e da tradição verdadeira e fixa. Rompeu com uma rotina
considerada imutável e sagrada, exercida, por conseguinte, sob as regras da autoridade
e da obediência.
O processo
conciliar delineou duas posições e fez que a percepção conservadora tomasse dois
rumos: recuando numericamente, a ponto de configurar a chamada minoria, e recrudescendo
como grupo organizado. Evidenciou o tradicionalismo em duas frentes principais:
como força que negava a legitimidade do evento conciliar ou como frente que se aglutinava
no esforço de reler seu significado. Formaram-se, assim, duas escolas interpretativas
do Vaticano II: uma que afirmou o sentido renovador das decisões; outra que afirmou
a continuidade dessas decisões em relação à tradição anterior.
Dessa forma,
instaurou-se uma luta entre dois projetos de marcas distintas: Igreja auto-referenciável
e Igreja em saída. A Igreja auto-referenciável tem como aspectos: a) fonte: a tradição;
apoio em modelos do passado como referências permanentes; b) organização: acento
na instituição, nas normas e na hierarquia, entendidas como sinônimo de Igreja e
visibilidade sagrada; c) estratégia: preservação da doutrina, dos rituais e das
normas advindas de modelos fixos a serem repetidos; d) poder: centralização, hierarquia,
clericalismo e obediência à autoridade; e) cultura: da reprodução, da segurança
e da reserva em relação à cultura atual. Já a Igreja em saída, por sua vez, apresenta
as seguintes características: a) fonte: querigma como fonte permanente de sentido
e renovação para a tradição, para as estruturas e para as linguagens atuais da Igreja;
b) organização: acento no carisma cristão, no discernimento e na vivência encarnada
da Igreja em cada realidade; organização a serviço da evangelização e da vida; c)
estratégia: reforma permanente com base nas fontes do Evangelho e do encontro com
o outro; d) poder: serviço como única razão, descentralização e sinodalidade; e)
cultura: do encontro, da criação de processos capazes de transformar a realidade;
diálogo com as alteridades.
O Vaticano
II decretou o fim do tradicionalismo, embora ele tenha subsistido de modos variados
dentro da Igreja e crescido como tendência cada vez mais dominante, amparada por
fontes e estruturas eclesiais e eclesiásticas. Pode-se, então, falar de três linhagens
de tradicionalismo: a) o tradicionalismo de resistência, que avança de dentro para
fora da Igreja católica e adquire identidade própria como grupo distinto da instituição
católica; b) o tradicionalismo de legitimidade, que vai sendo germinado dentro da
Igreja católica de forma legítima e se espalhando pelo corpo eclesial como tendência
sempre mais nítida desde a conclusão do Vaticano II; c) o tradicionalismo emergente,
que hoje é construído/reconstruído por intermédio das redes sociais e favorecido
pelas dinâmicas próprias desses novos meios de socialização.
As afinidades
entre tradicionalismo católico e ideologias e governos de direita são evidentes
tanto no passado quanto no presente. Os regimes de ultradireita são, por definição
e missão, conservadores; pretendem manter uma ordem natural das coisas no modelo
que adotam para exercer o governo. As mudanças que alterem uma ordem previamente
definida como verdadeira e boa por si mesma são denunciadas e expurgadas como perigosas.
Recentemente, na América Latina, os governos de direita revelam, de modo emblemático,
um “ecumenismo conservador” e de “composição plurirreligiosa de ultradireita”. Constata-se
a aliança entre ateus e crentes, judeus e cristãos, protestantes e católicos, militares
positivistas e pentecostais, fazendo cessar ou, ao menos, ocultando num plano irrelevante
as diferenças religiosas.
Essa tendência
política contemporânea compõe o cenário de fundo no qual a “volta” aos fundamentos
se encontra numa espécie de confluência natural, em que uma configuração distinta
é reforçada por outra na afirmação de ideários e, sobretudo, de práticas comuns.
O tradicionalismo, com suas teologias da estabilidade, tece afinidades com os conservadorismos
políticos que se apresentarem como soluções para as crises modernas. Algumas palavras-chave
indicam essa confluência, que vai tecendo conjunturas políticas que se retroalimentam
com as visões religiosas tradicionalistas, tais como: ordem natural, unidade, estabilidade,
hierarquia, centralização, autoridade, força, disciplina e ritualismo.
