Quem dizem os homens que eu sou? Uma leitura de Marcos
8,27-38 (I)
Por Pe. Shigeyuki Nakanose, svd
Jesus partiu com seus discípulos para os povoados de Cesareia de
Filipe e, no caminho, perguntou a seus discípulos: “Quem dizem os homens que eu
sou?” Eles responderam: “João Batista; outros, Elias; outros, ainda, um dos
profetas”. “E vós”, perguntou ele, “quem dizeis que eu sou?” Pedro respondeu:
“Tu és o Cristo”. Então, proibiu-os severamente de falar a alguém a seu
respeito (Mc 8,27-30).
Quem é
Jesus? Questão central e decisiva na comunidade de Marcos, diante do surgimento
de várias lideranças populares por volta do ano 70. Para a comunidade, que
professava Jesus morto e ressuscitado como “Cristo”, a compreensão da
identidade e da missão de Jesus era, ao mesmo tempo, a compreensão da missão
dos cristãos: quem eram os verdadeiros discípulos e as discípulas de Jesus de
Nazaré?
A
pergunta “Quem dizem os homens que eu sou?” atravessa milênios e continua em
discussão, oferecendo várias imagens de Jesus: milagreiro, rei triunfante,
sacerdote, psicólogo, monge, economista, revolucionário etc. Cada imagem revela
uma faceta da vivência de um indivíduo cristão. Pois a essência da pessoa
humana de Jesus com sua proposta de vida é fundamental para viver a fé cristã.
Hoje a pergunta de Jesus continua nos interpelando: “Quem dizem os homens que
eu sou?” Para responder melhor a essa pergunta, é preciso, primeiramente,
situá-la no contexto histórico em que Jesus e a comunidade de Marcos viveram.
1.
Situando na história
O pano
de fundo histórico da febre messiânica, que contagiava e movimentava o povo de
Israel no primeiro século d.C., é consequência do fracasso do movimento dos
macabeus (166-63 a.C.) e da ascensão e dominação do poder romano (63 a.C.-135
d.C.). Depois de grande sofrimento e opressão sob as três dominações
estrangeiras (babilônica, persa e grega), o povo depositou grande esperança nas
mãos dos macabeus. Esperava que eles fossem os líderes verdadeiros que iriam
libertar o povo do jugo dos opressores. Mas fracassaram! O movimento dos
macabeus desembocou na formação de uma monarquia tão opressora quanto a dos
gregos. Eles se preocupavam apenas com o interesse e a segurança de sua
dinastia, a dos “asmoneus”. A velha história se repete!
A
frustração aumentou com a chegada dos romanos e do seu tremendo poderio
militar. O povo se submeteu impotente às ordens humilhantes de mais uma
potência estrangeira que chegou para devastar sua pátria. A devastação
acontecia não somente no campo de tributos e comércio (moedas), mas também no
campo cultural e religioso. Os imperadores, por exemplo, apresentavam-se como
filhos de Deus, filhos do cometa e sumos sacerdotes. A história relata dois
exemplos de imposição cultural e religiosa dos imperadores que provocaram
indignação e revolta nos judeus e poderiam ter provocado um banho de sangue: os
estandartes militares de Pilatos com a imagem do imperador César marchando para
Jerusalém (26-27 d.C.) e a tentativa de erguer a estátua do imperador Caio
Calígula no templo de Jerusalém (40-41 d.C.).
E, para
piorar a situação do povo, os romanos nomearam os idumeus, inimigos dos judeus,
para reger a Palestina: Herodes Magno e seus filhos (Arquelau, Antipas e
Filipe), cujos reinados foram marcados pela brutalidade e tirania, espalhando
ódio e desespero no meio do povo. Arquelau, por exemplo, sufocou a revolta dos
judeus de Jerusalém, massacrando 3 mil pessoas na praça do Templo na Páscoa. Os
reis herodianos promoveram a ostentação do luxo segundo o estilo romano,
construindo palácios em cidades como Cesareia, Jerusalém, Séforis, Tiberíades,
Jodefá etc. Aumentaram os tributos, assim como intensificaram a exploração, a
opressão e a violência contra os camponeses, que constituíam 90% ou mais da
população da Palestina. Era comum presenciar famílias inteiras sendo vendidas
como escravos por causa de dívidas.
