POLÍTICA E AGRESSIVIDADE
Mario Sergio Cortella fala sobre política e sobre agressividade nas redes sociais (*)
Com décadas de docência e uma curiosidade insaciável, o filósofo transformou-se em um dos pensadores de maior destaque no cenário nacional
O talento em
debater filosofia, de forma clara, e sem banalizá-la, e a imensa capacidade de
inovar no tratamento de diversos questionamentos fizeram Mario Sergio Cortella
percorrer todo o país realizando centenas de palestras por ano. Nesta
entrevista – concedida à ES Brasil, em dezembro de 2017, – este paranaense de
Londrina fala sobre o momento encarado pelo Brasil, desafios do mercado de
trabalho e a forma como as redes sociais têm afetado o mundo. Mas também
reflete sobre felicidade, otimismo e os melhores caminhos para se tornar um
vencedor.
Como se deu a
transição das salas de aula aos públicos externos?
Sou professor há
48 anos, e a atividade de palestras é concomitante à atividade docente.
Especialmente a partir de 1990, começou uma demanda maior da área de filosofia
para outras reflexões; foi quando entrei nesse circuito corporativo. Por isso,
nos últimos quase 30 anos, tenho tido uma presença mais contínua. Mas não fui
eu que procurei. De maneira mais direta, até de modo bom, eu é que fui procurado
pelo campo de filosofia para algumas reflexões de ética e gestão do
conhecimento.
Quais os temas mais
recorrentes em suas palestras?
Eles sempre são
quatro, todos muito decisivos. O primeiro deles é a percepção ética da
convivência, do negócio, da atividade. Um campo que interessa muito é a
reflexão sobre valores em relação à prática na convivência da comunidade e no
valor negocial. O segundo bloco é sobre conhecimento, inovação, educação
continuada. Portanto a ideia é de uma qualificação que se dá de forma extensa,
e não apenas no período escolar. O terceiro tema que aparece com muita
frequência é a atitude de mudança frente ao cenário de alterações muito
velozes. Uma perspectiva latitudinal nesse campo. O quarto e último é
sobre a capacidade de uma convivência mediante a diversidade de perspectivas em
um mundo mais plural.
Há um misto de
realização e preocupação por ser um ícone do pensamento moderno?
Por um lado, algo
que é completamente vaidoso, gostoso. Imaginar que em algum momento a
filosofia, que era aquela tia velha, extremamente maluca, de repente passou a
ser chamada a opinar. Mas, por outro lado, não é suficiente. De nada adianta
essa demanda se a gente não oferecer às pessoas uma reflexão que não seja
superficial, que não se contente em apenas serenar as consciências. Costumo
lembrar sempre que há uma diferença entre ser importante e ser famoso. A fama é
extremamente passageira, evanescente. Mas ela é algo que oferece, para quem
veio do mundo acadêmico, uma compensação. Se eu fosse alguém que tivesse
entrado no circuito de maneira lateral, sem a legitimidade do campo acadêmico…
Mas como fiz doutorado, sou professor titular de universidade, isso dá um
escopo maior entre os pares para estar nessa atividade. E isso, por um lado dá
gosto, claro, mas por outro oferece um nível de comprometimento mais forte,
para que não se transforme numa perspectiva messiânica, salvacionista. Isto é,
que eu não traia a filosofia.
Como debater ética
em um universo em que o próprio conceito já foi equivocadamente encapado como
“decência” ou “honestidade”?
Precisamos retirar
esse sequestro semântico em torno da palavra. De repente, por causa do tamanho
dessa decepção, e essa é umas das tarefas também da filosofia, impedir que essa
palavra esvazie o seu conteúdo. Ela precisa ser robustecida com exemplos, com
discussões, com análises, com reflexões, para que não se torne vazia, sem
significado mais intenso. Nessa nossa realidade, é preciso fazer uma respiração
boca a boca para que ela ressuscite em relação à sua perda de fôlego, como
nessa parada cardiorrespiratória que a ética vem tendo e produzindo em nós.
E esse discurso tem
ganhado força?
Uma parcela sim,
mas de nada adianta uma defesa solitária. Esse discurso vem sendo acompanhado
também por alterações de legislação em várias estruturas. Há 20 anos você
começou a usar cinto de segurança porque poderia ser multada. Hoje já utiliza o
cinto sem pensar na multa. Houve um movimento interno, o convencimento; e
o movimento externo, a pressão legislativa. A mesma coisa em relação ao tabaco.
Há 30 anos você acenderia um cigarro em qualquer lugar. Hoje teria uma
dificuldade muito maior em fazê-lo, não apenas porque é proibido fumar em
vários lugares, mas porque também há uma conscientização Em relação ao
cumprimento dos valores éticos, o movimento é sempre duplo: convencimento
interno e pressão externa.
Nesse cenário de
incertezas políticas e econômicas que reverberam no social, aumenta o estímulo
em auxiliar pessoas a sobreviverem à tempestade?
O que estamos
vivendo hoje não é um período confuso, é um período com excesso de variáveis.
Nunca tivemos tantas variáveis dentro da nossa organização política e
econômica. E por isso ele se assemelha a confuso, quando na verdade o que
existe é uma possibilidade de alteração muito veloz. Os atores que estão no
cenário podem deixar de estar rapidamente.
A sistêmica
corrupção reflete o caráter da população brasileira?
Não, ao contrário.
No Brasil apenas 5% são canalhas; 95% das pessoas acordam todos os dias,
trabalham, viajam de carro, de trem, a cavalo, contribuem, não transgridem. O
problema é que os 5% de canalhas conseguiram primeiro convencer os 95% de que o
bom é ser canalha; e, segundo, que eles seriam invencíveis. As duas coisas
agora vêm caindo por terra.
