REFLEXÃO DOMINICAL II
Reflexão para o 5º Domingo da Páscoa - Jo 14, 1-12
(Ano A)
Por Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues(*)
Neste
quinto domingo da Páscoa, o texto evangélico proposto pela liturgia é João
14,1-12. Trata-se de um trecho do grande discurso de Jesus na última ceia com
seus discípulos. Apesar de não descrever os gestos de consagração do pão e do
vinho, João é o evangelista que mais deu importância à última ceia de Jesus,
dedicando-lhe nada menos que cinco capítulos, o que corresponde a um quarto de
todo o seu Evangelho (Jo 13–17). Respondendo às necessidades concretas das
comunidades cristãs da Ásia Menor, na última década do primeiro século,
marcadas pela perseguição e com tendência ao desânimo na vivência da fé, o
evangelista reuniu em um grande discurso os principais elementos de todo o
ensinamento de Jesus. Esse discurso é considerado o “testamento de Jesus”;
logo, o seu conteúdo é imprescindível para as comunidades cristãs de todos os
tempos.
Para
compreendermos melhor o trecho lido hoje, é necessário recordar o que lhe
antecede, no contexto narrativo da última ceia. E encontramos quatro
acontecimentos precedentes que, de certo modo, condicionam o texto de hoje: o
lava pés ou o mandamento do serviço (Jo 13,1-15), o anúncio da traição de Judas
e seu desligamento do grupo (Jo 13,21-30; ), a entrega do mandamento do amor
por Jesus (Jo 13,31-35), e o anúncio da negação de Pedro (Jo 13,36-38). A isso,
soma-se o fato de Jesus ter declarado que tinha chegado a sua hora de partir
para o Pai (Jo 13,31-33), e os discípulos, lamentavelmente, compreendiam a sua
partida como perda definitiva, como ausência e fim. Tudo isso deixou os
discípulos desanimados e inquietos; a ceia tinha perdido o seu clima festivo.
Jesus tenta recuperar a alegria e o entusiasmo dos discípulos com a
continuidade do seu discurso.
Olhando
para o texto, percebemos que as palavras iniciais de Jesus denunciam a
inquietação e o mal-estar que havia entre os discípulos naquele momento: “Não
se perturbe o vosso coração” (v. 1a). A agitação no coração é sinal de tristeza
e confiança abalada. Significa que há uma situação difícil de ser aceita e
compreendida. É interessante que, embora fale para todo o grupo dos discípulos,
Jesus se refere ao coração (em grego: καρδία – kardía) no singular. Com isso, o
evangelista evidencia a importância da unidade da fé na comunidade. Apesar dos
conflitos internos, a comunidade não pode desistir de ter um só coração, ou
seja, um mesmo amor e um único mandamento.
Mais
do que um conforto intimista e individual, Jesus quer assegurar a unidade. Ora,
a comunidade estava abalada e suscetível de rivalidades e exclusões; havia um
clima de desconfiança entre eles, sobretudo após a saída de Judas e o anúncio
da negação de Pedro (cf. 13,21-30; 36-38). O princípio da unidade na comunidade
é a fé em Deus e no próprio Jesus. Por isso, ele pede que os discípulos lhe
renovem a adesão plena, com uma fé renovada: “Tendes fé em Deus, tende fé em
mim também” (v. 1b). O tema da fé é muito caro ao evangelho de João. Somente
nesse texto de hoje, o verbo que expressa fé e confiança (em grego: πιστεύω –
pistêuo), aparece cinco vezes (vv. 1.11.12). O evangelista está ensinando
também que a fé em Deus e a fé em Jesus são uma única fé.
Na
continuação, Jesus reforça cada vez mais a importância da comunidade cristã,
apresentando-a como a nova casa do Pai, uma vez que a antiga, o templo, fora
transformada em casa de negócio (cf. Jo 2,16). Por isso, a afirmação categórica
e firme: “Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fosse, eu vos
teria dito. Vou preparar um lugar para vós” (v. 2). Essa é uma das afirmações mais
revolucionárias de todo o Quarto Evangelho, embora tenha sido muito mal
compreendida ao longo dos séculos. Ao contrário do que parece, Jesus não está
se referindo ao céu enquanto morada do Pai, e nem prometendo reservar lugares
para os seus discípulos lá. Ele está, na verdade, fazendo uma mudança radical
de paradigma: a nova casa do Pai é a comunidade cristã, na qual há espaço para
todos e todas, compreendendo a diversidade de dons e carismas.