Dessa forma,
negam os princípios e práticas modernas: autonomias modernas, liberdade de consciência,
pluralismos em geral, diálogo inter-religioso, ecumenismo, relativismo, igualdade
social, direitos humanos. Todo discurso de igualdade e justiça está demarcado como
comunista, venha de quem vier. O anticomunismo tem retornado, no interior do catolicismo
e nos discursos dos poderes autoritários hoje emergentes, como chave geral de leitura
das oposições teóricas e ideológicas do que propõem como saída messiânica para
a história.
O comunista
ainda é um monstro perigoso, pronto para destruir por completo a vida de um povo;
um inimigo da nação, da Igreja e de Deus. O princípio da igualdade de direitos entre
nações, grupos e indivíduos – concretizados em sujeitos sociais emergentes (refugiados,
migrantes, mulheres, negros, LGBTI), em políticas sociais compensatórias e de distribuição
de renda, em direitos humanos, em políticas e leis de direitos de refugiados, em
afirmação da liberdade religiosa – é negado como um mal que corrói a velha unidade
cristã ocidental. Portanto, valores e modelos do passado são resgatados sem escrúpulos
políticos, criando cenas públicas inusitadas de retomada de governos totalitários
com claro viés “teocrático”.
Nesse contexto,
o inimigo causador do caos deve ser eliminado com todos os recursos, mesmo que comece
pela eliminação física. O Deus dos exércitos oferece a justificativa como fonte
de legitimidade e salvação. Conseqüentemente, as democracias vão morrendo, com as
bênçãos religiosas que refundam o poder com suas teologias políticas: Deus salvará
o Ocidente por meio de líderes que são missionários da preservação do passado. Nas
rachaduras da crise econômica e política, as teologias da conservação se apresentam
como solução segura para uma ordem mundial acuada pelo medo da dissolução imediata.
O Deus todo-poderoso vencerá todos os inimigos que ameaçam a soberania dos Estados,
a autonomia do Ocidente, a civilização cristã, por meio de líderes poderosos.
3.
“Sempre
foi assim.” Deverá sempre ser assim? Discernimentos sobre o tradicionalismo
Os tradicionalistas
se apresentam hoje como defensores da teologia da conservação, que dá fundamentos
para a proposição de um catolicismo distinto do professado por aqueles que apostaram
em utopias sociais, em afinidade direta ou indireta com os ideais e modelos socialistas,
e por aqueles que insistiram nas reformas conciliares por meio de movimentos e de
uma cultura que se consolidou nas rotinas pastorais desde o final do Vaticano II.
Hoje se torna cada vez mais visível o apoio tradicionalista às direitas emergentes,
o qual se eleva nas rachaduras da democracia liberal. O retorno às velhas seguranças
constitui estratégia de enfrentamento do caos, voltando ao início: ao Estado forte
que enfrenta o domínio do econômico; à nação como comunidade cultural; à família
patriarcal; e a Deus como fundamento. Nessas dinâmicas de retorno, as posturas religiosas
tradicionalistas avançam como fundamento geral que fornece a última palavra sobre
a verdade, a segurança e a ordem.
No entanto,
os tradicionalismos carregam limites (históricos, epistemológicos, ético-antropológicos,
políticos, teológicos) e contradições que não somente indicam sua historicidade,
mas a identidade conservadora sobre a qual se fundamentam. Esses limites advêm do
seu próprio propósito e projeto de aferir a veracidade de um modelo histórico a
ser adotado, modelo paradoxalmente compreendido como perene e, portanto, como supra-histórico.
Na tradição judaico-cristã, a história se faz na dinâmica do provisório e jamais
do definitivo; na insegurança do presente possível, e jamais na ordem do necessário.
Na tradição judaico-cristã, portanto, qualquer afirmação de “história estável e
concluída” é falsa. O cristianismo é um caminho pelo provisório, e não uma fuga
para o definitivo (embora os cristãos esperem o definitivo encontro com Deus, o
que está em jogo é a fuga para algo estável e constante). O tempo da fé cristã é
a história que passa incessantemente, convida à esperança permanente e exige o amor
dos seguidores de Jesus Cristo.