Infelizmente,
os líderes religiosos de Jerusalém praticamente não fizeram nada diante da
situação do povo; ao contrário, o desempenho deles visava aos próprios
interesses e privilégios, obtendo lucro também por meio da colaboração com o
império. Um dos relatos da época registra o abuso cometido pelo sumo sacerdote
Ismael (59-61 d.C.):
Naquela época, o Rei Agripa conferiu o sumo sacerdócio a Ismael,
filho de Fiabi. Surgiu então mútua inimizade e luta de classe entre os sumos
sacerdotes, de um lado, e os sacerdotes e líderes do populacho de Jerusalém, do
outro […]. Era tamanha a falta de vergonha e a afronta da parte dos sumos
sacerdotes, que descaradamente enviavam escravos à entrada de suas casas para
receber os dízimos devidos aos sacerdotes, resultando daí que, sem nada ter, os
pobres religiosos morriam de fome (Flávio Josefo apud CROSSAN;
REED, 2007, p. 235).[1]
Os
governantes religiosos estavam envolvidos com extorsão e ladroeiras,
transformando o Templo num “covil de ladrões” (Mc 11,17). O povo vivia em
completo abandono. Nesse caldeirão de tensões sociais, políticas, econômicas,
culturais e religiosas renascem e crescem os movimentos de resistência com
visões escatológicas e apocalípticas do reino de Deus: Deus intervém e
transforma o mundo do mal, da injustiça e da violência num mundo de justiça e
de paz. Os movimentos resultaram em duas grandes revoltas nos primeiros cem
anos do domínio romano: no ano 4 a.C., com cerca de 2 mil rebeldes crucificados
em Jerusalém, e em 66-73 d.C., na Guerra Judaica, com a destruição do Templo e
da cidade de Jerusalém.
No
primeiro século havia vários movimentos de resistência ao domínio romano.
Vejamos os que são conhecidos:
1)
Banditismo judaico: os camponeses endividados e expulsos de suas terras se
refugiavam nas montanhas e se juntavam aos salteadores. Atacavam as caravanas
romanas e faziam incursões nas áreas fronteiriças. Flávio Josefo, historiador e
colaborador de Roma, falando sobre o banditismo judaico da década de 30 d.C.,
informou: “Salteadores que viviam em cavernas estavam devastando grande parte
da zona rural e infligindo aos habitantes calamidades não menores que as de uma
guerra” (G.J.1.304 – HORSLEY; HANSON, 1995, p. 76). Os bandidos, na verdade,
mantinham contato com os camponeses das aldeias, compartilhavam os mesmos
valores culturais e religiosos e muitas vezes faziam justiça em favor dos
habitantes locais. Os habitantes, por sua vez, geralmente os apoiavam e até
arriscavam a vida para protegê-los. Na Galileia, esse movimento do banditismo
era suficientemente forte para ameaçar e levantar-se em rebelião contra seus
dominadores, judeus e romanos, e, com um líder bem-sucedido, o movimento tornava-se
uma esperança escatológica para o povo explorado e empobrecido.
2)
Movimentos messiânicos com reis populares: os camponeses em dificuldade
juntavam-se a algum movimento messiânico sob a liderança de um rei carismático.
Eles sonhavam com um líder como o rei Davi e o “filho do homem” (Dn 7), que
poderia estabelecer o reinado definitivo de Israel, derrotando os romanos e
expulsando os governantes corruptos. Na época de Jesus, o povo seguia vários
“reis messiânicos”, como Judá, filho de Ezequias, Sião, ex-escravo de Herodes,
Atronges, um pastor etc.
3)
Movimentos proféticos: no primeiro século, constata-se o renascimento de
profetas com as características transmitidas na tradição bíblica (Elias, Amós,
Oseias, Miqueias, Jeremias etc.). Eles, como João Batista, denunciavam as
injustiças e anunciavam o julgamento iminente de Deus. Alguns deles inspiravam
e lideravam até um movimento de revolta contra as autoridades, como no caso dos
profetas samaritanos, por volta de 30 d.C.
Nesse
contexto histórico de constantes ondas de revoltas populares, Jesus de Nazaré
aparece diante do povo com a fama de ser um profeta.
2.