No
templo de pedras, a antiga casa de Deus, havia uma única morada. As pessoas iam
até lá para encontrar-se com Deus, mas somente Ele habitava lá, como ensinava a
religião. No diálogo com a Samaritana, Jesus já tinha antecipado que aquele
modelo de religião estava com os dias contados, uma vez que chegaria o tempo de
adorar a Deus somente em espírito e em verdade (Jo 4,21-24); esse tempo novo
instaura-se com a ressurreição, compreendida como a construção definitiva da
morada de Deus na humanidade (Jo 2,19-22), através da extensão do corpo do
Ressuscitado que é a comunidade cristã. Ao invés de ir ao templo para
encontrar-se com Deus, devemos acolhê-lo em nossa vida, uma vez que é Ele que
vem ao nosso encontro, numa relação oposta ao que ensinava a antiga religião.
Jesus
diz que “vai preparar” porque é a sua ressurreição que inaugura essa nova
relação; por isso, garante: “E quando eu tiver ido preparar-vos um lugar,
voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver estejais também
vós” (v. 3). Mais uma vez, recordamos que Ele não está prometendo transportá-los
de um lugar para outro, mas conduzi-los a uma nova condição de vida, dando a
certeza de que, acolhendo o ressuscitado com fé, a comunidade estará em relação
contínua com o Pai. Mais do que levar a comunidade para Deus, na verdade Jesus
traz Deus para a comunidade; essa será a casa do Pai quando nela vigorar a lei
do amor e sua aplicação prática, o serviço.
Considerando
tudo o que já havia ensinado, imaginava Jesus que os discípulos já conhecessem
o caminho: “E para onde eu vou, vós conheceis o caminho” (v. 4); esse caminho é
a sua própria vida, marcada pelo amor ilimitado e incondicional. No entanto, a
incompreensão persiste nos discípulos, dominados pelos ideais messiânicos
triunfalistas e incapazes de reconhecer o amor e a doação da vida como os únicos
meios para uma relação autêntica com Deus. Com muita sinceridade, Tomé confessa
a sua ignorância diante do que está sendo anunciado e vivido por Jesus: “Tomé
disse a Jesus: ‘Senhor, nós não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o
caminho?” (v. 5). De fato, ele não compreendia a morte de Jesus como passagem
para uma presença permanente no meio da comunidade; ele via a morte como o fim,
embora seja louvável a sua coragem para enfrentá-la, como havia demonstrado já
no episódio da reanimação de Lázaro: “Nós iremos para morrer com ele” (Jo
11,16).
O
questionamento de Tomé se torna uma oportunidade para Jesus fornecer uma das
mais profundas revelações de si: “Jesus respondeu: “Eu sou o Caminho, a Verdade
e a Vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim” (v. 6). Com a declaração “Eu sou”
(em grego: Εγώ είμι – egô eimí) Jesus reafirma a sua condição divina, pois essa
é a fórmula de revelação do Deus do Êxodo, o Deus libertador (Ex 3,13ss); por
sinal, o uso dessa fórmula é muito frequente no Evangelho de João, mas essa é a
única vez em que vem seguida de três predicados: Caminho, Verdade e Vida.
Embora pareça enigmática, essa tríplice predicação é bastante simples. Ora,
Jesus está propondo um modelo de vida para uma comunidade, o que pode levantar
muitas dúvidas e questões, uma vez que Ele não escreve nenhuma regra, não
estabelece nenhuma lei e não deixa nenhuma doutrina. Isso gera dúvidas e medo
nos discípulos: como se comportar após a partida de Jesus? Quais os parâmetros
a seguir? Para simplificar, Jesus diz que ele mesmo é tudo o que a comunidade
necessita, é Ele o parâmetro, a sua pessoa
.
Ao
apresentar-se como Caminho, Verdade e Vida, Jesus apenas diz que é tudo para a
comunidade e essa não pode buscar nem viver algo que não esteja em consonância
com a sua pessoa. O itinerário a ser percorrido pela comunidade cristã é a sua
trajetória de vida, a verdade a ser transmitida é a sua própria pessoa e a vida
a ser vivida é aquela que Ele viveu e doou em abundância, marcada pela
liberdade, dignidade e amor. É claro que na tradição bíblica encontramos
significados aprofundados para cada um destes termos: caminho, verdade e vida.
Porém, o evangelista aplica aqui no sentido prático dos termos: sem Ele a
comunidade não tem rumo, não tem o que anunciar e, consequentemente, não tem
também razão para viver e existir, uma vez que sem Ele não há relação nem
conhecimento de Deus, o Pai. Portanto, se auto declarando como Caminho, Verdade
e Vida, Jesus diz que é tudo para a comunidade cristã e essa não pode
alimentar-se de nada além da sua pessoa.