Carece à perspectiva
tradicionalista a consciência de que, como todo grupo identitário, ela participa
da dinâmica inevitável da “história que passa” e da imponderabilidade do tempo presente,
em que não existe reprodução intacta do passado, mas tão somente produção do presente
a partir do passado ou, com maior precisão, produção do passado a partir do presente.
O mito de um passado sempre preservado não se sustenta histórica e socialmente.
A fé em Jesus Cristo não pode significar ruptura com o tempo presente na direção
de um tempo eterno, mas uma percepção da verdade dentro das condições históricas,
quando verdade-amor se tornam duas dimensões da mesma fé que acolhe Deus na história,
presente no próximo.
O Evangelho
é sempre a fonte renovadora de todas as estruturas historicamente construídas; fora
dele não há legitimidade para a instituição. A consciência cristã exige que se volte
sem cessar para seu fundamento, para dele haurir elementos para a vida pessoal e
comunitária e parâmetros para posicionar-se dentro da história e aí se organizar,
a fim de melhor servir. O Evangelho fornece o núcleo mais essencial para discernir
as formulações do passado e fazer que fecundem o presente.
Não podemos
nos esquecer de que a tradição está situada entre duas fontes importantes de significado,
que lhe dão o parâmetro da forma correta de ser transmitida: o coração do Evangelho
e a vida concreta. O tradicionalismo perde essas duas referências e afirma o passado
pelo passado, de forma fixa e imutável. O ato de “passar adiante” significa inevitavelmente
confrontar a fé com a vida, lançar a semente que a Igreja carrega no solo da vida,
feito de terra fértil e de terra infértil. Sem o querigma fundante, o cristianismo
corre o risco da idolatria dos modelos históricos de interpretação da fé, trocando
a causa pelo efeito, o conteúdo pela fórmula, a vida plena pela lei escrita.
A transmissão da fé é sempre renovada. Esse é o
significado da tradição que se distingue e se opõe ao tradicionalismo. A tradição
guarda o passado e discerne o presente, no mesmo ato de fidelidade que visa oferecer
o conteúdo fundamental da fé em cada tempo e lugar. É linguagem que se renova ao
transmitir, e transmite ao se renovar.
4.
Não
encapsular o presente no passado nem colocar muros nos canais vivos da graça. Conclusões
Os tradicionalistas
compõem um segmento eclesial e social que entende ser o passado a referência segura
para o presente. São os apóstolos de plantão do definitivo, da verdade definitiva,
encarnada em modelos fixos e permanentes e, por conseguinte, em parâmetros unívocos
e universais.
Na fé cristã,
as conclusões são todas provisórias, somente o Reino de Deus é definitivo. O Reino
abre todas as coisas para um fim, que fecunda o presente com seu germe transformador
e faz da dinâmica da história contínua auto-superação. O poder renovador do Espírito
desautoriza todas as concentrações teocráticas, exercidas em nome de quem quer que
seja, hierarquias eclesiais ou políticas. Desautoriza todas as concentrações sagradas
em instituições, leis e personagens, e exige discernimentos a cada instante, munidos
da memória do passado e da esperança de futuro.
Nesse sentido,
a Fratelli Tutti, do Papa Francisco, compromete a todos e nos engaja na transformação
do próprio mundo, do nosso tempo: “Cada geração deve fazer suas as lutas e as conquistas
das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas. É o caminho” (FT 11).
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Walmor
Oliveira de. Ameaças e oportunidades para a Igreja nos próximos cinco anos. Disponível
em: <https://crbnacional.org.br/quais-sao-as-ameacas-e-oportunidades-para-igreja-catolica-no-brasil-nos-proximos-5-anos/>.
Acesso em: 13 out. 2020.
PAPA FRANCISCO.
Fratelli Tutti: Carta Encíclica sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo:
Paulus, 2020.
PASSOS, João
Décio. A força do passado na fraqueza do presente: o tradicionalismo e suas expressões.
São Paulo: Paulinas, 2020.
(*)Eliseu Wisniewski
é presbítero da Congregação da Missão Província do Sul (Padres Vicentinos), mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) e doutorando em Teologia pela mesma universidade. E-mail: eliseu.vicentino@gmail.com
https://www.vidapastoral.com.br/edicao/o-tradicionalismo-como-ameca-para-uma-igreja-em-saida/
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