Jesus de Nazaré
Nem
sempre é fácil descrever o Jesus histórico e sua vida. Nos evangelhos,
misturam-se as atividades de Jesus e as interpretações feitas, posteriormente,
pelas comunidades cristãs. Mas é inegável que ele é originário da aldeia de
Nazaré e passou a maior parte da sua vida pregando, atuando e andando de uma
aldeia para outra na Galileia. Seus atos, ensino, ditos e parábolas eram
enraizados nas experiências da vida camponesa da sua terra. Eis algumas
práticas de Jesus que se diferenciavam da imagem oficial do Messias daquele
tempo (NAKANOSE, 2004, p. 115):
1)
Jesus anuncia a boa-nova, primeiramente, aos pobres da Galileia. Essa região
não é, para a elite judaica, o lugar apropriado para a aparição do Messias: “De
Nazaré pode sair algo de bom?” (Jo 1,46).
2)
Jesus critica a lei da pureza: Jesus vive no meio dos marginalizados, toca o
leproso (Mc 1,41), come com os pecadores (Mc 2,15) e acolhe a mulher impura (Mc
5,25-34). O que ele está propondo é reincorporar os marginalizados na vida
social em vez de excluí-los pela Lei discriminatória. Devolve-lhes a alegria de
viver como gente! Essa atitude de Jesus desafia a imagem do Messias como mestre
e guardião da Lei oficial, por quem os fariseus e os essênios esperavam (Mc
7,1-7).
3)
Jesus não manda nas pessoas nem as domina, mas veio para servi-las (Mc 10,45).
Essa prática não segue a regra do Messias rei vitorioso que instaura o reinado
de Deus mediante a violência e a dominação. A prática da libertação não se
baseia no poder, mas no serviço. Quem usa o poder para libertar o povo corre o
risco de subjugá-lo com o mesmo poder (Mc 9,33-37; 10,42-45).
4)
Jesus é descrito como o profeta Jeremias, desafiando as autoridades judaicas
estabelecidas no Templo: “Não está escrito: Minha casa será chamada casa de
oração para todos os povos? Vós, porém, fizestes dela um covil de ladrões!” (Mc
11,17; Jr 7,11). Essa é a causa principal da ira das autoridades do Templo,
considerado por muitos como o local onde o Messias vai se apresentar e começar
a sua conquista e seu domínio triunfante (Lc 4,9).
A
imagem do Messias que nasce da prática de Jesus se contrapôs à poderosa figura
messiânica davídica esperada pelo povo judeu. Ele é o “servo sofredor” (Is
42,1-9), que prega e pratica um relacionamento social e religioso baseado no
amor, na compaixão e na justiça, o que o leva a um confronto com as autoridades
e, consequentemente, à cruz. O sofrimento e a morte de Jesus não são castigos
nem projeto de Deus, mas consequência de sua prática da justiça e da
solidariedade.
Os
primeiros seguidores e seguidoras, que conseguiram compreender esse messianismo
do servo após a morte de seu mestre e a experiência pascal, colocaram-se ao
lado dos crucificados da sociedade para construir o reino de Deus, de amor e
solidariedade. Porém, foi difícil seguir o projeto do Jesus servo sofredor na
sociedade greco-romana, controlada pelo império que pregava e buscava poder,
riqueza, posição social, honra, fama etc. É também muito grande a tentação de
imaginar e pregar Jesus como rei triunfante e profeta poderoso nas dificuldades
e nos momentos de perseguição. A comunidade de Marcos não foi exceção. Ela
enfrentou a crise de identidade: quem é Jesus e qual a sua missão nos
movimentos de resistência contra o império existentes na Galileia.
3.
A figura messiânica e a
comunidade de Marcos
Após a
morte de Herodes Agripa I (44 d.C.), a Judeia voltou a ser província romana.
Com a perda da autonomia política da Judeia e a terrível fome no fim dessa
década, a Palestina presenciou o aumento sucessivo dos movimentos violentos de
resistência, o qual atingiu seu ápice na Guerra Judaica de 66-73:
1)
O banditismo aumentou em proporções epidêmicas. Os principais líderes
carismáticos foram: Eleazar bem Dinai; Tolomau; Jesus, filho de Safias etc.
2)
Os reis e os profetas messiânicos prometiam a libertação do jugo dos romanos e
reuniam enorme movimento popular: o rei messiânico Manaém, filho de Judas, o
Galileu; o profeta Egípcio etc.
3)
Os sicários, que apareceram na década de 50 d.C., sequestraram, assassinaram os
aristocratas colaboradores dos romanos, provocaram agitações a favor da liberação
judaica e, finalmente, aderiram aos grupos rebeldes na luta contra o império em
66-70.