E como combater a
corrupção?
Temos a
necessidade de imaginar que a corrupção é uma possibilidade e não uma
obrigatoriedade. Ela não é algo que se possa eliminar de vez, em momento algum
da história humana, porque ela está conectada à nossa liberdade. Nós somos
capazes de sermos canalhas, mas não somos obrigados a sê-lo. Por isso,
esse é o primeiro passo. Segundo, uma legislação que, já existindo como é, que
ela não seja apenas uma ferramenta decorativa; que ela seja de fato a
possibilidade de implantação, na qual a impunidade não tenha seu lugar. É isso
que dá garantia e eficácia à lei existente. Terceiro, que as pessoas possam
fazer boas escolhas. Digo sempre e repito que, se você não quiser lixo na sua
cidade, não coloque lixo na urna. Se não quiser lixo no seu estado, não coloque
na urna. Se puser lixo na urna, é lixo que você vai ter.
Podemos apontar um
amadurecimento político do país?
Os últimos dez
anos são a maior aula de Educação Moral e Cívica de toda a nossa história.
Nunca nós aprendemos tanto sobre política. Se eu te perguntar agora qual foi o
último adversário da seleção brasileira de futebol e o resultado, dificilmente
você saberá. Mas, se eu perguntar o nome de cinco ministros do Supremo Tribunal
Federal, você saberá, o senhor do bar da esquina saberá, o taxista e o homem da
banca. Nunca aprendemos tanto sobre política, inclusive como ela funciona, como
ela é podre, como somos omissos em várias situações, como somos enganados em
outras, e como a complexidade vem a partir da omissão. Nunca estudamos tanto,
mas precisamos resolver qual é o passo que daremos com a aula: se a gente se
contenta em ficar com ela, ou se a gente faz da lição uma tarefa.
Esse alto grau de
agressividade nas redes sociais é falta de educação ou de formação?
As novas
tecnologias permitem essa condição. No mundo das redes digitais, o imbecil pode
manifestar sua opinião. Antes não tinha lugar, porque o máximo que ele
conseguiria era subir em um caixotinho na Praça do Papa e começar a gritar, mas
não teria tanto público. Hoje ele pode se juntar a outros imbecis e formar uma
comunidade de odiosos, de intolerantes. Isso é uma possibilidade que a
tecnologia favorece e, claro, fazer a dissimulação em larga escala. Essas
intolerâncias sempre existiram na sociedade, estavam latentes, mas ganham
dimensão maior, porque estão marcadas pela capacidade de grandes grupamentos de
idiotas.
A velocidade das
mudanças tecnológicas tem nos levado a um mundo high tech. Estamos preservando
a história e respeitando as experiências?
Algumas pessoas
sim, mas de forma geral há um apressamento de julgamentos, de decisões. E nisso
vem faltando alguma calma necessária para se refletir, se meditar sobre
determinadas coisas. Faltando algum tipo de pensamento que seja colocado na
calma de uma reflexão, que auxilie a evitar uma vida “miojo”.
Quais os grandes problemas da educação brasileira?
Há três grandes
problemas: democratizar não apenas o acesso mas também a permanência na escola.
Não bastam matrículas de crianças em larga escala. É necessário que permaneçam
nas unidades de ensino e tenham uma educação relevante para a vida coletiva que
garanta, além de capacitação técnica, base de cidadania. Em segundo lugar,
precisamos modificar a estrutura. Brinco que existe um choque intersecular, com
alunos do século 21, nós professores do século 20, e metodologias e a
organização do século 19. E essa atualização exige formação continuada do
docente, portanto, maiores recursos.
Ter vivido três anos
em um convento da Ordem dos Carmelitas Descalços foi fundamental no
desenvolvimento de sua capacidade de ouvir, refletir e ponderar?
Aos 18 anos decidi
por uma experiência religiosa mais intensa. Tive uma formação magnífica no
convento, primorosa no desenvolvimento de duas coisas: primeiro na disciplina
de estudo, de realização de tarefas, porque a vida monacal exige isso; segundo
na possibilidade de acolhimento mais meditado das ideias, das percepções.
Também minha experiência na universidade, que é um local de pluralidade, e a
convivência política na estrutura partidária na qual tive militância. Em todas
essas vivências, tive muitos momentos em que precisei abrir mais a
“escutatória” que a “oratória”, como dizia Rubem Alves.
Qual o peso da
disciplina na construção do sucesso?
A disciplina é a
organização da liberdade. Ela permite que eu me concentre mais naquilo que
tenho mais urgência, importância em fazer. A disciplina exagerada acaba
tolhendo a criatividade, mas a falta exagerada de disciplina não permite a
eficácia do fazer. A disciplina é uma das formas mais eficazes de se chegar aos
resultados, mas é preciso ser flexível, saber elencar prioridades, para
aproveitar o tempo livre.
Felicidade tem
fórmula?
Nenhuma delas. Ao
contrário, a infelicidade tem fórmula. Quando você fica imaginando a frase “Um
dia vou ser feliz”, colocando a felicidade num tempo futuro. Felicidade é uma
ocorrência virtual, momentânea. Então, quando ela vier, abrace, afague,
desfrute. Cuide dela, mas saiba que ela vai embora… Mas volta. Quem imaginar
que é um ponto contínuo ou futuro não conseguirá ser feliz. A felicidade é a
capacidade de não recusar a exuberância da vida nos momentos em que ela vem à
tona, mas com a certeza de que ela se vai, e também com a certeza de que ela
volta.
(*) A matéria acima é uma republicação
da Revista ED Brasil, edição nº 147, Dezembro de 2017. Fatos, comentários e
opiniões contidos no texto se referem à época em que a matéria foi escrita.
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