Na
sequência, Jesus reafirma sua unidade com o Pai em tom de advertência e lamento
pela falta de perspicácia dos discípulos: “Se vós me conhecêsseis, conheceríeis
também o meu Pai. E desde agora o conheceis e o vistes” (v. 7). Num único versículo,
o mesmo verbo conhecer aparece três vezes. Não se trata de um conhecimento
intelectual, mas de uma experiência de intimidade e amor. O conhecimento de
Deus não é fruto do intelecto, mas de uma disposição para amar e ser amado.
Jesus está denunciando a falta de amor nos discípulos, até aquele momento. Se
ainda não conheciam a Jesus e ao Pai, é porque ainda não estavam amando
verdadeiramente, o que se evidencia pela intervenção de Filipe: “Senhor,
mostra-nos o Pai, isso nos basta!” (v. 8).
Como
se vê, persistia nos discípulos a incompreensão e não aceitação da unidade
entre Jesus e o Pai. Isso mostra, mais uma vez, que eles tinham dificuldade de
aceitar e assimilar um Deus presente na história e relacionando-se diretamente
com o seu povo, e é exatamente esse Deus que Jesus nos revela. Por isso, a
resposta a Filipe é uma espécie de desabafo de Jesus, em tom de lamentação e
repreensão: “Há tanto tempo estou convosco, e não me conheces, Filipe? Quem me
viu, viu o Pai. Como é que tu dizes: ‘Mostra-nos o Pai?” (v. 9). Ora, Filipe
foi um dos primeiros discípulos chamados por Jesus (Jo 1,43); certamente,
presenciou todos os sinais realizados, mesmo assim não tinha ainda assimilado
Jesus como revelador do Pai.
Toda
a vida de Jesus é revelação de Deus; em tudo o que faz, ele revela o Pai porque
os dois vivem uma unidade perfeita: “Não acreditas que estou no Pai e o Pai
está em mim? As palavras que eu vos digo, não as digo por mim mesmo, mas é o
Pai, que, permanecendo em mim, realiza as suas obras” (v. 10). Os discípulos
devem perceber essa unidade pelo amor incondicional de Jesus, expresso em suas
palavras e ações. Como último critério, ou seja, quando a vida de Jesus marcada
pelo amor incondicional não for capaz de convencer, que pelo menos considerem
as suas obras, os sinais realizados, para reconhecê-lo como Um com o Pai:
“Acreditai-me: eu estou no Pai e o Pai está em mim. Acreditai, ao menos, por
causa destas mesmas obras” (v. 11). É importante essa recomendação: as obras
são o último critério para a fé. O primeiro critério é o amor envolvido e a
certeza da vida abundante.
A
propósito das intervenções de Tomé e Filipe, vale a pena ressaltar a
importância que isso significa para a comunidade joanina e, obviamente, para as
comunidades cristãs de todos os tempos. É perceptível que o Evangelho de João
concede a palavra a discípulos que não fazem parte do trio predominante na
tradição sinótica: Pedro, Tiago e João. No Quarto Evangelho, discípulos
“secundários” para os sinóticos, como André, Filipe e Tomé, tem um certo
protagonismo (Jo 2,35-51; 11,26; 20,19-27), sendo que o principal de todos os
discípulos é um anônimo: o discípulo amado. Esse detalhe revela um cuidado do
evangelista em relação à organização da comunidade e uma precaução com as
tendências hierarquizantes. Na comunidade onde reina o amor, todos têm espaço,
inclusive para questionar. O que importa é que o amor fraterno seja vivido.
Certamente,
é vivenciando o mandamento do amor, estabelecendo relações fraternas e
sinceras, cultivando a igualdade e a fraternidade que a comunidade poderá, não
apenas repetir, mas realizar obras maiores que aquelas que o próprio Jesus fez;
é Ele mesmo quem dá essa garantia (v. 12). A confiança e fé em suas palavras
credencia a comunidade a manifestar a sua presença e, consequentemente, a
presença do Pai, tornando sua obra ilimitada temporal e espacialmente; isso
implica em compromisso para nós, cristãos de hoje: não devemos apresentar o
Evangelho como uma história a ser contada, mas como um caminho a ser
percorrido, uma verdade a ser anunciada e, principalmente, uma vida a ser
vivida, marcada pelo amor, acolhimento e perdão para, de fato, ser uma vida em
abundância (cf. Jo 10,10).
(*) Pe. Francisco
Cornélio F. Rodrigues
Presbítero da
diocese de Mossoró-RN. Mestre em Teologia Bíblica (Pontificia Università San
Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma)); Licenciado em Filosofia (Instituto
Salesiano de Filosofia – Insaf (Recife)) e Bacharel em Teologia (Ateneo
Pontificio Regina Apostolorum (Roma)).
https://www.fiquefirme.com.br/159-reflexao-para-o-5o-domingo-da-pascoa-jo-14-1-12-ano-a
Nenhum comentário:
Postar um comentário