No fim
da década de 60, toda a Palestina estava infestada de movimentos de revolta,
que agitavam a comunidade de Marcos. A comunidade se juntaria à revolta armada
com a bandeira do rei Jesus messiânico? A dúvida e indecisão da comunidade
estão manifestadas em seu texto:
Pois naqueles dias haverá uma tribulação tal, como não houve
desde o princípio do mundo que Deus criou até agora, e não haverá jamais. E se
o Senhor não abreviasse esses dias, nenhuma vida se salvaria; mas, por causa
dos eleitos que escolheu, ele abreviou os dias. Então, se alguém vos disser:
“Eis o Messias aqui” ou “ei-lo ali”, não creiais. Hão de surgir falsos Messias
e falsos profetas, os quais apresentarão sinais e prodígios para enganar, se
possível, os eleitos. Quanto a vós, porém, ficai atentos. Eu vos preveni a
respeito de tudo (Mc 13,19-23).
Quem é
Jesus? A comunidade de Marcos trata do assunto do messianismo de Jesus de modo
particular. Olhando, sobretudo, a primeira parte do Evangelho de Marcos (Mc
1,1-8,26), o leitor logo percebe as constantes ordens de silêncio depois da
prática poderosa e libertadora de Jesus e da menção de seus títulos. Eis a
lista dessas ordens:
1)
“Na ocasião, estava na sinagoga deles um homem possuído por um espírito impuro,
que gritava, dizendo: ‘Que queres de nós, Jesus nazareno? Vieste para
arruinar-nos? Sei quem tu és: o Santo de Deus’. Jesus, porém, o conjurou
severamente: ‘Cala-te e sai dele’. Então o espírito impuro, sacudindo-o
violentamente e soltando grande grito, deixou-o” (Mc 1,23-25).
2)
“Ao entardecer, quando o sol se pôs, trouxeram-lhe todos os que estavam
enfermos e endemoninhados. E a cidade inteira aglomerou-se à porta. E ele curou
muitos doentes de diversas enfermidades e expulsou muitos demônios. Não
consentia, porém, que os demônios falassem, pois eles sabiam quem era ele” (Mc
1,32-34).
3)
“Um leproso foi até ele, implorando-lhe de joelhos: ‘Se queres, tens o poder de
purificar-me’. Irado, estendeu a mão, tocou-o e disse-lhe: ‘Eu quero, sê
purificado’. E logo a lepra o deixou. E ficou purificado. Advertindo-o
severamente, despediu-o logo, dizendo-lhe: ‘Não digas nada a ninguém; mas vai
mostrar-te ao sacerdote e oferece por tua purificação o que Moisés prescreveu,
para que lhes sirva de prova’” (1,40-44).
4)
“Pois havia curado muita gente. E todos os que sofriam de alguma enfermidade
lançavam-se sobre ele para tocá-lo. E os espíritos impuros, assim que o viam,
caíam a seus pés e gritavam: ‘Tu és o Filho de Deus!’ E ele os conjurava
severamente para que não o tornassem manifesto” (3,10-12).
5) “Tomando a mão da criança,
disse-lhe: ‘Talítha Kum’ – o
que significa: ‘Menina, eu te digo, levanta-te’. No mesmo instante, a menina se
levantou, e andava, pois já tinha doze anos. E ficaram extremamente espantados.
Recomendou-lhes então expressamente que ninguém soubesse o que tinham visto. E
mandou que dessem de comer à menina” (5,41-43).
Lançando
um olhar sobre essa lista e outros textos, podemos ter uma resposta parcial à
pergunta que fizemos à comunidade de Marcos a respeito do messianismo: por que
Jesus impõe o silêncio e não permite que as pessoas mencionem seus títulos?
Antes de tudo, Jesus desfaz um equívoco: a pretensão do povo em transformá-lo
num Messias poderoso e triunfante. Foi exatamente essa pretensão que penetrou e
dominou a comunidade de Marcos. Eles olhavam o céu, esperando e pedindo que
Jesus interviesse logo no mundo para estabelecer seu reino glorioso e
definitivo. Entretanto, ele os adverte e se contrapõe à figura messiânica
davídica triunfalista. Dessa maneira, a comunidade começa a orientar seus
membros para o verdadeiro messianismo de Jesus e seu destino na segunda parte
do evangelho, que se inicia em Mc 8,27-38.
(Continuará no próximo Domingo...)
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